Introdução
A relação entre humanos e máquinas sempre envolveu fascínio, medo e o desejo de imitação. Desde os autômatos do século XVIII, há uma busca contínua por criar artefatos capazes de reproduzir gestos e feições humanas. No século XXI, essa ambição se intensifica com a real - e por vezes assustadora - possibilidade de aplicação da inteligência artificial a objetos como os reborn, que de acordo com empresas do setor, alguns já contam com sensores, voz e reconhecimento facial. Outros desses bonecos podem ser fabricados inclusive à semelhança de entes queridos falecidos.
Este texto propõe-se a refletir sobre essa realidade na interseção entre tecnologia, afeto e Direito. Ao tratar dos reborn, com ou sem IA, e sua personalização com dados de falecidos, discutem-se os limites éticos e jurídicos - como o direito de personalidade post-mortem, a herança digital e a dignidade da memória. Estas temáticas representam uma realidade digna de séries futuristas como Black Mirror, mas que hoje se faz concreta. Quando a saudade é programável, que responsabilidades surgem? E qual o papel do Direito diante de um luto interativo?
A relação do ser humano e robôs
Autômatos, termo que se refere a bonecos que escrevem, tocam músicas, desenham, estes presentes desde o século XVIII, são considerados os precursores dos robôs modernos. Apesar de inteiramente mecânicos, encantaram o mundo com seus movimentos precisos e simulacros de humanidade, inspirando até mesmo obras cinematográficas, como o filme A Invenção de Hugo Cabret (2011).
A história destes robôs é narrada em um escrito do site da empresa Jaquet-Droz “Extraordinária História de Jaquet-Droz (2025)” que descreve os mais famosos deles: o "Escritor", o "Desenhista" e o "Músico", apresentados em 1774 e que ainda funcionam
Com o avanço das tecnologias, essa relação do homem com o robô passou a ocupar um lugar central nas discussões éticas, morais e jurídicas contemporâneas, inclusive no Brasil. Na medida em que a interação, especialmente entre idosos ou pessoas enlutadas, pode gerar vínculos profundos enquanto memórias humanas alimentam a falsa impressão de humanidade dada aos robôs.
Bebês reborn e inteligência artificial - dois limites se encontram
Com os avanços na robótica e na IA - inteligência artificial, torna-se plausivel imaginar bonecos hiper-realistas com movimento autônomo, reconhecimento facial, sons e respostas programadas. Porém, não é necessário mais necessário imaginar, já há na realidade tais bonecos, com IA, numa espécie de evolução dos autômatos de Jaquet-Droz.
Empresas do setor já fazem isso, dentre elas a espanhola Babyclon®, criadora dos modelos Babyclon® AI 2.0, que identifica em seus produtos e site que esses bonecos já imitam bebês reais, com IA podem agora chorar por fome ou colo e reconhecem seus cuidadores. Segundo a empresa, a proposta é oferecer uma experiência emocional próxima a de cuidar de um bebê humano.
A interação com esses bonecos já é significativa e tende a crescer e deste modo inaugura-se uma nova etapa na criação de bonecos hiper-realistas, assim desafia-se os limites do que se entende por “vida simulada”.
O luto como amor que perdura: o reflexo de memórias de familiares falecidos por meio da tecnologia
Ao refletir-se sobre o limite tanto da inteligência artificial quanto da precisão da imitação de bebês reborn sobre traços humanos surge então uma questão instigante: se uma mãe enlutada encomenda um boneco reborn com aparência idêntica a de seu filho falecido, boneco esse ou não de IA , haveriam implicações jurídicas? Poderia haver um conflito entre o direito à imagem do falecido e o direito à memória e ao luto dos familiares?
O cenário parece de ficção científica, porém casos reais a seguir ilustram a complexidade dessa dinâmica, como a preservação da memória e o enfrentamento do luto se entrelaçam com a aceitação (ou não) social e familiar desses artefatos afetivos.
Um exemplo emblemático é o de Betty Bading, da Tasmânia, que criou uma boneca reborn com a aparência do filho Greg, falecido ainda bebê. Betty passou a visitar asilos com a boneca, oferecendo “terapia do colo” e promovendo conforto emocional a idosos solitários. Em suas palavras: “Agora posso segurar Greg sempre que quiser” (NEWS.COM.AU, 2023).
Nos Estados Unidos, Christina Keeler buscou alívio emocional no colecionismo de bonecas hiper-realistas após sofrer um aborto. Seu marido, inicialmente cético, passou a apoiá-la ao perceber os efeitos positivos dessa prática. Ainda assim, enfrentaram resistência social: o marido de Christina chegou a ser excluída dos negócios da família em razão do hobby (Keeler, 2023).
Em um caso mais complexo, Paula Weston, ao perder o marido, encomendou uma boneca semelhante a ele quando bebê. A boneca, chamada Brently, tornou-se sua companhia constante. Em entrevista à SBS News, Paula relatou: “Eu estava em luto profundo... chorava o tempo todo”. (SBS The Feed, 2024).
Esses exemplos ilustram não só o potencial terapêutico desses artefatos, mas também os riscos de dependência emocional e negação da perda ao não enxergar-se que esses bonecos não são humanos e nem tem vida. Enquanto por um lado podem ser usados para trabalho e alívio ao luto, mas por outro podem ofender a memória que familiares têm de seus entes queridos falecidos.
Luto digital: entre as deepfakes, possibilidades dos reborns e os limites do direito
Esse debate acerca da memória de falecidos ganha impulso na medida em que com a inteligência artificial é possível reanimar a fotos e criar vídeos com a imagem de falecidos no que se conhece como “deepfake afetiva”.
Sem uma regulamentação específica essas deepfakes foram” liberadas”, desafiando a memória e direitos de personalidade de entes falecidos. O único impedimento é a limitação conforme a vontade da pessoa enquanto viva sobre o uso de sua imagem quando falecer, um exemplo disso é da cantora Madonna, que proibiu o uso de sua imagem via IA.
Um pouco a frente, outro exemplo possível seria ao dotar, via IA, os reborns de traços específicos de pessoas falecidas - voz, trejeitos, frases - com base em arquivos pessoais como fotos, vídeos e áudios, haja vista que já os exemplos dotados da fisionomia, para outros aspectos de personalidade é uma possibilidade inerente.
A simulação da presença de alguém já falecido levanta questões jurídicas e éticas ainda pouco regulamentadas: o direito à imagem persiste após a morte? Quem pode autorizar o uso desses dados - herdeiros, cônjuge, empresas? Essas criações devem se restringir ao uso privado ou podem ser comercializadas? Seriam apenas ferramentas ou ocupariam espaços de afetividade humana?
Embora as respostas ainda sejam incertas, é claro que, diante da sofisticação da IA e da robótica, o Direito precisará acompanhar - com profundidade e sensibilidade - os novos contornos do luto, da memória e da identidade no século XXI.
O direito de personalidade ante a era digital
O uso da tecnologia para superação do com as deepfakes e os bonecos hiper realistas ultrapassou a mera aparência ao ponto atinge os direitos à personalidade. (Aqui pontua-se por óbvio mas necessário de que bonecos reborn não tem personalidade, ainda que com aparencia humana, de falecidos ou não. O direito a personalidade decorre de uma figura humana que existe ou existiu, com tutela juridica própria).
Esses direitos de personalidade são definidos como subjetivos, inerentes à pessoa, que garantem a sua proteção e dignidade, previstos no CC, especificamente nos arts. 11 a 21, e também são abordados na Constituição Federal, em seu art. 5º.
A personalidade civil, e seus direitos decorrentes, inicia-se com o nascimento de uma pessoa e termina com a sua morte, conforme o art. 6º do CC. No entanto, alguns direitos da personalidade, como a honra e a imagem, podem ser protegidos mesmo após o falecimento, especialmente quando lesados indiretamente.
Esses direitos permanecem, o art. 12 do CC define a tutela sobre eles "Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau."
É possibilitado, portanto, aos herdeiros defesa dos direitos de personalidade do de cujus, cabe a eles zelarem pela memória do ente falecido. O professor Silvio Romero Beltrão define que “Nesse sentido, o CC concede legitimidade aos herdeiros para proteger a memória do falecido, os quais podem exercer a tutela jurídica dos direitos da personalidade”
Silvio Beltrão define ainda que os direitos de personalidade são relativos ao ser, do que se pode identificar como relativos a alguém “Os direitos de personalidade, como primeiro conceito afim dos direitos fundamentais, são posições jurídicas do homem que ele tem pelo simples fato de nascer e viver; são aspectos imediatos da exigência de integração do homem, e ainda condições essenciais ao ser e dever ser.”
Esse cenário, de permanência da personalidade de alguém mesmo após a sua morte e tutela dos direitos dela decorrentes suscita questões jurídicas complexas. No campo do direito sucessório digital, discute-se o destino dos dados relativos a alguém após a sua morte, a partir do nível de acesso dos herdeiros a eles A professora Priscilla Barbiero, em sua tese de mestrado, de 2023, observa que os modelos tradicionais não são suficientes para tratar dos chamados “bens híbridos” - de valor patrimonial, afetivo e informacional dos dados digitais de uma pessoa. Em especial quanto ao acesso e tutela dos dados, há visões mais arraigadas e mais abertas ao acesso e utilização dos dados digitais pós mortem.
Segundo ela: “Embora tenham trazido excelentes contribuições para a temática, não se mostraram suficientes para uma tutela adequada em relação aos bens híbridos. [...] O presente trabalho sugere uma terceira via, sob a perspectiva do Direito Civil-Constitucional, que harmonize as duas correntes.”
Os desafios da era digital se assemelham aos da época do autômatos, mas agora vão além das questões técnico-jurídicas, envolvendo ética, luto, memória e inovação, À medida que a inteligência artificial simula relações humanas, até mesmo com os que já partiram, o Direito se vê diante da necessidade de estabelecer limites e responsabilidades. A tecnologia, a dor e a saudade se entrelaçam em novas formas de vínculo pós-morte, como os bonecos reborn à semelhança de falecidos, com ou sem IA, que materializam essa tentativa de reviver laços. Entre a lembrança e a presença, o Direito deve atuar com sensibilidade, garantindo tanto a dignidade dos que se foram quanto a proteção das emoções dos vivos - para que a saudade, ainda que programada, nunca perca sua humanidade.
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