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Multijurisdicionalidade de conflitos envolvendo partes brasileiras e fatos ocorridos no Brasil

O avanço da internacionalização dos litígios desafia o Direito brasileiro, com ações movidas no exterior por partes nacionais sobre fatos locais.

25/6/2025

As disputas judiciais passam por uma grande revolução, sendo notável o movimento de internacionalização dos conflitos. Nos últimos anos, cresceu de forma considerável o número de litígios ajuizados no exterior envolvendo partes brasileiras para discutir fatos ocorridos no Brasil, muitas vezes com aplicação da lei material brasileira.

Os principais aspectos levados em consideração por aqueles que optam por ingressar com o litígio perante um juízo estrangeiro envolvem, em muitos casos, a possível morosidade da Justiça brasileira, a ausência de familiaridade das cortes com determinados temas e até mesmo maiores possibilidades de financiamento do litígio.

Além disso, mecanismos facilitados para execução de sentenças coletivas também parecem agir como um propulsor para o ajuizamento de ações perante cortes estrangeiras.

Diante dos fatores acima, verifica-se uma tendência ao ajuizamento de ações principalmente perante o Poder Judiciário da Inglaterra, Alemanha e Holanda. Nesses casos, três são as principais questões que o Direito Internacional Privado busca responder: a) se a Corte de determinado país tem efetivamente jurisdição para julgar determinado conflito; b) qual é a lei de Direito material que se aplica ao caso concreto e; c) como executar e implementar as decisões da autoridade judicial de um país em uma outra jurisdição.

A possibilidade de ajuizamento de ação no exterior pode decorrer, por exemplo, de inclusão de cláusula de eleição de foro estrangeiro – cuja validade é inclusive expressamente reconhecida por nossa legislação processual, desde que observados determinados requisitos. Mas o ajuizamento de ações no exterior pode ser possível, em muitos casos, independentemente da convenção das partes – ainda que as partes sejam brasileiras e que os fatos tenham ocorrido no Brasil.  

Em um famoso litígio ajuizado perante as cortes inglesas para discutir danos decorrentes de um suposto cartel no mercado de suco de laranja (ocorrido em solo brasileiro), a jurisdição da corte comercial estrangeira foi aceita em duas demandas movidas por mais de 1.500 indivíduos e algumas empresas em face de dois executivos que teriam participado do ilícito. A Corte entendeu que os argumentos das partes autoras eram críveis no sentido de se considerar que referidos executivos eram domiciliados no Reino Unido e na Suíça, o que foi suficiente para autorizar o processamento da demanda perante as cortes inglesas (Citation Number: [2021] EWHC 2956 (Comm).

Mesmo que nem todas as partes rés tenham domicílio no exterior, em algumas jurisdições vigora a possibilidade de “ancoragem”; ou seja, basta que apenas um dos réus tenha domicílio em determinado país, para que se justifique a jurisdição da respectiva corte em relação a todas as demais partes envolvidas na demanda (ainda que sediadas em outros locais).

Danos decorrentes de desastres ambientais ocorridos no Brasil também têm sido debatidos no exterior, como no caso de uma das mais expressivas ações coletivas da história, ajuizada perante as cortes britânicas para discutir o rompimento na barragem de Mariana e os prejuízos de aproximadamente 620 mil indivíduos afetados pela tragédia, envolvendo também diversas empresas, municipalidades etc. Uma decisão no mérito é esperada para os próximos meses.

As cortes alemãs também foram escolhidas para processamento de ação movida por familiares das vítimas do acidente de Brumadinho.

Esse movimento levou, no ano passado, ao ajuizamento de uma ADPF no STF (1178), por meio da qual uma associação discute a impossibilidade de municípios brasileiros ingressarem com litígios perante jurisdições estrangeiras, sob pena de afronta à soberania brasileira. Também foram suscitados argumentos relativos à forma de contratação dos escritórios de advocacia que representam as municipalidades no exterior.

Ao apreciar o caso, o ministro relator deferiu em parte a medida liminar requerida, mas ressaltou expressamente que a decisão não envolvia qualquer exame “sobre a pertinência e validade das ações judiciais em curso perante Tribunais estrangeiros, o que será efetuado após a devida instrução processual e manifestação de todos os órgãos competentes.”

A discussão certamente ainda vai percorrer longo caminho, mas fato é que o movimento de internacionalização das disputas é inevitável. Como operadores do Direito, teremos sempre o desafio e a grande oportunidade de poder mergulhar em discussões cada vez mais sofisticadas e complexas, envolvendo temas jurídicos e práticas de diferentes jurisdições, bem como interações com profissionais do Direito ao redor do mundo.

Carolina Matthes Dotto
Sócia da área de Contencioso Estratégico de TozziniFreire Advogados.

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