SUMÁRIO: Introdução. 1. O contrato social segundo Rousseau. 2. Análise crítica do contrato social rousseauniano, sob a perspectiva do sentimento de pertencimento. 2.1. As teorias do reconhecimento. 3. Em defesa das ações afirmativas e da representação política das minorias. Considerações finais.
“Cada um de nós põe em comum sua pessoa
e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral;
e recebemos, enquanto corpo, cada membro
como parte indivisível do todo”.
Rousseau, Do Contrato Social, Livro I, Capítulo VI
Introdução
Este artigo compõe uma série de ensaios que tenho publicado, mais remota1 ou recentemente2, sobre análises críticas e perspectivas atuais das teorias do contrato social, como premissas potencialmente iluminadoras para as questões políticas, éticas e jurídicas da modernidade tardia que ora vivenciamos. Cada pensador clássico do contratualismo confere primazia a um aspecto da relação entre Estado e sociedade civil: a) Thomas Hobbes (1588-1679)3, ao Estado como aparato de monopólio da coerção; b) John Locke (1632-1704)4, ao Estado como garantidor de direitos individuais naturais; e c) Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), ao Estado como articulador de uma comunidade política voltada ao bem comum.
A meu ver, as três visões são complementares de uma teoria mais ampla do Estado moderno – “metafísicas da explicação social”5, que advogam a favor da origem da sociedade como produto da vontade humana, constituinte de um contrato social hipotético pelo qual os indivíduos cedem seus direitos ao Estado. Não obstante, interessa, para os fins deste ensaio, a versão de Rousseau, por ser o filósofo genebrês o contratualista que efetivamente se preocupou em tematizar a inclusão dos cidadãos em uma comunidade integrada, conforme um senso de pertencimento fundado no postulado do bem comum. Tal preocupação se torna mais evidente pela proposição de um contrato que minimize as desigualdades naturais e institua a igualdade moral, política e jurídica de todos os membros da comunidade, de modo a reequilibrar o todo social. Uma vez que nosso objeto de reflexão é o sentimento de pertencimento dos cidadãos à sociedade que integram, sigamos a trilha rousseauniana.
Rousseau possui uma noção comunitária do contrato social: numa democracia preferencialmente direta, os cidadãos hão de convergir seus interesses para uma vontade geral compatível com o bem comum. Está na base dessa formulação uma antropologia do ser humano que vincula o pessoal ao social, em antecipação ao discurso sociológico moderno, bem como às teorias do reconhecimento. Essa interpenetração entre pessoal e social retoma o axioma aristotélico do “animal político” (zoon politikon), ao sugerir que o ser humano só se realiza plenamente na vida em sociedade, como participante ativo na deliberação sobre os assuntos coletivos.
No entanto, Rousseau não chega a efetivamente se preocupar com a diversidade imanente à sociedade, fator que torna inviável pensar em uma vontade que não seja fragmentária, nos termos do princípio da igualdade como diferença. Se a igualdade formal é insuficiente para incluir todos os sujeitos em uma sociedade plural, tampouco será o bastante a igualdade material. Admitamos que a ausência da reflexão sobre a questão da diferença por Rousseau e seus contemporâneos se afigura perfeitamente compreensível, dado o contexto histórico e social do pensamento iluminista, o século XVIII, quando se objetivava inicialmente a implantação e a legitimação dos ideais republicanos e democráticos, no contexto da ascensão da burguesia como classe condutora do processo econômico e político.
Ora, a indagação propulsora deste ensaio é: por que um indivíduo abdicaria das suas liberdades originárias, se ele não vier a se sentir pertencente à sociedade instituída pelo contrato social? Eis uma das facetas da questão da inclusão social, que tanto desafia as democracias hodiernas. Rousseau respondeu a essa pergunta, mas de forma incompleta, ao menos do ponto de vista das exigências das sociedades contemporâneas do fim do século XX e início do século XXI, plurais e multifacetadas. O reconhecimento e a inclusão social não podem ser assegurados na base de leis gerais e abstratas. Ressalve-se, também, que o bem comum não pode, no contexto da diversidade constitutiva das sociedades atuais, ser visto como um conceito total, monolítico e hegemônico. Há uma forma particular de realizar a justiça para cada grupo social. Os princípios democráticos rousseaunianos da soberania popular e da autolegislação são insuficientes para garantir a expressão dos grupos marginalizados, pois são justamente os grupos hegemônicos os que se impõem na legislação da democracia representativa6, capturando, com sua influência (lobby), os órgãos legislativos. Uma intepretação radical desse princípio, aliás, é extremamente perigosa, porquanto pode conduzir a uma visão totalitária do Estado e/ou da sociedade, ao se exigir que os indivíduos cedam todos seus direitos à “posse comum” dirigida pela suprema “vontade geral”, relacionando-se uns com os outros como partes constituintes de um “todo indivisível”.
Relembremos o contexto histórico em que se elabora este ensaio: as sociedades contemporâneas são marcadamente plurais, em termos culturais, religiosos, político-ideológicos, linguísticos, étnicos, raciais, de gênero e de orientação sexual, entre outros. Trata-se de sociedades onde diversas identidades sociais buscam espaço na esfera pública para obter o reconhecimento de seu valor social. Esta é a base das exigências de pertencimento e reconhecimento. Isso em mente, busco, neste espaço, tematizar o sentimento de pertencimento como uma condição imprescindível a uma visão contemporânea do contrato social. Isto é, quero afirmar que o contrato social que funda o Estado não busca garantir apenas a paz, a segurança, a liberdade e a propriedade, mas também o igual reconhecimento da diferença e das formas identitárias na vida social – é preciso que o indivíduo e os grupos, nas suas peculiaridades, sintam que pertencem à comunidade política e jurídica à qual estão vinculados como cidadãos.
No nível da discussão teórica, pretendo empreender uma análise crítica do contratualismo de Rousseau, com o auxílio das autoras e autores mais representativos de teorias cuja preocupação central sejam as questões identitárias, notadamente das modernas teorias do reconhecimento (seção 2 e subseção 2.1). Preliminarmente, contudo, exporei as linhas centrais do contratualismo de Rousseau (seção 1).
Ao final deste trabalho (seção 3 e considerações finais), defenderei, sucintamente, ao colocar em foco os povos indígenas, a relevância das ações afirmativas em prol de diversos grupos minoritários e excluídos como formas efetivas de reconhecimento que conduzam ao fortalecimento do senso de pertença, bem como uma alteração nos mecanismos de representação política vigentes no Brasil, de modo a albergarem uma ação institucional de representação política das minorias. São métodos de enorme potencial de inclusão social rumo a uma comunidade efetivamente plural, que respeite cada individualidade na medida das suas necessidades de diferenciação e reconhecimento social. Passe-se aos argumentos.
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1 Trata-se de dois artigos publicados como capítulos em livros de minha autoria, um em 2017: Capítulo 24 – “As reformas estruturantes e o contrato social” (pp. 285-299). FERREIRA, Antonio Oneildo. A natureza contramajoritária da advocacia: Direitos Humanos, Igualdade de Gênero e Democracia. Brasília: Editora OAB, Conselho Federal, 2017; e outro em 2019: Capítulo 8 – “A reforma trabalhista na perspectiva do contrato social” (pp. 125-142). FERREIRA, Antonio Oneildo. A constituição balzaquiana e outros escritos. Brasília: Editora OAB, Conselho Federal, 2019.
2 Trata-se da tríade de artigos de minha autoria publicada em 2025 no Portal Migalhas, a saber: “A política e o Supremo entre pactos e espadas: uma análise à luz da filosofia política de Thomas Hobbes”. Disponível em: . Acesso em: 13/05/2025. “A ética da advocacia à luz do imperativo categórico”. Disponível em: . Acesso em: 13/05/2025. “A natureza jurídica da ação e o direito fundamental de acesso à justiça sob a perspectiva do contrato social”. Disponível em: . Acesso em: 13/05/2025.
3 Realizei uma interpretação mais profunda sobre o contrato social de Hobbes no supracitado artigo “A política e o Supremo entre pactos e espadas: uma análise à luz da filosofia política de Thomas Hobbes”.
4 O contrato social proposto por Locke reage às ideias absolutistas de Hobbes, sob um fundamento liberal que reconhece direitos morais à propriedade aos indivíduos, anteriores ao próprio Estado, cabendo a este a salvaguarda desses direitos individuais de profunda essência moral. Conferir: DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005 (pp. 13-14).
5 Tal termo é utilizado por: MASCARO, Alysson Leandro. Lições de Sociologia do Direito. São Paulo: Quartier Latin, 2007 (p. 61).
6 Consideremos que a democracia direta, tal como preconizada por Rousseau em seu projeto de constituição para Genebra, é inviável para qualquer Estado contemporâneo, por isso mesmo inexistente em nossa etapa histórica. “Rousseau não admite a representação ao nível da soberania. Uma vontade não se representa. (...) Mas Rousseau reconheceria a necessidade de representantes a nível de governo”. NASCIMENTO, Milton Meira do. “Rousseau: da servidão à liberdade”. In: WEFFORT, Francisco C. (org.). Os clássicos da política. Vol. 1. 14ª ed. São Paulo: Ática, 2006 (p. 198).