1. Introdução: A desmaterialização da criminalidade econômica
A criminalidade contemporânea, especialmente no domínio econômico, cada vez mais se manifesta de forma desmaterializada, desintermediada e transnacional. O surgimento das criptomoedas e a popularização das plataformas bets - sistemas de apostas automatizadas e descentralizadas em blockchain - evidenciam esse novo paradigma.
No Brasil, embora o marco legal dos criptoativos (lei 14.478/22) represente avanço regulatório, sua interface com o Direito Penal ainda é incipiente. O presente estudo visa justamente preencher essa lacuna, propondo uma análise crítica e propositiva acerca das possíveis incidências penais e das dificuldades práticas de persecução criminal nesses ambientes tecnológicos.
2. O ecossistema bets: funcionamento, opacidade e risco penal
As plataformas bets utilizam contratos inteligentes (smart contracts) para executar apostas de forma automática, sem a intervenção de operadores humanos. São baseadas em blockchains públicas ou privadas, e movimentam tokens digitais - muitas vezes sem qualquer lastro em moeda fiduciária - que funcionam como instrumentos de pagamento, investimento e especulação.
Essa estrutura apresenta três características criminógenas fundamentais:
- Descentralização: a ausência de uma figura central dificulta a identificação de autores ou organizadores. A responsabilidade penal passa a exigir um esforço hermenêutico e técnico muito mais sofisticado;
- Pseudonimato: os usuários operam por meio de carteiras digitais sem identificação formal, o que compromete os mecanismos tradicionais de rastreamento e atribuição de autoria;
- Impressão de legalidade: plataformas bem estruturadas simulam legalidade com linguagens técnicas, páginas profissionais e contratos complexos, o que afasta a suspeita do investidor médio e encobre fraudes.
3. Principais incidências penais: análise dogmática e crítica
3.1. Lavagem de dinheiro (lei 9.613/98)
A conversão de ativos ilícitos em criptoativos, e sua posterior “limpeza” por meio de apostas automatizadas em bets, configura lavagem em três fases clássicas:
- Colocação: compra de tokens com dinheiro em espécie ou por meio de transações disfarçadas;
- Ocultação: pulverização em diferentes carteiras e uso de ferramentas como mixers ou tumblers;
- Integração: reinserção dos ativos “limpos” no mercado financeiro ou imobiliário.
A jurisprudência ainda é incipiente, mas operações como Kryptos e Poyais já reconheceram a viabilidade da lavagem por meio de tokens, inclusive com decisões cautelares de bloqueio de carteiras digitais.
3.2. Pirâmide financeira e crime contra a economia popular (lei 1.521/51, art. 2º)
Muitas bets operam sob o modelo Ponzi, utilizando o capital de novos participantes para remunerar os antigos, sem atividade econômica real que sustente os lucros. A roupagem tecnológica serve para legitimar uma estrutura que, em essência, visa à captação indevida de recursos.
A jurisprudência já reconhece que, mesmo sem o elemento clássico do “produto ou serviço”, a promessa de rendimentos irreais já configura crime contra a economia popular (STJ, HC 734.414/SP).
3.3. Estelionato e crime contra o sistema financeiro (CP, art. 171 e lei 7.492/86)
A simulação de legalidade, ou o oferecimento de investimento sem registro na CVM, configura conduta penalmente relevante.
Plataformas que induzem os usuários ao erro com a falsa promessa de segurança jurídica, ou com manipulação de odds e algoritmos de resultado, podem incidir no estelionato clássico ou no crime de operação irregular de instituição financeira.
3.4. Crime contra a ordem tributária (lei 8.137/90)
Embora a Receita Federal tenha iniciado o mapeamento das movimentações de criptoativos por meio da IN RFB 1.888/19, grande parte das operações via bets escapa da declaração formal. A ocultação de ganhos, sobretudo quando relacionados a rendimentos ou comissões, pode configurar sonegação fiscal e até evasão de divisas, em operações internacionais.
4. A autoria penal em plataformas descentralizadas: o desafio da imputação
O conceito de autoria no Direito Penal Clássico - centrado na figura do agente físico e na sua conduta dolosa - encontra obstáculos sérios quando confrontado com estruturas como as bets. Nesses ambientes:
- A figura do “criador” pode estar fora da jurisdição nacional;
- Os contratos inteligentes podem operar automaticamente, sem intervenção humana após o lançamento;
- Há comunidades autônomas que gerenciam a plataforma (DAOs), diluindo a responsabilidade.
Aqui, ganha força a aplicação da teoria da imputação objetiva, que permite responsabilizar penalmente quem cria ou alimenta riscos proibidos, ainda que não execute diretamente a conduta típica. A jurisprudência ainda é hesitante, mas há espaço para evolução a partir do diálogo entre o Direito Penal Econômico, a teoria do domínio do fato e a doutrina da cegueira deliberada (willful blindness).
5. A atuação do Estado: limites, riscos e propostas
A expansão punitiva sobre o universo dos criptoativos demanda cuidado, para evitar:
- Criminalização da inovação: nem toda bet é ilícita; muitas têm estrutura legítima, conforme previsto na própria lei 14.478/22;
- Insegurança jurídica: a ausência de regulação clara cria um “limbo normativo” em que operadores de boa-fé podem ser indevidamente criminalizados;
- Abuso de medidas cautelares: bloqueios indiscriminados de carteiras podem violar direitos fundamentais, como o devido processo legal e o direito de propriedade.
Propostas concretas:
- Criação de núcleos especializados em criptoativos no MP e nas polícias;
- Ampliação da cooperação internacional, via Interpol e OCDE, para rastreamento de ativos e execução penal transnacional;
- Tipificação autônoma da fraude com criptoativos, para evitar interpretações elásticas do art. 171 e da lei 1.521/51;
- Fortalecimento do compliance no mercado digital, com responsabilização penal subsidiária.
6. Considerações finais: o Direito Penal em tempos de descentralização
O fenômeno das bets não é, em si, um problema penal. O risco está na sua utilização como vetor de criminalidade financeira altamente sofisticada, com aparência de legalidade e grande poder de captação.
Cabe ao jurista penalista, sobretudo no Brasil, operar com categorias dogmáticas adequadas, sem ceder à tentação de punir toda inovação tecnológica. O desafio é estabelecer um equilíbrio entre repressão qualificada, segurança jurídica e incentivo à inovação responsável.