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Notas sobre a possibilidade de desconsideração da personalidade da pessoa física para alcançar outra pessoa física: A figura da laranja afetiva

Fraudes patrimoniais entre pessoas físicas desafiam o Judiciário e justificam a desconsideração da personalidade para atingir a “laranja afetiva” do devedor.

29/5/2025

A técnica da desconsideração da personalidade jurídica foi concebida como um instrumento de proteção à própria pessoa jurídica, visando coibir e reprimir comportamentos ilícitos praticados por sócios ou administradores que, valendo-se da autonomia patrimonial da entidade, desvirtuam sua função, esvaziam seu patrimônio ou o desviam em benefício próprio ou de terceiros, com o intuito de fraudar credores. A repressão a tais práticas conduz à técnica que permite a desconsideração da autonomia formal para que o patrimônio pessoal do sócio seja atingido, restabelecendo-se a integridade da garantia patrimonial frustrada1.

A dogmática, a doutrina e a jurisprudência também reconheceram a possibilidade inversa: a chamada desconsideração inversa da personalidade jurídica, pela qual se ultrapassa a esfera patrimonial da pessoa física e se alcança diretamente o patrimônio da pessoa jurídica por ela controlada, utilizada de forma abusiva para ocultar bens e impedir que se retire o patrimônio do devedor o que é devido pelos prejuízos causados pelo inadimplemento (art. 391 do CCB).

Em ambos os casos, parte-se do pressuposto da existência de uma dívida inadimplida e da inexistência de patrimônio garantidor expropriável em nome do devedor, exatamente porque, por meio de atos ilícitos (v.g. simulados, fraudulentos, abusivos) os bens que deveriam integrar o referido patrimônio encontra-se desviados para patrimônio de titularidade formal de terceiros2.

Comum a essas duas modalidades é o raciocínio segundo o qual a autonomia patrimonial - da pessoa jurídica ou da pessoa física - é instrumentalizada para frustrar a garantia patrimonial dos credores. E, mais especificamente, esse raciocínio se sustenta na identificação de uma relação de controle, simulação ou confusão patrimonial que legitime o redirecionamento - com ampliação no curso do processo - da responsabilidade patrimonial.

Todavia, é necessário avançar sobre esse paradigma e questionar os limites da técnica à luz da multiplicidade das relações interpessoais e patrimoniais contemporâneas. A lógica tradicional da disregard doctrine tem como polo central a pessoa jurídica - ente artificial e dotado de autonomia patrimonial - a ser instrumentalizado (manipulado) por pessoas físicas que buscam blindagem ilícita do patrimônio que deveria servir para garantir dívidas inadimplidas. Mas o mesmo fenômeno pode ser verificado entre pessoas físicas, quando uma delas utiliza o patrimônio da outra, com ciência e consentimento desta, para frustrar o direito de credores.

Imaginemos o caso de um médico, pessoa física, que, sabendo estar endividado e passível de ter o seu patrimônio submetido a uma futura execução judicial, orienta seus clientes que todos os pagamentos por consultas, cirurgias e tratamentos sejam realizados diretamente na conta de sua namorada. Esta, ciente da finalidade da operação, anui com a manobra e permite, inclusive, que o médico utilize seus cartões, contas bancárias, bens e rendimentos como se fosse o seu próprio patrimônio.

Embora formalmente esse patrimônio esteja no nome da namorada, materialmente ele integra o círculo de disponibilidade do médico devedor, funcionando como blindagem informal e simulada contra possíveis execuções que possa vir a sofrer em razão das dívidas inadimplidas que possui. Com efeito, todo o fluxo financeiro que alimenta esse patrimônio provém diretamente do médico, ou é movimentado pela companheira sob sua orientação expressa, de modo que as transações, ainda que formalmente realizadas por ela, são substancialmente controladas por ele. Trata-se, portanto, de uma estrutura de ocultação patrimonial sofisticada, cuja finalidade é esvaziar o acervo do devedor, transferindo seus ativos a um terceiro de confiança, que se presta voluntariamente a figurar como titular aparente dos bens e valores.

Trata-se, em verdade, de uma simulação fática, configurando uma comunhão patrimonial velada - uma autêntica “laranja afetiva” - destituída de fundamento jurídico formal, mas ancorada em vínculos afetivos, emocionais, em relações de dependência financeira ou emocional e, não raramente, em um certo mau caratismo compartilhado. Nessa dinâmica, o terceiro - usualmente um parceiro íntimo - consente em ceder seu nome e patrimônio, servindo como escudo para o devedor, em troca de uma vida mais confortável e de benefícios materiais que, isoladamente, não alcançaria.

A configuração dessa sociedade de fato patrimonial sem reconhecimento legal impede a responsabilização direta do terceiro (namorada do médico), protegida pela autonomia patrimonial que se reconhece entre pessoas físicas. A rigor, protege o terceiro (a namorada) e o próprio sujeito que faz uso deste patrimônio emprestado (o médico).

Parece óbvio que o uso continuado e consciente do patrimônio de outrem com a finalidade de esvaziar ou impedir o acréscimo do próprio acervo patrimonial revela violação direta à cláusula geral da boa-fé3 e do princípio de que o patrimônio da pessoa responde pelas suas dívidas (art. 391 do CCB, artigo 942 do CCB e art. 789 e ss. do CPC).

Não se trata, aqui, de aplicar indistintamente a técnica da desconsideração da personalidade jurídica, porque pessoa jurídica não há, mas de reconhecer que o seu fundamento - repressão ao abuso de direito e à fraude contra a garantia patrimonial - pode justificar a extensão da responsabilidade entre pessoas físicas, quando houver evidência clara de ilícito à garantia patrimonial (simulação, confusão patrimonial e desvio de finalidade)4.

A possibilidade de aplicação da técnica da desconsideração, nesse contexto, configura uma resposta jurídica adequada à fraude complexa e estrutural resultante do conluio patrimonial entre pessoas físicas. Distingue-se, de forma nítida, das hipóteses clássicas de fraude contra credores (art. 158 do CC) e de fraude à execução (art. 792 do CPC), pois, nestas, embora igualmente possíveis entre pessoas físicas, a medida visa à restituição de um bem determinado - como um imóvel, um veículo ou uma cota empresarial - à garantia patrimonial das dívidas do devedor, para que volte responder patrimonialmente e submeter-se a expropriação judicial.

Trata-se, portanto, não da mera fraude envolvendo um bem determinado, mas da instrumentalização de um patrimônio inteiro - que, embora formalmente pertencente a outrem, é materialmente controlado e usufruído pelo devedor5. Por essa razão, não há que se falar em reversão de um bem específico à esfera patrimonial do devedor, mas sim no reconhecimento da responsabilização patrimonial integral do terceiro colaborador, pois é esse conjunto patrimonial, como um todo, que efetivamente substitui - de modo simulado e fraudulento - o acervo do devedor inadimplente. Na técnica da desconsideração, já dissemos no nosso “responsabilidade patrimonial pelo inadimplemento das obrigações”, ao contrário, a medida de desconsideração incide sobre todo patrimônio e não somente sobre um bem específico, cuja titularidade formal é apenas um disfarce para proteger o devedor insolvente.

Importante registrar que não há obstáculo lógico, principiológico ou normativo à aplicação da técnica entre pessoas físicas, e, aqui sugere-se que se use a carcaça processual do incidente do IDPJ como procedimento adequado para este fim. É indiscutível que situações envolvendo fraude contra credores ou fraude à execução não se impõe qualquer limitação quanto à natureza jurídica dos sujeitos envolvidos - pessoas físicas ou jurídicas. O que importa é a caracterização do ato fraudulento e a vinculação entre o devedor originário e o terceiro, de modo que se possa afirmar a existência de ato que desfalca o patrimônio para lesar credores ou exequentes a depender do caso.

Com o avanço das tecnologias de pagamento, a possibilidade de um indivíduo controlar integralmente o patrimônio de outro apenas usando um smartphone, mediante uso de cartões, senhas, celulares e contas bancárias, algo que é absolutamente simples e corriqueiro. Isso exige do Poder Judiciário sensibilidade para perceber situações de abuso que, embora formalmente respeitem a autonomia das pessoas físicas envolvidas, materialmente violam a garantia patrimonial dos credores.

Assim, não se trata de ampliar indevidamente a exceção à autonomia patrimonial, mas de reconhecer que, em determinados contextos, essa autonomia é apenas aparente e serve de instrumento para prática de atos ilícitos. A desconsideração da personalidade da pessoa física - tal como já se admite da pessoa jurídica - poderá e deverá ser manejada, desde que comprovada a fraude, a simulação e o uso instrumental do patrimônio alheio com o propósito de frustrar a atuação jurisdicional e os direitos dos credores.

Enquanto o Poder Judiciário não admitir, com a firmeza necessária, a possibilidade de estender a responsabilidade patrimonial a terceiros - pessoas físicas - que voluntariamente emprestam seu patrimônio para viabilizar a blindagem ilícita de bens do devedor (também pessoa física), resta ao credor torcer para que os pacientes do pilantra abstenham-se de realizar qualquer pagamento à sua laranja afetiva e, mais que isso, refletir seriamente sobre a idoneidade ética e a competência profissional de quem, ao invés de honrar seus compromissos, dedica-se a arquitetar formas de subtração de sua responsabilidade patrimonial.

_______

1 CASTRO, Roberta Dias Tarpinian de. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica: as diferentes funções de um mesmo mecanismo processual. São Paulo: Quartier Latin, 2019.

2 Aqui não se considera a hipótese da “teoria menor da desconsideração” porque defendemos a posição de nestas situações estaríamos diante de responsabilidade patrimonial subsidiária. A respeito ver RODRIGUES, Marcelo Abelha. Responsabilidade patrimonial pelo inadimplemento das obrigações. 2ª edição. São Paulo: Foco, 2024.; RODRIGUES, Marcelo Abelha. “O ser é e não pode não ser e o não-ser não é e não pode ser de modo algum”, disponível em < https://www.migalhas.com.br/depeso/386763/o-ser-e-e-nao-pode-nao-ser-nao-ser-nao-e-e-nao-pode-ser-de-modo-algum>, acessado em 26.05.2025.

3 CORDEIRO, António Menezes. O Levantamento da Personalidade Colectiva no Direito Civil e Comercial. Coimbra: Almedina, 2000, p. 11 e 124.

4 Admitindo esta possibilidade ver CASTRO, Roberta Dias Tarpinian.; NACLE, Ricardo Amin Abrahão. “O incidente de desconsideração da personalidade jurídica no direito de família - muito além das relações intrafamiliares”, in Aspectos Contemporâneos das Ações de Família. Coordenado por Arlete Inês Aurelli e Rita de Cássia Curvo Leite. São Paulo: Almedina Brasil, 2024, p. 270-271.; MADALENO, Rolf. A desconsideração judicial da pessoa jurídica e da interposta pessoa física no direito de família e no direito das sucessões. 2ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 299 e ss.

5 O artigo 790, III (são sujeitos a execução os bens (...) III - do devedor, ainda que em poder de terceiros) poderia ser utilizado para realizar a constrição diretamente no patrimônio do terceiro, mas o uso misturado do patrimônio do terceiro por ele e pelo devedor poderia ensejar que ali não haveria mera detenção, embora seja uma saída possível para a hipótese (talvez menos aceita pelo Judiciário), o que ensejaria certamente, caso deferida a constrição, a oposição de embargos de terceiro.

Marcelo Abelha Rodrigues
Mestre e doutor em Direito pela PUC/SP. Pós-doutorado em Direito Processual pela Universidade de Lisboa. Professor e sócio do escritório Cheim Jorge & Abelha Rodrigues Advogados Associados.

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