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Insalubridade e desigualdade: por que a base de cálculo importa mais do que parece

O debate sobre a base de cálculo não pode ser travado apenas sob o prisma da coerência normativa. É preciso enfrentar os efeitos redistributivos e simbólicos de cada escolha.

31/5/2025

O debate jurídico sobre a base de cálculo do adicional de insalubridade não é novo. A tensão entre a regra do art. 192 da CLT1 — que prevê o salário mínimo como referência — e a vedação constitucional à vinculação desse mesmo salário como indexador de obrigações legais (art. 7º, IV da CF)2 gerou, ao longo dos anos, múltiplas interpretações, insegurança jurídica e práticas administrativas díspares.

Tribunais3, empresas públicas e órgãos de controle formularam respostas distintas, muitas vezes amparadas em compreensões legítimas, mas nem sempre coerentes com os efeitos concretos dessas escolhas sobre os trabalhadores.

Em meio a esse cenário, o caso da Ebserh - Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares oferece uma chave importante para repensar o problema4. A estatal, responsável pelo gerenciamento dos hospitais universitários Federais, adotou entre 2014 e 2019 o salário base dos empregados como referência para o pagamento do adicional de insalubridade.

Ainda que essa prática tenha sido, à época, sustentada como juridicamente defensável por parte da doutrina e da jurisprudência trabalhista5, seus efeitos materiais revelaram um resultado preocupante: a ampliação de desigualdades salariais entre trabalhadores igualmente expostos aos mesmos riscos.

A lógica é simples — e perversa. Ao vincular a compensação pelo risco à remuneração do empregado, a empresa passou a pagar adicionais significativamente menores a quem já ocupava posições de menor prestígio funcional e recebia os menores salários.

Técnicas de enfermagem, auxiliares de limpeza hospitalar e outros profissionais da base da pirâmide funcional, ainda que atuando em setores críticos como UTIs, enfermarias e laboratórios de alta exposição, receberam percentuais de adicional calculados sobre um valor muito inferior ao de colegas em funções de nível superior, mesmo quando a exposição a agentes nocivos era equivalente ou, em alguns casos, superior.

Essa diferenciação não é meramente quantitativa. Ela revela uma hierarquia institucional de valor atribuído às vidas no ambiente de trabalho6. Quando o risco é o mesmo, mas a compensação varia conforme o salário, o que se afirma — implicitamente — é que há vidas mais compensáveis do que outras. O adicional de insalubridade, originalmente concebido como salário-condição, perde sua natureza protetiva e passa a operar como mecanismo de valorização proporcional à renda.

É precisamente esse o ponto que merece atenção redobrada por parte do Poder Público, das empresas estatais e do sistema de justiça. O debate sobre a base de cálculo não pode ser travado apenas sob o prisma da coerência normativa. É preciso enfrentar os efeitos redistributivos e simbólicos de cada escolha.

Um modelo que reproduz desigualdades estruturais de raça, gênero e classe7 não pode ser legitimado por uma interpretação jurídica descolada dos compromissos constitucionais com a igualdade material, a dignidade humana e o direito ao meio ambiente de trabalho equilibrado.

Em 2019, a Ebserh editou a resolução 88, corrigindo parcialmente o critério e passando a adotar o salário mínimo como base para os novos contratos. Mas manteve a diferenciação para os vínculos anteriores, criando uma cisão interna artificial. O TCU (acórdão 2.345/23) e a Justiça Federal reconheceram a impropriedade dessa diferenciação e determinaram a uniformização do critério.

Essa decisão não apenas reafirma a necessidade de coerência jurídica, mas também representa uma inflexão normativa importante: reconhece que o valor da vida no trabalho não pode depender do contracheque do trabalhador. Riscos iguais exigem compensações iguais. A Constituição não admite8 que a proteção à saúde — direito fundamental de eficácia plena — seja fracionada conforme a posição funcional ocupada.

Para além do critério de base de cálculo, o problema se intensifica diante da fragilidade técnica da norma regulamentadora que trata da insalubridade. O anexo 14 da NR 15, que aborda a exposição a agentes biológicos, não define com precisão o que se entende por "exposição permanente". A ausência de critérios objetivos, especialmente em relação ao tempo efetivo de exposição durante a jornada, abre margem para interpretações subjetivas e desiguais. Isso compromete não apenas a justiça do pagamento, mas também sua racionalidade técnica.

Um trabalhador que permanece em contato com pacientes infectocontagiosos durante toda a jornada pode receber o mesmo adicional que outro que entra esporadicamente nesse ambiente. Ou, pior, pode não ter reconhecida sua exposição ao grau máximo se a exposição não for considerada "permanente" segundo um critério mal definido.

Essa indefinição fragiliza a proteção e reduz a credibilidade da política de proteção ao risco. É urgente revisar o anexo 14 da NR 15, incorporando parâmetros mensuráveis que levem em conta tempo, intensidade e frequência da exposição — e não apenas o mero contato com o agente nocivo.

Discutir o adicional de insalubridade sob a perspectiva da justiça exige deslocar o foco do argumento puramente normativo para os seus efeitos reais. Um sistema que remunera mais quem já ganha mais, mesmo diante do mesmo risco, contribui para consolidar desigualdades históricas. Um sistema que não reconhece o tempo real de exposição falha em proteger quem mais precisa. E um sistema que transforma um instrumento de alerta sanitário em complemento salarial reforça a ideia de que adoecer é aceitável, desde que bem pago.

O caso da Ebserh, portanto, ilumina um dilema mais amplo. Não se trata de negar a complexidade jurídica da questão — que envolve interpretação da CLT, aplicação da súmula vinculante 4 do STF e limites da atuação normativa de empresas públicas. A questão é outra: mesmo quando juridicamente defensável, uma política que naturaliza a desigualdade9 é, no mínimo, eticamente insustentável10.

Reorientar o debate exige enfrentar esse nó11. Não basta perguntar qual base de cálculo é juridicamente válida. É preciso perguntar qual base de cálculo produz justiça — e essa resposta não pode ignorar quem são os mais expostos, os menos protegidos e os mais esquecidos pela lógica meritocrática das estruturas salariais.

O adicional de insalubridade precisa voltar a ser o que a Constituição exige dele: um instrumento de proteção igualitária diante do risco, e não uma extensão das hierarquias do mercado travestidas de critério técnico.

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1 BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Decreto-Lei nº 5.452/1943, art. 192.

2 BRASIL. Constituição Federal, art. 7º, IV: "é vedada a vinculação do salário mínimo para qualquer fim".

3 STF. Súmula Vinculante nº 4: "Salvo nos casos previstos na Constituição, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial."

4 TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Acórdão nº 2.345/2023 – Plenário, rel. Min. Augusto Nardes.

5 TST. Súmula 228, redação de 2008 (posteriormente suspensa): autorizava o uso da remuneração do empregado como base de cálculo.

6  DARONCHO, Leomar. O adicional de insalubridade: uma análise à luz da Constituição Federal. Revista do TRT da 4ª Região, Porto Alegre, v. 72, p. 137–160, 2012.

7  COFEN/FIOCRUZ. Perfil da Enfermagem no Brasil, 2015. Disponível em: https://www.cofen.gov.br/perfilenfermagem/. Acesso em: 16 maio 2025.

8  BRASIL. Constituição Federal, art. 6º (direitos sociais); art. 7º, XXII (redução dos riscos inerentes ao trabalho); art. 225 (meio ambiente equilibrado).

9 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

10  FRASER, Nancy. Justiça interrupta. São Paulo: UNESP, 2008.

11  Sobre o dever de o Estado assegurar igualdade material nas relações de trabalho e o uso da LINDB como instrumento de transição normativa, ver: BRASIL. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB), arts. 23 e 24. GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes? São Paulo: Malheiros, 2017.

Thiago Lopes Cardoso Campos
Advogado sanitarista, vice-presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado - IDISA, conselheiro estadual de saúde da Bahia e consultor jurídico da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares - Ebserh.

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