Um dia comum. Mais um. Forma-se uma fila. Não por necessidade. Não por urgência. Por um boneco. Um boneco que ninguém escolhia, mas todos queriam. Labubu. Nascido em caixa-surpresa, promovido por algoritmos, embalado por vídeos de unboxing que colecionam milhões de visualizações. Quem compra não sabe qual versão vai receber. E é justamente isso que atrai: o acaso fabricado. A falsa sensação de singularidade num universo de repetições.
Labubu não é só brinquedo. É metáfora. É o avatar de uma era em que o desejo se tornou protocolo coletivo, condicionado por tendências, vitrines digitais e influenciadores que nos dizem o que sentir, quando sorrir, o que desejar. Ele aparece onde o desejo já foi curado, higienizado, padronizado, e ainda assim é vendido como afeto espontâneo. Seu sucesso revela não o apelo do objeto, mas a engrenagem que nos empurra em bloco, como num rebanho que corre sem saber para onde.
O efeito manada não é apenas uma metáfora da economia comportamental. É sintoma de uma época em que a vontade individual dissolve-se diante da avalanche coletiva. Quando todos querem o mesmo, sem saber por quê, a subjetividade torna-se produto colateral de uma engenharia do desejo. O filósofo coreano Byung-Chul Han diz que vivemos em uma sociedade que troca o pensamento pela reação, a contemplação pelo clique, o querer pelo repetir. Nesse cenário, o afeto não brota, é induzido.
A lógica da manada cria a ilusão de pertencimento. Ao seguir o fluxo, o indivíduo sente-se acolhido. Não importa se compreende o motivo, se gosta realmente daquilo que consome, importa não ficar para trás. A ansiedade do inédito vira critério de existência. E o medo de ser o último a saber é mais forte que o prazer de descobrir. Labubu, nesse contexto, é o selo de pertencimento a uma comunidade que se forma não pelo encontro real, mas pela simultaneidade do consumo. É o afeto como rebanho, do desejo íntimo ao desejo imitado.
Mas o que há de afeto numa escolha que é reprodução? O que há de liberdade num desejo que só floresce quando viraliza? Desejo de ter ou ter de desejar? A arquitetura do consumo programado?
Eva Illouz, em sua análise sobre o capitalismo das emoções, aponta que se vive um tempo em que os sentimentos são gerenciados, otimizados e vendidos. O consumo deixou de atender necessidades e passou a fabricar carências. O desejo não responde mais ao íntimo, ele é projetado de fora para dentro, modelado por campanhas que não oferecem produtos, mas experiências afetivas. Não se vende um boneco: vende-se nostalgia, pertencimento, alívio da solidão.
Ao lado disso, a arquitetura algorítmica das redes sociais cria trilhas invisíveis por onde correm gestos de consumo. A cada curtida, um rastro. A cada clique, um dado. A cada dado, uma previsão. E, com base nessas previsões, o ser humano alimenta-se por aquilo que já demonstra desejar. Mas desejar de verdade? Ou apenas repetir o desejo que apareceu primeiro na tela?
O filósofo Zygmunt Bauman há muito alertou para o perigo da leveza excessiva: relações frágeis, afetos descartáveis, escolhas sem raiz. O efeito manada não é só movimento coletivo é a suspensão do pensamento crítico em nome da adesão automática. Quem questiona fica para trás. Quem hesita não participa. E, assim, todos juntos, acelerando em direção a um afeto cada vez mais plástico e imediato, cada vez menos nosso.
Labubu sorri. Sempre. Mesmo quando a criança que o desejava já o esqueceu na prateleira. Mesmo quando o adulto que o comprou já se pergunta “por que mesmo eu quis isso?”. Ele permanece ali, intacto. Brinquedo de vinil e silêncio. Um lembrete do quanto o desejo pode ser volátil quando se baseia na cópia. O vazio como vitrine: a tristeza que não vira stories.
O efeito manada opera como anestesia: embala a angústia da solidão com o conforto do grupo. Grupo que não é comunitário é performático. Cada nova compra vira postagem. Cada nova aquisição, um símbolo de estar atualizado. Mas o que não vira storie? O tédio. O arrependimento. A sensação de estar sempre um passo atrás da próxima tendência.
Labubu é, então, a versão fofa do cansaço. Um ícone do desejo que já nasce com data de validade. Ele não oferece história: oferece impulso. E, nesse movimento, desvela o esvaziamento do afeto, ou, mais precisamente, sua serialização.
Contra o efeito manada, não basta resistência moral. É preciso recuperar o tempo. Tempo de desejar, de sentir, de recusar. Desejar exige pausa. Afeto exige silêncio. E autenticidade exige coragem. De não seguir, de não querer o que todos querem.
Recusar Labubu não é recusar brinquedos. É recusar a lógica que torna todo desejo um espelho do outro. É lembrar que o afeto real não se compra nem se embala. Que a surpresa verdadeira não cabe em caixa. E que o pertencimento mais profundo não se constrói por adesão. Sim, por relação.
É possível desacelerar. É possível reaprender a desejar, sem algoritmo, sem performance, sem público. Mas, para isso, é preciso reaprender a escutar-se. Escutar o próprio desejo antes que ele vire tendência. Escutar o silêncio entre um clique e outro. Escutar o que o rebanho abafa: a pergunta íntima, intransferível, radicalmente humana. O que eu quero mesmo? Recusar o rebanho. O tempo como ato de resistência.
Entre o afeto embalado e a multidão que segue sem saber, talvez baste um gesto. Um gesto pequeno, mas firme: recusar o próximo Labubu, não por desprezo, mas por respeito ao próprio sentir. Talvez seja nesse recuo que o desejo volte a ser semente, e não resposta.
Porque o afeto não precisa de caixa. Precisa de tempo.
_______
https://comunidadeculturaearte.com/byung-chul-han-mostra-nos-a-sociedade-do-cansaco-e-da-individualidade/
https://www.google.com/search?q=Eva+Illouz&rlz=1C1GCEA_enBR1079BR1079&oq=Eva+Illouz&gs_lcrp=EgZjaHJvbWUyDAgAEEUYORjjAhiABDIHCAEQLhiABDIHCAIQLhiABDIHCAMQABiABDIHCAQQABiABDIHCAUQABiABDIHCAYQABiABDIICAcQABgWGB4yCAgIEAAYFhgeMggICRAAGBYYHtIBBzUzMGowajeoAgiwAgHxBVjoN59kmiPP8QVY6DefZJojzw&sourceid=chrome&ie=UTF-8#vhid=zephyr:0&vssid=atritem-
https://contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/download/423/178/988 Acesso em 26-06-2025
https://super.abril.com.br/cultura/zygmunt-bauman-pensamentos-profundos-num-mundo-liquido/