Introdução
O entendimento já firmado pelo STJ quanto à configuração de fraude à execução fiscal em alienações realizadas após a inscrição em dívida ativa gera inúmeros debates acerca da insegurança jurídica que recai sobre terceiros adquirentes. Mesmo na ausência de registro de penhora ou de ação fiscal em curso, prevalece a presunção absoluta de fraude, independentemente da demonstração de má-fé por parte do adquirente, ainda que este atue com boa-fé e adote as cautelas usuais na aquisição.
Este artigo se propõe a analisar os contornos dessa presunção legal, seus fundamentos normativos e os efeitos introduzidos pela LC 118/05, com base no atual posicionamento da 1ª turma do STJ.
1. A evolução normativa do art. 185 do CTN e a LC 118/05
O processo de execução fiscal é o instrumento judicial utilizado pelas Fazendas Públicas para promover a cobrança de seus créditos - tributários ou não - representados pelas Certidões de Dívida Ativa, conforme previsto na lei 6.830/1980.1
No plano material, o art. 185 do Código Tributário Nacional estabelece mecanismos para preservar a satisfação do crédito tributário, impedindo que o devedor esvazie seu patrimônio durante a execução fiscal. Conforme destaca Machado Segundo, o dispositivo tem por objetivo assegurar a efetividade da cobrança de valores já formalmente reconhecidos pela inscrição em dívida ativa.2
A redação original do dispositivo exigia, para o reconhecimento da fraude à execução, que a alienação ocorresse no curso de uma ação judicial e fosse acompanhada de outros requisitos, como a citação válida. No entanto, com a alteração promovida pela LC 118/05, consolidou-se nova sistemática: passou-se a considerar como marco suficiente para a configuração da fraude a inscrição do crédito em dívida ativa, independentemente da existência de penhora ou de ação fiscal em curso.3
O entendimento consolidado do STJ4 é o de que, a partir da alteração promovida pela LC 118/05, o marco inicial para a caracterização de fraude à execução é a inscrição do crédito fazendário em dívida ativa, de modo que a simples alienação ou oneração de bens pelo devedor insolvente a partir de 9/6/2005 gera presunção absoluta de fraude.
2. A jurisprudência do STJ e o REsp 1.141.990/PR
Ao contrário das hipóteses previstas no art. 185 do CTN, que tratam da alienação fraudulenta realizada diretamente pelo devedor cujo crédito já se encontra inscrito, as chamadas alienações sucessivas de bens imóveis envolvem situações distintas. Trata-se de casos em que o imóvel é transmitido em cadeia: inicialmente adquirido de um devedor com inscrição em dívida ativa e, posteriormente, repassado a terceiros que não mantêm qualquer relação direta com a origem do débito fiscal. Ou seja, a aquisição não ocorre diretamente do devedor original, mas por meio de um ou mais intermediários, afastando-se do núcleo típico da conduta prevista no art. 185 do CTN.
A ausência de um instituto específico para regular essas transmissões sucessivas levou à aplicação do art. 185 do CTN pela Fazenda Pública, que passou a considerar tais alienações como fraudulentas. Nesse contexto, mesmo a boa-fé do adquirente é desconsiderada, conforme entendimento firmado no RE 1.141.990/PR5, julgado sob o rito dos recursos repetitivos.
Na ocasião, o STJ afirmou que a presunção de fraude “opera-se in re ipsa, vale dizer, tem caráter absoluto, objetivo, dispensando o concilium fraudis”, ao contrário da fraude contra credores, que exige a demonstração da intenção dolosa. Segundo o voto do relator, ministro Luiz Fux, “a fraude fiscal consubstancia presunção absoluta (juris et de jure), cuja demonstração independe de prova da ciência da execução ou da intenção de lesar o credor público, bastando que a alienação tenha ocorrido após a inscrição em dívida ativa” (REsp 1.141.990/PR, DJe 17/11/2010).6
3. A insegurança jurídica nas alienações sucessivas
Faz-se necessário destacar que a aquisição do bem imóvel ocorre de um terceiro para o qual não houve lançamento do tributo ou execução pendente, situação na qual o terceiro não detém a intenção de fraudar, uma vez que não possui conhecimento sobre uma possível inscrição.7
Esse contexto gera insegurança e imprevisibilidade para os terceiros que adquirem bens de pessoas sem débito tributário inscrito em dívida ativa. Eles podem enfrentar a perda do bem imóvel devido a uma execução fiscal movida contra o proprietário anterior, que vendeu o imóvel, ou em situações em que, no momento da aquisição, o crédito tributário estava suspenso, fundamentado na presunção absoluta de fraude conferida pelo recurso paradigma.
Nesse cenário, a realização de transações envolvendo compra e venda de bens imóveis no Brasil tornou-se permeada por um cenário de insegurança. Isso ocorre devido à possibilidade de o vendedor enfrentar pendências legais em várias instâncias judiciais ou em outro estado do país. Tais desafios podem impactar diretamente o bem imóvel objeto das alienações, especialmente quando situado em comarca distinta daquela onde se desenrola o processo de execução. Apesar da cautela do comprador ao obter certidões dos distribuidores cíveis, penais e trabalhistas, é crucial notar que informações sobre processos em comarcas ou estados diferentes não estarão contempladas na certidão.8
4. Considerações sobre o ônus da prova e o princípio da boa-fé
A diferença de tratamento entre a fraude civil e a fraude fiscal justifica-se, segundo o STJ, pelo fato de que, na primeira hipótese, afronta-se interesse privado, enquanto, na segunda, protege-se o interesse público, dada a natureza essencial do crédito tributário à satisfação das necessidades coletivas (REsp 1.141.990/PR).9
Além da cautela necessária, segundo Gomide10 é desproporcional exigir certidões de todas as comarcas do Brasil, dada a falta de razoabilidade desse ônus probatório tornando o negócio jurídico impraticável e oneroso. Não se pode, igualmente, demandar a verificação da situação do vendedor em todo o território nacional, uma vez que, nas alienações sucessivas de bens imóveis, não é o vendedor que está inscrito em dívida ativa.
Um desdobramento relevante neste contexto é evidenciado nos casos de parcelamento do crédito tributário. Conforme previsto no art. 151, inciso IV, o parcelamento, concedido por meio de lei, acarreta a suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Nessas circunstâncias, caso ocorra o inadimplemento do parcelamento após a alienação do bem imóvel pelo devedor inicial, as implicações atingirão um terceiro de boa-fé integrante da cadeia de alienações, mesmo nos cenários em que houve a apresentação de certidão positiva com efeitos de negativa no momento da lavratura da escritura pública de compra e venda, conforme tem sido interpretado pelo STJ.11
No entendimento do STJ, a existência de boa-fé ou má-fé por parte do terceiro adquirente é considerada irrelevante, pois a presunção absoluta, jure et de jure, de fraude à execução prevalece. Nesse contexto, o direito de propriedade do terceiro de boa-fé é fortemente prejudicado nas sucessivas transferências de bens imóveis, mesmo quando são adotadas precauções mínimas, como a verificação do estado de inscrição em dívida ativa ou obtenção de certidões negativas por parte do alienante.
Em contrapartida, Scavone Junior ensina que: "De fato, se o comprador extraiu as certidões pessoais do vendedor, tomando as cautelas exigíveis e normais do negócio, é considerado adquirente de boa-fé".12
O entendimento consolidado gera instabilidade nas relações contratuais, infringindo o princípio da segurança jurídica ao desconsiderar a boa-fé do adquirente sem vínculo com a execução em curso. Destaca-se que as alienações sucessivas devem ser abordadas de maneira distinta, contrariando a interpretação estabelecida no recurso paradigmático sobre a aplicação do art. 185 do CTN, uma vez que envolvem transmissões consecutivas dentro de uma mesma cadeia dominial e têm natureza jurídica diversa.
Conclusão
A análise da jurisprudência recente do STJ, especialmente no âmbito do RE 1.141.990/PR, evidencia uma tendência de proteção ampla ao crédito tributário, com base em uma presunção absoluta de fraude à execução. Tal posicionamento, embora vise resguardar o interesse público e a efetividade da execução fiscal, termina por comprometer valores essenciais do ordenamento jurídico, como a segurança nas relações contratuais e a proteção da boa-fé objetiva.
A ausência de tratamento normativo específico para as alienações sucessivas, aliada à rigidez interpretativa da jurisprudência, impõe riscos desproporcionais a terceiros adquirentes que, mesmo adotando as diligências normalmente exigidas em transações imobiliárias, podem ser surpreendidos por consequências jurídicas não evidentes no momento da aquisição. A adoção de critérios mais razoáveis, que considerem a situação concreta e a conduta diligente do adquirente, mostra-se compatível com o princípio da proporcionalidade e com a necessidade de estabilização das relações jurídicas.
Assim, impõe-se uma reflexão crítica sobre o atual modelo de aplicação do art. 185 do CTN, sobretudo quando envolvidas transmissões sucessivas e terceiros de boa-fé. A proteção ao crédito tributário não deve se sobrepor, de forma intransigente e desprovida de ponderação, à estabilidade dos negócios jurídicos regularmente celebrados.
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1 SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário. 2022, 14ª edição São Paulo: Editora Saraiva. 2022. p. 929.
2 MACHADO SEDUNDO, Hugo de Brito. Processo Tributa'rio. 10ª ed. Sa~o Paulo: Atlas, 2018. p. 258.
3 CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pu'blica em jui'zo. 15ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n. 2.377.965/RS. Relator: Ministro Paulo Sérgio Domingues. Julgado em: 7 out. 2024. DJe 14 out. 2024.
5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.141.990/PR. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Julgado em: 24 ago. 2010. Publicado em: Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 17 nov. 2010. Disponível em: https://www.stj.jus.br.
6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.141.990/PR. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Julgado em: 23 nov. 2010. Disponibilizado em: 17 nov. 2010. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 17 nov. 2010. Disponível em: www.stj.jus.br
7 ASSIS, Araken. Manual da Execuc¸a~o. 20. ed. Sa~o Paulo: RT, 2017.
8 GUEDES, Fa'bio Tadeu Ferreira. A fraude de execuc¸a~o e o novo Co'digo de Processo Civil. Primeiras impresso~es. 2017. p.8.
9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.141.990/PR. Relator: Ministra Nancy Andrighi. Julgado em: 24 ago. 2010. DJe 17 nov. 2010.
10 GOMIDE, Alexandre Junqueira. A proteção do terceiro adquirente na fraude de execução e a edição da Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça. Revista do IASP. Ano 13, n. 25, janeiro/junho 2010, p. 11-41.
11 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Primeira Turma). Agravo Regimental no Recurso Especial 150.001-8/RS, Relator Ministro Sérgio Kukina, julgamento: 28/04/2015, publicação no e-Dje de 13/05/2015.
12 SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Direito Imobilia'rio: teoria e pra'tica. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 786.