Migalhas de Peso

A nova inquisição não precisa de fogueira

Um ensaio contundente sobre o silenciamento da Justiça do Trabalho e a criminalização do ato de julgar em tempos de dogmas tecnocráticos e mercadológicos.

17/6/2025

Há cenas que atravessam os séculos. Mudam os trajes, mudam os autos, mas o ritual permanece. Antes, aconteciam entre confessionários e calabouços. Hoje, emite-se o despacho, instaura-se a sindicância, planta-se a suspeita. O fogo já não consome corpos, consome funções.

Na história dos tribunais, poucos modelos foram tão eficientes em sua brutalidade quanto o inquisitorial. Fundado sobre a promessa da “verdade real”, sustentado pela confissão forçada e mantido pela punição do dissenso, operava com vestes sagradas e mãos invisíveis. A sentença já vinha pronta. A defesa, quando tolerada, era ruído. E o processo, um teatro de convicções.

Séculos depois, o cenário se atualiza. Substituem-se as fogueiras por protocolos. Os tormentos por despachos. As cruzes, por brasões. Mas a engrenagem que desautoriza a escuta ainda gira. E gira com vigor.

A recente abertura de reclamação disciplinar contra uma desembargadora, por retomar o julgamento de processos suspensos por decisão monocrática do STF, atualiza essa engrenagem. Nenhum manifesto. Nenhuma insubordinação. Apenas o exercício da função jurisdicional. Mas em tempos de dogmas revestidos de técnica, julgar pode ser interpretado como desvio.

Na lógica inquisitorial contemporânea, a fé não é mais religiosa, é mercadológica. A pejotização, travestida de autonomia, tornou-se um desses dogmas. Questioná-la é quase um ato herético. E heresia, como sempre, exige resposta exemplar.

Ao determinar a suspensão nacional de processos que discutem vínculos mascarados sob contratos de pessoa jurídica, criou-se um interdito: não se deve mais julgar. E quem ousa fazê-lo pode ser investigado, desautorizado, isolado. Não com violência física, mas com o peso simbólico da desconfiança institucional.

A Justiça do Trabalho, nesse cenário, já não é instituição, é ameaça. Sua função protetiva incomoda porque, ao escutar o conflito social, revela o que tantos tentam esconder: que a liberdade contratual não é igual para todos; que há quem escolha, e há quem aceite por não ter escolha alguma.

Enquanto os autos dormem nos escaninhos da suspensão, os corpos seguem em jornada. A informalidade não espera. A ausência de vínculo não conhece liminares. A jornada sem direitos não aguarda pareceres. E o silêncio institucional, nesse caso, também é forma de violência.

A decisão que pune quem julga não é apenas exceção, é sintoma. E, pouco a pouco, naturaliza-se o anormal. Julgar vira afronta. Defender a Constituição vira risco. E assim se ergue, tijolo por tijolo, um novo tribunal da fé. Não mais da fé divina. Mas da fé no mercado, na desregulamentação, na tecnocracia que pretende substituir a justiça pela neutralidade.

O que está em jogo não é só a independência da magistratura. É a própria espinha dorsal da CF/88: a dignidade do trabalho, o acesso à jurisdição, o direito de ser ouvido. Quando uma magistrada se torna alvo por exercer sua função, a exceção se transforma em doutrina. E o perigo já não mora nos desvios, mora na coragem.

Talvez, no tempo futuro, não sejam os pareceres que julgarão essa época. Será a memória. Será a pergunta das gerações que virão: como foi possível suspender não apenas processos, mas também a escuta? Como foi possível transformar o gesto de julgar em ato de resistência?

Porque não há fogueiras acesas. Mas ainda há corpos queimando. Queimando em jornadas exaustivas, em silêncios impostos, em direitos adiados indefinidamente. E quando a Justiça do Trabalho é silenciada, o que arde, mesmo sem fumaça, é a própria ideia de justiça.

Isabel Cristina de Medeiros Tormes
Formada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Isabel Cristina de Medeiros Tormes é advogada com atuação exclusiva na área trabalhista há quase três décadas. Especialista em Direito da Moda (Fashion-Law), é presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo (AATSP) e sócia do Rodrigues Jr. Advogados.

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