Migalhas de Peso

Gestão jurídica em projetos complexos de engenharia

A integração entre Direito e Engenharia como fator estratégico na condução de grandes empreendimentos.

4/7/2025

Muitos engenheiros e gestores de projetos compreendem que os advogados podem contribuir de forma estratégica na estruturação e execução de empreendimentos, como aliados importantes na tomada de decisões que envolvem riscos, prazos, contratos e impactos financeiros. A integração de um profissional jurídico dedicado, desde as fases iniciais do projeto, pode trazer benefícios concretos ao longo de toda a jornada da obra. Trata-se de um movimento que transcende o modelo tradicional de assessoria, adotando uma visão jurídica integrada ao negócio.

Contudo, o aproveitamento eficaz desse recurso dependerá diretamente do perfil do profissional envolvido. É fundamental que o advogado compreenda a realidade da gestão de projetos e vá além de uma atuação puramente legalista. A formação jurídica, por si só, não garante a entrega de valor em um ambiente marcado por decisões dinâmicas, interfaces técnicas e exigências operacionais. Profissionais que se limitam à leitura da norma e à elaboração de pareceres desvinculados da realidade do campo, dificilmente se adaptarão à complexidade dessa função. O cenário exige uma atuação interdisciplinar, com capacidade analítica voltada à solução de problemas reais, sensibilidade para entender as tensões do canteiro e a maturidade para dialogar com engenheiros, gestores financeiros e operação.

Cada vez mais, os riscos legais são levados em conta quando se fala de grandes investimentos em infraestrutura. Projetos de engenharia complexos envolvem altos valores, múltiplas partes interessadas e cronogramas agressivos. Nesse contexto, o jurídico deixa de ser uma área meramente de suporte ou “apagador de incêndios” para assumir um papel ativo e estratégico. Surge, assim, uma nova atribuição: a gestão dos assuntos jurídicos do projeto como função estruturada e coordenada, exercida por um profissional com conhecimento técnico, visão sistêmica e domínio das ferramentas de gestão de projetos. Essa atuação não elimina o papel dos departamentos jurídicos corporativos ou dos escritórios externos, mas complementa e potencializa sua eficácia com decisões mais rápidas, contextualizadas e alinhadas aos objetivos do projeto.

A atuação jurídica voltada para os resultados e a solução de problemas, associada à capacidade de desenvolver estratégias multidisciplinares e processos adaptados à dinâmica dos empreendimentos, torna-se essencial para reduzir passivos legais e evitar disputas que comprometam o projeto. Um bom gestor jurídico atua como um radar de riscos e oportunidades, equilibrando os interesses legais com os compromissos operacionais e comerciais assumidos. Além disso, a integração jurídica contribui para aumentar o nível de confiança entre os diversos gestores envolvidos, fortalecendo a cultura de soluções de conflitos que, se não tratados de forma preventiva, poderiam gerar paralisações, prejuízos ou disputas judiciais.

Em projetos de grande magnitude, a gestão jurídica precisa estar estruturada com o mesmo grau de rigor e planejamento das demais frentes do projeto. Isso significa que deve haver um plano de gestão jurídica que contemple objetivos, entregas, cronogramas e indicadores, com alinhamento direto com o plano geral do empreendimento. Na prática, o gestor jurídico toma decisões com base nos riscos que impactam diretamente o escopo, o prazo e o orçamento do projeto e que são inevitáveis diante da natureza mutável e complexa das obras de infraestrutura. É nesse ambiente, por vezes caótico e cheio de pressões externas, que o profissional jurídico preparado consegue demonstrar seu valor, contribuindo para mitigar incertezas e preservar a viabilidade do projeto.

É fato que o profissional jurídico com perfil estritamente técnico tende a enfrentar mais dificuldades nessa função. Isso porque, para não comprometer os prazos, muitas decisões precisam ser tomadas com agilidade, muitas vezes sem a totalidade das informações desejadas. A rigidez analítica, comum a quem se acostumou a opinar “com todos os elementos”, pode ser um obstáculo. O mundo real da obra exige decisões fundamentadas, porém rápidas, baseadas em cenários de risco e na melhor alternativa disponível naquele momento. Isso não reduz a importância dos especialistas jurídicos que compõem o ecossistema do projeto - ao contrário, são eles que oferecem os insumos para que o gestor jurídico, com sua visão generalista e estratégica, consiga navegar pelas adversidades e arbitrar soluções que preservem o resultado final da empreitada.

Todo projeto tem por objetivo alcançar um resultado dentro do escopo, prazo e custo planejados. Para isso, o gestor jurídico precisa ter pleno conhecimento dos desafios do empreendimento e atuar de forma proativa e preventiva, antecipando as soluções para os problemas que inevitavelmente surgirão. O planejamento jurídico se inicia antes mesmo da assinatura dos contratos, ainda na fase de estudos preliminares, quando são analisados os riscos regulatórios, os modelos contratuais e os interesses das partes envolvidas. Esse trabalho inicial serve de base para a elaboração do plano de gestão jurídica, que deverá acompanhar o projeto durante todo o seu ciclo de vida.

Nesse momento, são avaliadas questões como o perfil dos escritórios externos de apoio, os padrões documentais a serem utilizados, o dimensionamento da equipe jurídica dedicada e o modelo de governança contratual a ser adotado. Trata-se de uma etapa crucial para evitar falhas futuras na interlocução entre os times e garantir consistência nos posicionamentos jurídicos ao longo da obra. Após essa fase, inicia-se a negociação dos contratos principais (EPC, construção, fornecimento, operação) quanto os acessórios (serviços, locações, seguros, garantias). Essa negociação precisa ser conduzida com pragmatismo e profundo entendimento da lógica do projeto, evitando cláusulas genéricas ou excessivamente protetivas que, na prática, inviabilizam a fluidez do contrato e aumentam os atritos.

Existe uma sutileza na atuação do advogado de projetos que não se encontra na gestão jurídica tradicional. Enquanto o modelo convencional tende a redigir contratos sob uma ótica estritamente jurídica, o advogado de projetos o faz com base na lógica e nos objetivos do próprio empreendimento. Isso significa elaborar cláusulas que dialogam diretamente com o plano de execução, as metas operacionais e os fluxos de trabalho acordados entre as partes. A experiência demonstra que contratos excessivamente jurídicos muitas vezes geram dúvidas, interpretações divergentes e dificuldades de aplicação prática no canteiro.

Desde o início da minha atuação com projetos, adoto uma proporção prática que costumo repetir: um contrato é, em média, 33% técnico, 33% econômico e 34% jurídico. Curiosamente, os 34% jurídicos geralmente correspondem às cláusulas comuns de responsabilidade civil, foro, penalidades, rescisão, confidencialidade, que sofrem poucas alterações de um projeto para outro. Os 66% restantes que compõem os componentes técnicos e econômicos são extremamente variáveis e, quando mal integrados ao texto contratual, tornam-se as principais fontes de litígios. É nesses pontos, muitas vezes negligenciados, que se escondem os maiores riscos de disputas futuras.

Por isso, é fundamental que a integração técnica, econômica e jurídica no instrumento contratual aconteça da forma mais completa e sinérgica possível. O contrato, ao final, será o principal documento orientador dos engenheiros e gestores para a execução do projeto, e precisa refletir com precisão os compromissos firmados, os limites de responsabilidade e os mecanismos de solução de controvérsias. Um contrato bem elaborado, com cláusulas claras, alinhadas ao plano de projeto e validadas por todas as frentes envolvidas, não elimina os riscos, mas permite que eles sejam administrados com racionalidade, previsibilidade e segurança.

O gestor jurídico do projeto não é um mero intérprete de normas, mas um profissional que atua como ponte entre os objetivos jurídicos e os resultados esperados pela engenharia. Seu papel é garantir que os instrumentos legais estejam a serviço da realização do empreendimento e não se tornem entraves ao seu desenvolvimento. Trata-se de um novo perfil profissional, cada vez mais demandado em ambientes de projetos de alta complexidade.

Eduardo Gomes de Abreu Neto
Eduardo Abreu Neto é gerente jurídico com mais de 20 anos de experiência em grandes projetos de infraestrutura. Fundador do Advogado de Botas, atua na interface entre Direito, engenharia e negócios.

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