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Mudança na lei Maria da Penha pode ser um passa-moleque no regime de bens

PL 1.608/24 permite uso de valores de conta conjunta por suposta vítima de violência doméstica, subvertendo o regime de bens com base em declaração unilateral.

5/6/2025

1. Introdução

O PL 1.608/24, de relatoria da deputada federal Laura Carneiro, propõe alterar o CC e a lei Maria da Penha para autorizar que mulheres que se declaram em situação de violência doméstica possam utilizar valores existentes em contas bancárias conjuntas com seus parceiros para se realocarem em local seguro, independentemente do regime de bens do casamento. Embora o projeto seja apresentado como uma ferramenta de proteção à mulher vulnerável, carrega consigo um perigoso potencial de subversão jurídica. Com este ensaio, tenho a alegria e ao mesmo tempo a responsabilidade de ser o primeiro advogado a apresentar minhas primeiras impressões críticas sobre esse projeto, expondo os riscos práticos e jurídicos de sua eventual conversão em lei.

2. Um cavalo de troia legislativo chegando

Sob o pretexto de conferir maior proteção à mulher supostamente vítima de violência doméstica, o PL 1.608/24 camufla uma grave alteração da lógica patrimonial dos casamentos. Trata-se, em verdade, de um verdadeiro cavalo de troia, que esconde em seu interior um mecanismo para alterar unilateralmente o regime de bens livremente escolhido pelas partes no momento do matrimônio, com base apenas em uma declaração unilateral da suposta vítima.

3. Declaração unilateral como fundamento para intervenção patrimonial

O projeto parte da presunção de que toda mulher que se autodeclara vítima de violência doméstica está, de fato, em situação de risco, e por isso, já estaria legitimada a dispor de valores da conta conjunta, independentemente do regime de bens adotado previamente. Tal construção ignora por completo a necessária apuração judicial e a existência de provas mínimas. Na prática, a mulher bastaria se autodeclarar vítima, solicitar medidas protetivas, e com isso, ter direito a totalidade dos valores existentes em conta conjunta, mesmo que estejam sob regime de separação total de bens.

4. Flexibilização indevida do regime de bens

Atualmente, em regra a modificação do regime de bens exige ação judicial específica, com manifestação de ambos os cônjuges e autorização judicial justificada, justamente para evitar fraudes e proteger eventuais credores. O PL 1.608/24, no entanto, ignora essa complexidade e propõe uma flexibilização unilateral do regime de bens, permitindo que a suposta vítima se beneficie de recursos que, legalmente, poderiam nem mesmo lhe pertencer, apenas e tão somente com base em uma declaração unilateral de se encontrar em situação de risco.

5. Ausência de limite objetivo e o risco de “cheque em branco”

O projeto menciona que a retirada será permitida “nos valores necessários à reacomodação” da vítima, mas não define nenhum parâmetro objetivo para esse cálculo. Essa vagueza permite que qualquer valor seja justificado sob a ampla e subjetiva justificativa de "reacomodação", transformando a norma em um verdadeiro cheque em branco a favor da suposta vítima e em prejuízo de quem divide a conta, frequentemente o homem acusado.

6. A conta conjunta não equivale à comunhão plena dos valores

Outro ponto negligenciado pelo projeto é o fato de que a existência de conta conjunta não implica propriedade compartilhada plena dos valores nela depositados. Muitos casais mantêm contas conjuntas apenas por praticidade, mas os valores ali depositados pertencem, de fato, a um dos cônjuges. O projeto, ao ignorar essa realidade, transforma o simples compartilhamento bancário em presunção de copropriedade absoluta, o que é tecnicamente incorreto e juridicamente injusto.

7. Prejuízo irreversível e falta de reparação futura

Caso a suposta violência doméstica não se confirme, os valores já retirados dificilmente serão restituídos. Se a mulher não dispuser de meios de restituição dos valores indevidamente antecipados, paciência: permanecerá o companheiro ou marido no prejuízo. A lei, portanto, cria um mecanismo de dano patrimonial irreversível com base em decisão precária, violando princípios constitucionais como o contraditório, a ampla defesa e a segurança jurídica.

8. Perigosa banalização de medidas cautelares

A proposta também contribui para a banalização do uso das medidas protetivas de urgência, que, aos poucos, vêm sendo usadas como atalho para discussões de guarda, alimentos e patrimônio. O projeto de lei estimula a utilização indevida dos instrumentos de proteção, na medida em que não traz nenhuma consequência a parte que usa indevidamente a proteção legal. As MPUs foram concebidas como instrumento emergencial de proteção da integridade da mulher vulnerável, não como meio de rever informalmente a partilha de bens anteriormente pactuada, o que o projeto de lei, de forma velada, acaba por autorizar e fomentar.

9. A instrumentalização política do discurso de proteção

Lamentavelmente, é inegável o crescimento exponencial do uso do discurso da violência de gênero como plataforma política. Muitos parlamentares, ao apresentarem projetos de lei nessa seara, miram no eleitorado feminino, buscando popularidade sem o necessário rigor técnico. O PL 1.608/24 é mais um exemplo de proposta tecnicamente frágil, juridicamente arriscada, populista e politicamente oportunista que pode abrir sérios e perigosos precedentes para mudanças no regime patrimonial a partir de autodeclarações, às custas da segurança jurídica.

10. Conclusão

O PL 1.608/24 representa uma séria ameaça à segurança jurídica, ao regime de bens pactuado entre as partes e ao devido processo legal. A proposta, embora apresentada como instrumento de proteção à mulher, utiliza uma narrativa sensível para legitimar uma intervenção patrimonial injustificada, com base na simples autodeclaração de vítima. A ausência de limites objetivos, a distorção do conceito de conta conjunta e o esvaziamento das garantias contratuais tornam esse projeto um marco de retrocesso no direito civil e familiar brasileiros e na lei Maria da Penha. É preciso que o Congresso Nacional atue com responsabilidade e recuse esse tipo de inovação legislativa que sacrifica o princípio da legalidade em nome de uma proteção aparente e ilusória.

Como primeiro advogado a analisar criticamente o PL 1.608/24, alerto: trata-se de um avanço disfarçado, mas que, no fundo, mina pilares essenciais da ordem jurídica.

Júlio Cesar Konkowski da Silva
Advogado especializado na defesa na LEI MARIA DA PENHA e em MEDIDAS PROTETIVAS, com atuação em todo o Brasil.

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