1. Introdução
Inegavelmente, o franchising brasileiro é uma força singular no cenário econômico nacional. Segundo a pesquisa sobre o desempenho do franchising nacional no 1º trimestre deste ano da ABF - Associação Brasileira do Franchising1, o setor faturou nos últimos 12 meses (do 2º trimestre de 2024 até o 1º trimestre de 2025) pouco mais de R$ 278 bilhões.
Os números mostram crescimento constante e sólido. Contudo, os conflitos entre franqueados e franqueadores também se intensificaram. Segundo os dados divulgados pelo CNJ2, em 2020 foram ajuizadas 2.984 ações envolvendo o assunto “Franquias (Código 9608)”, número que saltou para 5.314 em 2024. Até o dia 31 de maio de 2025, já haviam sido propostas 2.363 novas ações.
Naturalmente, esses números não refletem a real dimensão das discussões, visto que muitos contratos de franquia contêm cláusulas compromissórias de arbitragem. Ainda assim, funcionam como um importante termômetro da tensão no setor - inclusive, as notícias veiculadas na mídia mostram isso.
Embora o Brasil conte com uma legislação específica desde 1994 (lei 8.955/94), atualizada em 2019 (lei 13.966/19), o sistema jurídico nacional ainda carece de mecanismos efetivos de controle e responsabilização.
O contraste com o Estado da Califórnia expõe uma fragilidade regulatória no Brasil que merece debate.
2. Por que Califórnia?
Nos Estados Unidos da América existe a lei federal conhecida como o FTC - Federal Trade Comission Franchise Rule. Ela é semelhante à lei brasileira no sentido de regulamentar o FDD - Franchise Disclosure Document, o equivalente à COF - Circular de Oferta de Franquia no Brasil.
No entanto, pelas peculiaridades daquele país, cada estado possui significativa autonomia legislativa dentro do sistema federalista adotado. Logo, para além das leis federais que servem de baliza nacional, as leis sobre diversos temas podem diferir de estado para estado.
É o que ocorre com as franquias.
Considerando que a California é um dos estados mais regulados nesse assunto, justifica-se que utilizemos as suas regras como comparativo para o que este artigo se propõe.
Entretanto, existem outros estados que também possuem importante regulação, como, por exemplo, o estado de Nova Iorque e o estado de Illinois.
3. O que motivou a regulamentação naquele Estado e qual é a visão geral do Franchise Investment Act?
Chama a atenção que o motivo e a intenção da regulação do setor são apresentados pela própria Franchise Investment Law da California, a qual está inserida no Corporations Code estadual.
Segundo tradução livre da §31001 daquela legislação, é explicado que3:
A Legislatura declara e reconhece que a venda generalizada de franquias é uma forma de negócio relativamente nova que gerou inúmeros problemas, tanto sob o ponto de vista de investimento quanto de atividade empresarial no Estado da Califórnia. Antes da promulgação desta divisão, a venda de franquias era regulada apenas limitadamente na medida em que a Corporate Securities Act de 1968 se aplicava a essas transações. Os franqueados da Califórnia sofreram perdas substanciais quando o franqueador ou seu representante não forneceram informações completas e integrais sobre o relacionamento entre franqueador e franqueado, os detalhes do contrato entre franqueador e franqueado e a experiência empresarial prévia do franqueador.
É a intenção desta lei fornecer a cada potencial franqueado as informações necessárias para tomar uma decisão inteligente sobre as franquias oferecidas. Ademais, é intenção desta lei proibir a venda de franquias quando tal venda possa levar a fraude ou quando haja possibilidade de que as promessas do franqueador não sejam cumpridas, bem como proteger o franqueador e o franqueado por meio de uma melhor compreensão da relação entre ambos com respeito ao seu vínculo comercial.
A intenção de trazer maior segurança à relação como um todo, protegendo mais o franqueado é clara.
Entretanto, o que exatamente essa lei apresenta de tão relevante?
Não se pretende dissecar neste artigo o Franchise Investment Act californiano, mas apontar algumas peculiaridades regulatórias.
A começar pela necessidade de registro da franquia perante o DFPI - Department of Financial Protection and Innovation californiano. A legislação regulatória prevê que a comercialização de franquia não registrada ou que não se enquadre em alguma das exceções é ilegal, conforme § 31110.
O registro consiste na apresentação de uma série de documentos, ao DFPI, dentre os quais se podem citar de forma geral e não exaustiva: (i) carta de apresentação assinada pelo sócio da franqueadora, seu administrador ou terceiro autorizado; (ii) Uniform Franchise Registration Application; (iii) autorização de divulgação de registros financeiros; (iv) divulgação de agentes de vendas; (v) Franchise Disclosure Document (equivalente à Circular de Oferta de Franquia); (vi) demonstrações financeiras auditadas; e (vii) consentimento do auditor.
Se o franqueador não conseguir demonstrar capacidade financeira para cumprir com suas obrigações sem depender dos recursos do franqueado, o DFPI pode impor uma condição de garantia financeira ao franqueador.
Uma vez apresentada a documentação, o DFPI a avaliará por meio de um comissioner, funcionário encarregado pela própria Franchise Investment Law.
Caso aprovado, será concedido o registro de não mais de 1 ano, que deverá ser renovado anualmente para manter a autorização de comercialização.
Mesmo que a franquia se enquadre em alguma das exceções legais, a notícia de exceção deverá ser apresentada para avaliação do DFPI.
Mas quais são as consequências para o descumprimento da legislação?
Do ponto de vista civil, o capítulo 1 da parte 4 estabelece que o franqueador e o agente de vendas podem ser responsabilizados a arcar com perdas e danos, bem como o franqueado poderá pleitear a nulidade do contrato, as partes deverão retornar ao estado anterior à assinatura do contrato.
Sob a perspectiva criminal, de acordo com as normas do capítulo 3 da parte 4, qualquer um que violar a Franchise Investment Law, ou empregar meios de cometer fraude, poderá ser multado em até 100 mil dólares americanos ou ser preso por até 1 ano.
Como se vê, as normas previstas na legislação californiana são rígidas e as consequências da sua não observância são severas.
4. Como o franchising é regulado no Brasil?
A legislação atual que regula as franquias no Brasil é a lei 13.966/19, a qual substitui a lei 8.955/1994.
Referida legislação inicia definindo em seu art. 1º o que é o sistema de franquia, sendo aquele pelo qual um franqueador autoriza por meio de contrato um franqueado a usar marcas e outros objetos de propriedade intelectual, sempre associados ao direito de produção ou distribuição exclusiva ou não exclusiva de produtos ou serviços e também ao direito de uso de métodos e sistemas de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvido ou detido pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem caracterizar relação de consumo ou vínculo empregatício em relação ao franqueado ou a seus empregados, ainda que durante o período de treinamento.
Seu art. 2º, por sua vez, esclarece que para implantação da franquia, o franqueador deverá fornecer ao interessado a COF - Circular de Oferta de Franquia, a qual conterá obrigatoriamente 23 itens diversos, tais como histórico resumindo do negócio franqueado, balanços e demonstrações financeiras da franqueadora, descrição detalhada da franquia, entre outros.
O § 1º do art. 2º condiciona o prazo mínimo de 10 dias entre a entrega da COF ao candidato e a assinatura do contrato de franquia, ou recepção de qualquer valor pelo franqueador.
Caso não se observe o requisito do § 1º do art. 2º, o franqueado poderá arguir a anulabilidade ou a nulidade do contrato, conforme o caso, e exigir a devolução de todas as quantias já pagas a título de filiação ou de royalties.
Apesar de não estar descrito na lei, não se pode esquecer que os arts. 186 e 972 do CC preveem a possibilidade de se obter reparação por cometimento de ato ilícito.
Ocorre que inexiste no Brasil a obrigatoriedade de se registrar qualquer documento ante alguma agência reguladora.
Basta o franqueador observar os requisitos estabelecidos na lei, já que se pode dizer de forma geral que a lei de franquias é um check list do que a Circular de Oferta de Franquia deve ter para que o candidato a franqueado a avalie.
Contudo, em que pese a relação entre o franqueador e franqueado ser empresarial, não se pode negar que existe considerável disparidade informacional. Ou seja, um franqueador, por deter o know how da operação, naturalmente estará em uma posição mais vantajosa no que diz respeito à negociação.
5. Conclusão
Chama a atenção o espírito protetivo da legislação californiana, que não apenas impõe deveres formais aos franqueadores, mas exige a submissão prévia do material à análise de um órgão público.
O objetivo é assegurar que a informação oferecida ao potencial franqueado seja não apenas completa, mas também idônea e verificável, reduzindo assim o risco de práticas abusivas, promessas enganosas e desequilíbrio contratual.
Já no Brasil, embora a lei 13.966/19 represente um avanço em relação à legislação anterior, ela segue ancorada em um modelo autorregulado, que parte do pressuposto de que a COF será elaborada de boa-fé e de forma diligente pelo franqueador, sem qualquer controle prévio de conteúdo ou veracidade. O que temos, na prática, é uma legislação baseada em transparência documental, mas sem um sistema efeito de fiscalização preventiva - o que coloca o franqueado em posição vulnerável, sobretudo quando se trata de redes novas, pouco estruturadas ou com pouca solidez financeira.
A disparidade informacional entre franqueador e franqueado, como já apontado, é inerente ao próprio modelo de franquia. No entanto, isso não justifica a ausência de mecanismos de mitigação de risco, como ocorre na Califórnia com a exigência de demonstração de financeira auditadas, capacidade econômica mínima e possibilidade de imposição de garantias. Esses elementos demonstram um olhar mais maduro sobre o franchising, que compreende a sua relevância econômica, mas também os riscos inerentes ao seu modelo de expansão.
Enquanto isso não ocorre, cabe aos advogados e profissionais que atuam com franquias compreenderem as boas práticas internacionais e nacionais (movimento Franchising Íntegro), adotando-as como padrão mínimo de diligência, independentemente da exigência legal.
O sistema californiano evidencia que a transparência e responsabilidade prévia não são obstáculos, mas sim catalisadores de um crescimento econômico saudável e sustentável no franchising.
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1 Disponível em https://www.abf.com.br/numeros-do-franchising/. Acesso em 29 de junho de 2025.
2 Disponível em https://leginfo.legislature.ca.gov/faces/codes_displaySection.xhtml?lawCode=CORP§ionNum=31001. Acesso em 29 de junho de 2025.
3 §31001. The Legislature hereby finds and declares that the widespread sale of franchises is a relatively new form of business which has created numerous problems both from an investment and business point of view in the State of California. Prior to the enactment of this division, the sale of franchises was regulated only to the limited extent to which the Corporate Securities Law of 1968 applied to those transactions. California franchisees have suffered substantial losses where the franchisor or his or her representative has not provided full and complete information regarding the franchisor-franchisee relationship, the details of the contract between franchisor and franchisee, and the prior business experience of the franchisor. It is the intent of this law to provide each prospective franchisee with the information necessary to make an intelligent decision regarding franchises being offered. Further, it is the intent of this law to prohibit the sale of franchises where the sale would lead to fraud or a likelihood that the franchisor’s promises would not be fulfilled, and to protect the franchisor and franchisee by providing a better understanding of the relationship between the franchisor and franchisee with regard to their business relationship.
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. California Franchise Investment Law. Disponível em https://leginfo.legislature.ca.gov/faces/codes_displaySection.xhtml?lawCode=CORP§ionNum=31001. Acesso em 29 de junho de 2025.