A cláusula de barreira nas ações de alimentos é uma importante ferramenta jurídica desenvolvida para proteger o alimentado contra oscilações artificiais ou fraudulentas na remuneração do alimentante, especialmente em contextos em que há vínculo empregatício instável ou manipulado com o objetivo de reduzir o valor da pensão alimentícia.
Imagine, por exemplo, que a pensão seja fixada nos seguintes termos: “30% dos rendimentos líquidos do alimentante, nunca podendo ser inferior a um salário mínimo”. Se o alimentante passar a ter um vínculo formal com remuneração de R$ 3.000,00 — resultando em 30% = R$ 900,00 — a cláusula de barreira impede a aplicação desse valor inferior, e garante que o valor pago continue sendo de um salário mínimo vigente.
Dessa forma, essa cláusula é frequentemente aplicada, especialmente pelo TJ/RJ, quando a pensão é fixada com dois parâmetros alternativos: um correspondente ao valor calculado sobre rendimentos formais (com vínculo empregatício) e outro fixado em valor monetário absoluto (sem vínculo ou em caso de perda de emprego). A cláusula estabelece, então, que deverá prevalecer sempre o valor mais elevado entre os dois, funcionando como uma "barreira de proteção" mínima ao sustento do alimentado.
Finalidade da cláusula
O objetivo principal da cláusula de barreira é evitar que o alimentante manipule sua condição profissional ou registre vínculos empregatícios artificiais — como contratos com remunerações reduzidas ou até mesmo demissões simuladas — para se beneficiar de uma redução indevida da pensão.
Essa prática, que visa fraudar a base de cálculo da pensão, viola frontalmente os princípios que regem o Direito de Família, especialmente o melhor interesse do menor e o dever de solidariedade familiar. A cláusula, portanto, atua como um mecanismo de estabilidade para o alimentando, assegurando um patamar minimamente digno para sua subsistência.
Fundamento jurídico e jurisprudencial
A cláusula de barreira encontra respaldo no princípio do melhor interesse do alimentado, previsto no art. 227 da CF/88, e no binômio necessidade do alimentado X possibilidade do alimentante, consagrado no art. 1.694 do CC.
A jurisprudência do TJ/RJ também tem acolhido a cláusula, em situações nas quais há evidências de tentativa de ocultação de renda ou manipulação do vínculo empregatício com o intuito de fraudar a obrigação alimentar.
É o que se extrai dos julgados colacionados a seguir:
“(...). Prova documental existente nos autos originários que demonstra que o Agravante trabalha como vendedor, e que há variação em seu salário em razão de comissões, tendo recebido nos meses de junho a agosto o valor mensal de aproximadamente R$ 3.410,20 . (...). Alimentos provisórios que, em sede de cognição sumária e, diante dos ganhos que foram comprovados pelo Agravante, comportam revisão apenas para reduzir o percentual de 70% do salário mínimo, para o caso de inexistir vínculo empregatício, para o equivalente a 50% do salário-mínimo, devendo este valor servir como cláusula de barreira no caso de existência de emprego formal, sendo, neste sentido, o parecer do Ministério Público. Provimento parcial do agravo de instrumento. (TJ-RJ - AGRAVO DE INSTRUMENTO: 00740993320238190000, Relator.: Des(a) . ANA MARIA PEREIRA DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 14/12/2023, DECIMA SETIMA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 26, Data de Publicação: 15/12/2023)
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ALIMENTOS. CLÁUSULA DE BARREIRA. FIXAÇÃO DOS ALIMENTOS EM PERCENTUAL SOBRE RENDIMENTOS COM VALOR MÍNIMO GARANTIDO . PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. RECURSO DESPROVIDO. I. CASO EM EXAME 1 . Apelação cível interposta pelo réu contra sentença que fixou alimentos definitivos no percentual de 17% dos rendimentos brutos do alimentante, descontadas apenas as deduções obrigatórias, desde que o valor resultante não seja inferior ao montante fixado para a hipótese de ausência de vínculo empregatício, o qual foi estabelecido em 60% do salário mínimo, além de estabelecer o pagamento de metade das despesas com material e uniforme escolar. 2. Recurso exclusivo do alimentante. II . QUESTÃO EM DISCUSSÃO 3. A questão em discussão consiste em verificar se é legítima a fixação de cláusula de barreira no tocante aos alimentos a serem pagos enquanto o alimentante se encontrar empregado com vínculo empregatício, e se o percentual de 60% do salário mínimo é razoável e proporcional. III. RAZÕES DE DECIDIR 4 . Cláusula de barreira que tem por finalidade assegurar ao alimentado o maior valor possível de pensão, compatível com as possibilidades do alimentante, impedindo que, mesmo com vínculo empregatício formal, o valor da pensão fique abaixo do fixado para a hipótese de inexistência de vínculo, o que preserva a efetividade da obrigação alimentar. 5. Jurisprudência do STJ que relativiza o princípio da congruência nas ações de alimentos, permitindo ao magistrado fixar valor diverso do pleiteado quando amparado no binômio necessidade/capacidade, à inteligência do artigo 1.694 CC, inexistindo julgamento ultra petita . 6. Cláusula de barreira que encontra respaldo nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (CF/1988, art. 227, caput) e do melhor interesse da criança (ECA, art. 3º), funcionando como salvaguarda de direitos fundamentais do alimentado . 7. Condição de empregado do alimentante e a existência de outra família que não afastam a obrigação de prestar alimentos de forma adequada à filha menor, em razão do princípio da paternidade responsável. 8. Proteção dos alimentos futuros (alimentos ad futurum), evitando oscilações abruptas no valor da pensão e garantindo estabilidade mínima para o sustento da criança . IV DISPOSITIVO E TESE 9. Recurso desprovido. Majoração dos honorários advocatícios para 12% sobre uma anuidade do valor da pensão, considerando a média dos últimos 12 meses, observada a gratuidade de justiça deferida. Tese de julgamento: 1 . A fixação de cláusula de barreira em ação de alimentos é legítima e visa assegurar o valor da pensão. 2. O princípio da congruência pode ser relativizado nas ações de alimentos. 3. A cláusula de barreira preserva o melhor interesse da criança e concretiza o princípio da dignidade da pessoa humana ao garantir subsistência digna ao alimentado. Dispositivos relevantes citados: CF/1988, art. 227, caput; CC/02 artigo 1694; ECA, art. 3º . Jurisprudência relevante citada: STJ, AgInt nos EDcl no AREsp n. 2.062.127/SP, Rel . Min. João Otávio de Noronha, Quarta Turma, j. 21.08 .2023, DJe 23.08.2023. TJ/RJ, Apelação Cível n . 0028191-89.2020.8.19 .0021, Des. Milton Fernandes de Souza, j. 10.05 .2022. TJ/RJ, Apelação Cível n. 0006265-30.2021 .8.19.0211, Des. Lucia Helena do Passo, j . 19.12.2023. (TJ-RJ - APELAÇÃO: 00149138620228190203, Relator.: Des(a) . CRISTINA TEREZA GAULIA, Data de Julgamento: 15/04/2025, QUARTA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 5ª CÂMARA CÍVEL), Data de Publicação: 24/04/2025)
(...) Alimentos estipulados em 30% (trinta por cento) do salário mínimo nacional ou, caso constatado elo laboral, 20% (vinte por cento) dos rendimentos brutos do genitor, abatidos os descontos obrigatórios, além de 50% (cinquenta por cento) das despesas com medicamentos e material escolar. Razoabilidade e proporcionalidade. Precedentes deste Nobre Sodalício. Cláusula de barreira . Mecanismo voltado a evitar que o Alimentante ingresse no mercado formal de trabalho com o único e exclusivo intuito de furtar-se à aplicação do maior percentual alimentar estabelecido, com vistas à diminuição do valor da prestação. Possibilidade. Proteção à prole. Precedentes deste Egrégio Tribunal. Acolhimento da insurgência autoral, nesta parte. Honorários recursais. Incidência do disposto no art. 85, § 11, do CPC, em relação ao Requerido . Majoração não aplicável ao Requerente. Reforma, em parte, do decisum para fixação de cláusula de barreira. Conhecimento de ambos os recursos, desprovimento do Apelo defensivo e provimento parcial da Apelação autoral. (TJ-RJ - APL: 00167857020178190023 202200182642, Relator: Des(a) . SÉRGIO NOGUEIRA DE AZEREDO, Data de Julgamento: 26/01/2023, DÉCIMA PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 01/02/2023)
Ressalte-se, no entanto, que o mesmo tribunal possui julgados entendendo pelo descabimento da cláusula de barreira quando não há qualquer indicação de que o alimentante possa estar omitindo sua renda para prejudicar o direito do alimentando, não havendo que se presumir sua má fé, resguardando eventual variação da base de cálculo ao caso concreto, em ação revisional de alimentos:
APELAÇÃO CÍVEL. Direito de Família. Alimentos. Filhos . Procedência parcial do pedido. Condenado o genitor a arcar com 50% das despesas dos autores com material escolar e uniforme e, bem assim a pagar alimentos na hipótese de laborar com vínculo empregatício no percentual de 30% de seus rendimentos brutos, sendo 15% para cada filho, deduzidos os descontos obrigatórios e, na hipótese de trabalhar sem vínculo empregatício, no valor equivalente a 40% do salário mínimo, sendo 20% para cada filho. Apelo dos alimentados. Irresignação recursal limitada ao pleito de fixação de cláusula de barreira, a fim de evitar que a existência de vínculo empregatício acarrete obrigação alimentar em valor inferior ao que seria devido na hipótese de trabalho sem vínculo . Descabimento. Impossibilidade de se fixar cláusula de barreira quando não há como se prever quais serão os rendimentos que, futuramente, o alimentante possa vir a receber, sob pena de se mostrar desproporcional e comprometer a sua própria subsistência. Da mesma forma, não se pode igualmente presumir eventual má-fé do alimentante que, buscando fugir de sua responsabilidade paterna, se submeta à relação de trabalho que reduza os seus rendimentos em prejuízo ao alimentado. Compete à parte interessada, futuramente, em havendo alteração das condições econômicas quando do estabelecimento dos alimentos, postular a respectiva revisão por meio de ação própria . Manutenção da sentença. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO. (TJ-RJ - APL: 00155178320188190204 2022001101329, Relator.: Des(a). JEAN ALBERT DE SOUZA SAADI, Data de Julgamento: 05/04/2023, SEXTA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 10/04/2023)
Da validade e efetividade da cláusula
A cláusula de barreira não fere o princípio da legalidade, tampouco a liberdade contratual das partes, e está plenamente amparada pelos princípios da proteção da dignidade humana, do melhor interesse do alimentado e da boa-fé objetiva.
Ao contrário, sua adoção fortalece a estabilidade da obrigação alimentar, evitando que o alimentado se veja prejudicado por atos unilaterais ou simulados por parte do alimentante, como, por exemplo, a formalização de vínculos empregatícios com baixa remuneração apenas para reduzir a base de cálculo da pensão.
Conclusão
A cláusula de barreira, enquanto instrumento de natureza protetiva nas ações de alimentos, consagra-se como um mecanismo eficaz para assegurar a efetividade da obrigação alimentar frente a tentativas de burla ou manipulação da base de cálculo da prestação. Sua finalidade precípua é preservar a dignidade do alimentado, sobretudo em contextos nos quais se identifique conduta do alimentante tendente à ocultação de renda ou à formalização de vínculos laborais simulados com remuneração artificialmente reduzida.
A admissibilidade da cláusula encontra respaldo nos princípios constitucionais do melhor interesse do menor (CF, art. 227) e da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), bem como no binômio necessidade X possibilidade, previsto no art. 1.694 do CC. A jurisprudência pátria, especialmente dos Tribunais estaduais, tem reconhecido sua legitimidade, considerando que sua fixação não afronta os limites da legalidade ou da congruência, mas, ao contrário, materializa a proteção de direitos fundamentais indisponíveis.
Destarte, a cláusula de barreira constitui técnica de tutela jurisdicional voltada à concretização do princípio da efetividade, impedindo que o alimentado seja submetido a oscilações abruptas e injustificadas no valor da pensão em virtude de modificações artificiais na condição econômica do alimentante. Sua aplicação, ainda que excepcional e dependente da análise das peculiaridades do caso concreto, revela-se compatível com os ditames do ordenamento jurídico, notadamente no que tange à boa-fé objetiva, à solidariedade familiar e à função social da prestação alimentar.