1. O mito da modernização penal da lei 14.133/21
Muito se tem falado sobre os avanços da nova lei de licitações (lei 14.133/21). O discurso institucional é de modernização, eficiência e combate à corrupção. Mas, quando o olhar é técnico e desconfiado - como deve ser no Direito Penal - o que se vê é outra coisa: uma nova roupagem para velhas ambiguidades, e uma perigosa ampliação da fronteira penal sobre atos muitas vezes administrativos, interpretativos ou até mesmo opinativos.
A chamada “criminalização da licitação” parece ter se sofisticado, mas na prática serviu para empoderar órgãos de controle e ampliar os instrumentos de responsabilização com um verniz técnico que não resiste à análise constitucional.
2. A ilusão da tipicidade penal clara
O legislador, ao inserir os arts. 337-E a 337-O no CP, acreditou estar sendo objetivo. Mas o que fez foi incluir expressões que, do ponto de vista dogmático, beiram o subjetivismo perigoso. Termos como “fraude por qualquer meio” ou “perturbar a realização do certame” escancaram a vulnerabilidade da técnica legislativa penal, comprometendo o princípio da legalidade e abrindo margem para atuações persecutórias desmedidas.
Mais do que isso: tipificou condutas que já eram passíveis de responsabilização na esfera administrativa ou cível, criando um ambiente propício ao bis in idem e à judicialização de decisões técnico-administrativas.
3. Direito Penal simbólico e as vítimas invisíveis
Na prática, os gestores públicos, empresários e servidores que atuam em licitações passaram a viver sob o receio constante de serem criminalizados. É o Direito Penal do medo, e não o da legalidade. Há uma tentativa de transformar toda falha formal ou interpretação divergente em crime - ainda que não haja dolo específico ou resultado lesivo concreto.
É o retorno do Direito Penal simbólico: cria-se a figura do criminoso licitatório abstrato para agradar a opinião pública, sem observar os limites materiais do Direito Penal. As vítimas invisíveis desse processo são os bons gestores, os empresários corretos e os próprios cofres públicos, que enfrentam paralisações, inseguranças e retração de investimentos.
4. Defesa técnica e o papel contra-hegemônico do advogado criminalista
Nesse novo cenário, a atuação da defesa deve ir além do processo. Deve ser proativa, estratégica e contramajoritária. A defesa deve atacar os vícios estruturais da lei, questionar a vagueza dos tipos, exigir provas técnicas e desconfiar das “certezas fáceis” da acusação.
Nos processos penais baseados em licitações, é essencial:
- Mapear todas as etapas do certame, inclusive digitais;
- Verificar se há confusão entre erro administrativo e dolo penal;
- Avaliar se houve excesso por parte dos órgãos de controle;
- Promover perícias contábeis e administrativas próprias, a fim de demonstrar a boa-fé do agente.
A defesa é a última barreira contra o populismo penal e o punitivismo institucional travestido de moralidade pública.
5. Conclusão: nem tudo que parece fraude é crime
O verdadeiro combate à corrupção não se faz com tipos penais genéricos ou criminalização da gestão pública. Faz-se com técnica, transparência e respeito às garantias constitucionais. A lei 14.133/21 trouxe avanços, sim. Mas também trouxe riscos: seus crimes licitatórios são uma armadilha jurídica para os desavisados, e um campo fértil para atuações arbitrárias.
Que o advogado criminalista saiba disso, e que o Judiciário tenha coragem de resgatar o Direito Penal da tentação de se tornar instrumento de governo e opinião pública.