1. Introdução
A promulgação da lei 14.550/23 consolidou o entendimento jurisprudencial de que as medidas protetivas de urgência previstas na lei Maria da Penha possuem caráter autônomo em relação ao inquérito policial e à ação penal correlatos. Essa autonomia, no entanto, tem sido equivocadamente interpretada por parte da doutrina e da jurisprudência como uma forma de independência absoluta entre as medidas protetivas e os demais institutos jurídicos de persecução penal. Este ensaio propõe uma crítica a essa leitura radicalizada e reducionista, sustentando que, embora autônomas, as medidas protetivas não podem ser consideradas independentes do inquérito e da ação penal a elas correlatos, sob pena de se comprometer a coerência, a racionalidade e a segurança jurídica do sistema jurídico.
2. A autonomia positivada pela lei 14.550/23
A lei 14.550/23 positivou o entendimento já consagrado nos tribunais de que as medidas protetivas de urgência têm natureza autônoma. Isso significa que sua concessão e manutenção não dependem da existência de uma ação penal em curso, nem mesmo da tipificação penal imediata dos fatos alegados. A ideia central é proteger preventivamente a suposta vítima diante de um cenário de risco, ainda que o processo penal nem sequer tenha sido iniciado.
3. O equívoco da independência absoluta
Apesar de reconhecer a autonomia das protetivas, é equivocado entender que estas sejam completamente independentes do inquérito policial ou da ação penal. Afirmar que o arquivamento do inquérito ou a absolvição do acusado não impactam na vigência das protetivas é construir um artificialismo retórico incompatível com o próprio sistema de garantias. O Direito é uno, e seus institutos dialogam entre si de forma constante. Separá-los como se fossem ilhas jurídicas isoladas compromete a racionalidade sistêmica e a segurança jurídica.
4. Cognição sumária vs. cognição exauriente
As medidas protetivas são deferidas com base em cognição sumária — ou seja, com juízo superficial e fundado unicamente no relato da mulher que se autodeclara vítima. Não há necessidade, no momento inicial, de produção de provas ou verificação do contraditório. Contudo, o arquivamento de inquérito ou a absolvição do acusado no processo penal resulta de cognição exauriente (leia-se: aprofundada), em que provas foram colhidas, contraditório observado e, ao final, o Estado-juiz inocentou o acusado do mesmo fato que deu origem à concessão das medidas protetivas. Sustentar que a cognição exauriente produzida no inquérito policial e no processo criminal não é suficiente para afetar uma medida protetiva fundada em juízo sumário é inverter valores importantes em nome de uma militância radical.
5. A incoerência sistêmica e o desprestígio às instituições
A manutenção de medidas protetivas após o arquivamento do inquérito ou a absolvição do acusado implica grave incoerência sistêmica. É dizer que o trabalho da polícia judiciária, do Ministério Público e do Poder Judiciário não tem valor suficiente para revogar um provimento judicial cautelar baseado em mera alegação. Esse desprestígio às instituições é perigoso e gera descrédito no sistema de justiça. A função investigativa e a atuação do Ministério Público perdem força quando ignoradas em favor de medidas prorrogadas a partir do arquivamento do inquérito policial ou da absolvição do acusado.
6. A confusão conceitual: Autonomia não é independência
É essencial distinguir os conceitos de autonomia e independência. A autonomia diz respeito à possibilidade de concessão das medidas protetivas sem prévia ou simultânea instauração de processo penal. Já a independência implica ausência de qualquer relação entre os institutos, o que é inaceitável no ordenamento jurídico. Uma vez que a medida protetiva nasce para tutelar uma mulher vulnerável, a respeito de fatos que também estão sob análise penal, a evolução desse fato — especialmente a constatação de que ele não existiu — deve impactar a medida que dele decorreu.
7. Segurança jurídica e racionalidade
Permitir que medidas protetivas sigam vigentes após arquivamento do inquérito ou a absolvição do acusado é atentatório à segurança jurídica e à racionalidade do sistema. O acusado permanece sob restrições pessoais — como afastamento do lar, proibição de contato com filhos, ou limitações ao seu ir e vir — sem que reste qualquer indício validado em cognição robusta de que tenha praticado violência. Esse quadro favorece abusos, amplia o uso estratégico das medidas e gera distorções que comprometem a própria legitimidade da lei Maria da Penha.
8. Conclusão
A autonomia das medidas protetivas é uma garantia relevante para proteção imediata da mulher vulnerável, mas não pode ser confundida com independência absoluta. O arquivamento do inquérito ou a absolvição do acusado no processo penal devem, sim, repercutir na revisão ou revogação das protetivas, especialmente porque as protetivas são concedidas de forma precária a partir de cognição sumária. O sistema jurídico precisa ser coerente, racional e dialogal. A manutenção de medidas protetivas em situações em que o Estado arquivou a investigação ou reconheceu a inocência do acusado, fere de morte o princípio da segurança jurídica, fragiliza a função das instituições investigativas e judicantes, e compromete a legitimidade do próprio instituto. Defender a racionalidade e a coerência do sistema não é negar proteção à mulher — é garantir que essa proteção seja exercida com justiça.