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União estável e casamento de menores: Análise sob a lei 13.811/19

Em que medida a lei 13.811/19, que proíbe o casamento de menores de 16 anos, gerou reflexos nas uniões estáveis?

24/6/2025

Introdução

O debate jurídico sobre a formação das entidades familiares no Brasil tem ganhado contornos cada vez mais complexos, especialmente após a promulgação da lei 13.811/19. Essa norma trouxe importantes alterações ao CC, proibindo de forma absoluta o casamento de menores de 16 anos, o que acendeu discussões sobre os reflexos dessa vedação nas uniões estáveis envolvendo adolescentes. Nesse contexto, torna-se fundamental analisar os conceitos de impedimentos matrimoniais, capacidade para o casamento e os efeitos jurídicos dessa nova legislação sobre as diferentes formas de constituição familiar. Este estudo busca compreender os impactos da lei 13.811/19, confrontando os dispositivos legais com a realidade social brasileira e com a interpretação jurisprudencial atual.

Constituição de famílias: Entre o casamento e a união estável

A CF/88, ao inaugurar o capítulo VII, reforçou a proteção à família, à criança, ao adolescente, ao jovem e ao idoso, reconhecendo a família como núcleo fundamental de socialização e desenvolvimento individual. O art. 226 da Carta Magna dispõe que "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado".

Do ponto de vista sociológico, a família é o primeiro espaço de construção da realidade social e de transmissão de valores. Pierre Bourdieu destaca que “a família é um dos principais agentes de reprodução social, responsável pela transmissão das estruturas cognitivas básicas e das disposições fundamentais que orientam o comportamento dos indivíduos”. Estácio (2009) complementa que a escola, na contemporaneidade, também compartilha parte dessa função educacional.

No campo jurídico, a doutrina reconhece a pluralidade de formas familiares. O jurista Carlos Pianovski conceitua o núcleo familiar como entidade que pode se formar por meio do casamento, da união estável ou de outros arranjos afetivos, como a monoparentalidade ou a convivência de parentes em situação de interdependência. Esse entendimento foi consolidado na jurisprudência, como no REsp 1.183.378 do STJ, que reconheceu a existência de múltiplas formas legítimas de constituição familiar, superando o modelo tradicional exclusivamente matrimonial.

Assim, casamento e união estável são formas legítimas de formação de famílias, com diferenças marcantes entre si. O casamento, com raízes patriarcais e rituais solenes, exige formalidades como habilitação prévia e celebração pública. Já a união estável, reconhecida juridicamente apenas após a Constituição de 1988 e regulamentada em 2002, caracteriza-se pela informalidade e formação espontânea, sem ritos legais prévios. Antes dessas mudanças, relações não formalizadas eram rotuladas como "concubinato" e careciam de proteção jurídica.

A legislação atual, especialmente o art. 1.723 do CC, reconhece a união estável como entidade familiar, incentivando, inclusive, sua conversão em casamento. A jurisprudência também ampliou esse reconhecimento, estendendo-o às uniões homoafetivas. Importante destacar que, enquanto o casamento altera o estado civil dos envolvidos, a união estável, geralmente, só é reconhecida judicialmente após a sua dissolução ou o falecimento de um dos companheiros.

Em matéria de impedimentos matrimoniais, o art. 1.521 do CC busca proteger valores sociais fundamentais, vedando, por exemplo, o casamento entre parentes próximos ou entre pessoas já casadas.

A problemática do casamento de menores

Definidos os pressupostos da capacidade matrimonial, a lei 13.811/19 trouxe inovação significativa ao proibir, de forma absoluta, o casamento de menores de 16 anos. Antes dessa alteração, o ordenamento jurídico previa exceções, como nos casos de gravidez ou para evitar a imposição de pena criminal. Com a nova redação do art. 1.520 do CC, restou vedado o casamento infantil em qualquer circunstância: "Não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste Código."

Essa mudança objetiva combater os altos índices de casamentos infantis no Brasil, reforçando a proteção integral de crianças e adolescentes, em consonância com o art. 227 da CF/88, o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente e tratados internacionais de direitos humanos.

Contudo, a alteração legislativa suscitou debates sobre sua aplicabilidade às uniões estáveis envolvendo menores de 16 anos. Parte da doutrina defende a extensão da vedação ao instituto da união estável, por analogia, visando garantir efetividade à proteção integral. Por outro lado, há posicionamentos contrários, que sustentam ser juridicamente inadequado aplicar a mesma restrição à união estável, em razão de sua natureza fática e informal.

Impactos da lei 13.811/19: Entre a norma e a realidade social

No plano jurídico, o casamento exige o cumprimento de requisitos formais e materiais para sua validade. Entre os impedimentos legais, além dos elencados no art. 1.521 do CC, destaca-se, após a nova lei, a vedação absoluta ao casamento de menores de 16 anos.

O antigo art. 1.520 permitia o casamento de menores em situações excepcionais, como gravidez ou risco de imposição de pena criminal, o que foi expressamente revogado. Tal mudança visa proteger crianças e adolescentes de uniões precoces, que historicamente expuseram menores a riscos sociais e violações de direitos fundamentais.

A natureza jurídica da união estável, baseada na convivência pública, contínua e com intenção de constituir família, é um dos principais pontos de divergência na aplicação dessa nova vedação legal. Enquanto o casamento demanda formalização e intervenção estatal prévia, a união estável é reconhecida, muitas vezes, de forma retroativa, com base em provas da convivência fática.

Doutrinadores que defendem a extensão da vedação argumentam que permitir o reconhecimento de uniões estáveis com menores seria uma forma de burlar a nova norma de proteção à infância. Por outro lado, os que defendem a manutenção da autonomia da união estável ressaltam que negar o reconhecimento dessas relações já consolidadas pode agravar a vulnerabilidade social dos menores, privando-os de direitos alimentares, previdenciários e sucessórios.

Jurisprudência divergente: Três casos paradigmáticos

A controvérsia interpretativa tem gerado decisões divergentes nos tribunais. No TJ/SP, por exemplo, a 6ª Câmara de Direito Privado negou o suprimento de idade núbil a uma adolescente de 15 anos, mesmo grávida, fundamentando que a vedação ao casamento de menores de 16 anos é absoluta, não comportando exceções, nem mesmo as anteriormente previstas.

Em sentido contrário, o TJ/RS, na apelação cível 70.037.573.292, reconheceu a existência de união estável entre um adulto e uma menor de idade, argumentando que a informalidade e o caráter fático da união afastam a aplicação automática das restrições formais impostas ao casamento.

O STJ, por sua vez, no REsp 1.638.459, reforçou a função protetiva da incapacidade civil relativa, enfatizando que essa condição jurídica visa proteger o menor e não pode ser manipulada para beneficiar o adulto envolvido na relação.

Essas decisões ilustram o dilema enfrentado pelo Judiciário: proteger a infância e adolescência de uniões precoces sem, contudo, agravar a vulnerabilidade social de menores já envolvidos em relações de fato.

A promulgação da lei 13.811/19 representou um marco no combate ao casamento infantil no Brasil. No entanto, a extensão de seus efeitos à união estável continua gerando debates jurídicos e sociais. O desafio reside em conciliar a necessária proteção integral de crianças e adolescentes com a realidade das famílias já constituídas, respeitando direitos fundamentais e evitando situações de maior vulnerabilidade.

A evolução jurisprudencial sobre o tema demonstra que a matéria continua em construção. O Judiciário brasileiro, ao interpretar o direito posto, precisa equilibrar o rigor normativo com a sensibilidade social, garantindo soluções que atendam à proteção infantojuvenil sem negligenciar os direitos fundamentais dos envolvidos.

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TJSP. Apelação Cível. Seção de Direito Privado 1, 6ª Câmara de Direito Privado.

Giocondo de Andrade Lacerda
Advogado OAB 125078 Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná; membro da Comissão de Direito de Família da OAB/PR; pós-graduando em Advocacia Cível.

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