No dia 3 de julho, celebra-se no Brasil o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial. A escolha da data remete à aprovação da lei Afonso Arinos (lei 1.390, de 3 de julho de 1951), a primeira norma brasileira a classificar a discriminação por raça ou cor como contravenção penal.
Desde então, o ordenamento jurídico brasileiro avançou significativamente no combate ao racismo, como a Constituição de 1988 ao estabelecer que racismo é crime inafiançável e imprescritível; a lei do crime racial (lei 7.716/1989); o Estatuto da Igualdade Racial e, mais recentemente, a equiparação da injúria racial ao crime de racismo, pela lei 14.532/23. Entendimento que já havia sido reconhecido em 2021 pelo STF.
Contudo, os números do Anuário Brasileiro da Segurança Pública revelam uma realidade persistente: o racismo estrutural continua presente nas relações sociais, nas instituições e nas práticas cotidianas. A luta por justiça racial exige mais que leis - exige ação concreta, vigilância cidadã e o fortalecimento de uma atuação antirracista em todos os setores da sociedade, especialmente nas OSCs - Organizações da Sociedade Civil que historicamente ocupam papel central nesse enfrentamento.
Aqui vale resgatar a atuação exitosa dessas organizações na luta racial no país. Na década de 1990, a atuação das OSCs foi ampliada em busca da representatividade da comunidade negra em vários segmentos e políticas públicas da nossa sociedade. Experiências inovadoras surgiram, a exemplo dos cursos pré-vestibulares comunitários e acesso a bolsas de estudos voltadas a jovens negros e de baixa renda. Além disso, multiplicaram-se projetos de capacitação de professores em pedagogia antirracista, oficinas culturais e programas de qualificação profissional para a população negra. Essas ações concretas demonstram como as organizações da sociedade civil passaram a investir em estratégias de promoção da igualdade racial, buscando gerar oportunidades e conscientização direta nas comunidades.
Outro campo relevante de atuação das entidades do terceiro setor é a incidência em políticas públicas, especialmente na promoção da equidade racial. Essa atuação envolve o assessoramento técnico, a defesa de direitos e a garantia de sua efetivação, incluindo o apoio financeiro a organizações que desenvolvem ações voltadas à pauta racial. Compreende também a ocupação de espaços de poder e a participação ativa na formulação e monitoramento de políticas públicas direcionadas à população negra. Destaca-se, ainda, a mobilização para que essas políticas sejam construídas com a efetiva participação dos sujeitos de direito, assegurando que suas vozes estejam presentes nos processos decisórios. Diversas organizações têm contribuído significativamente para o debate e a formulação de ações afirmativas, como a implementação de cotas raciais no ensino superior e no serviço público. Além disso, entidades comprometidas com os direitos da população negra participam de conselhos e fóruns governamentais, acompanhando a execução de planos de igualdade racial e propondo aperfeiçoamentos.
Desafios de diversidade dentro do terceiro setor
Reconhecendo os avanços na agenda antirracista, observa-se que o terceiro setor também tem buscado refletir internamente os valores de diversidade racial. Estudos recentes indicam que pessoas negras, no entanto, ainda estão sub-representadas em muitos quadros organizacionais das OSCs. Pesquisa feita pela ABONG revelou que cerca de 46% daqueles que atuam em organizações sociais são negros (pretos ou pardos). Embora esse número se aproxime da metade do total, o estudo apontou disparidades significativas: trabalhadores negros no terceiro setor recebem, em média, 27% a menos que os brancos ocupando funções equivalentes.
A desigualdade se acentua nos postos de liderança. Em posições de diretoria e alta gestão, a presença de profissionais negros é notadamente menor. Dados da mesma pesquisa mostram que, em 2019, havia uma diferença de 34% entre a ocupação de cargos diretivos por brancos versus negros, indicando que os brancos dominavam a direção das organizações.
Esse panorama convida à reflexão sobre a importância de ampliar a diversidade racial também nos nossos conselhos e diretorias das entidades do terceiro setor, promovendo maior inclusão de pessoas negras nos espaços de decisão, justamente para sermos a mudança que queremos e defendemos que haja no mundo. Assim como nas empresas e no setor público, a diversidade na governança das OSCs é fundamental não apenas por questão de representatividade, mas também para enriquecer as perspectivas e aprimorar as tomadas de decisão dentro dessas instituições.
Fortalecimento institucional e contornos jurídicos
Diante desses desafios, torna-se necessário não apenas apontar problemas, mas também indicar caminhos para o fortalecimento institucional das OSCs na promoção da igualdade racial. Uma primeira frente é aprimorar a governança e o compliance jurídico dessas entidades. Isso inclui a implementação de políticas de integridade e códigos de conduta antidiscriminatórios robustos, a criação de canais seguros de denúncia com protocolos objetivos de apuração, estabelecimento de comitês de diversidade para acompanhamento e fomento desses temas nas organizações, implementação de cuidados para evitar práticas pautadas em vieses inconscientes em processos seletivos, treinamentos e conversas obrigatórios sobre discriminação interseccional para toda a equipe, entre outros pontos.
Deve-se pensar em um "compliance antidiscriminatório”, portanto, o que abrange múltiplas dimensões jurídicas. No âmbito da LGPD, as OSCs devem estabelecer protocolos específicos para o tratamento de dados pessoais sensíveis, evitando o uso de algoritmos discriminatórios em seus sistemas de seleção e demais plataformas, assim como promover práticas efetivas para evitar qualquer tipo de discriminação negativa utilizando-se dados relacionados à raça, cor ou etnia. Em termos contratuais, recomenda-se que as OSCs incorporem cláusulas antidiscriminatórias explícitas em suas diversas relações, além de estabelecer práticas de devida diligência (due diligence) em fornecedores e parceiros, para garantir que todo o ecossistema esteja alinhado aos princípios e valores de combate à discriminação.
Vale lembrar que o próprio Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (lei federal 13.019/141) traz, entre seus fundamentos, o respeito à diversidade e à inclusão social como valores a serem assegurados nas parcerias entre Estado e OSCs, sendo esse princípio exigido também para as que atuam no assessoramento, defesa e garantia de direitos. Além disso, a norma aplicável às entidades de assistência social impõe a promoção de práticas de gestão que previnam, entre outras condutas, o racismo no ambiente de trabalho. Percebe-se, portanto, a existência de iniciativas legais aplicáveis ao Terceiro Setor estimulando a diversidade como princípio basilar, reforçando a expectativa de que as entidades sem fins lucrativos atuem com esse compromisso.
Outra ação estratégica está na elaboração de estatutos sociais e códigos de conduta que expressem claramente o compromisso da organização com a não discriminação. Estatutos bem formulados, além de atenderem às exigências legais, podem prever mecanismos de promoção da equidade (por exemplo, princípios de igualdade nas contratações, metas de diversidade no quadro de funcionários ou reserva de cadeiras para minorias em conselhos consultivos).
Por fim, a capacitação e o apoio técnico despontam como serviços valiosos para as OSCs enfrentarem esses desafios. Programas de treinamento em compliance, workshops sobre diversidade e consultorias especializadas podem ajudar as organizações a implementar práticas de gestão mais inclusivas.
Perspectivas futuras
A luta contra o racismo demanda um esforço coletivo, contínuo e multifacetado. Ao celebrarmos o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial, não apenas rememoramos um avanço legal ocorrido há mais de 70 anos, mas também refletimos sobre como aprimorar as estruturas atuais para tornar a igualdade racial uma realidade. As leis, por si sós, não bastam, pois é na sua aplicação e no engajamento da sociedade civil que elas ganham vida.
Algumas experiências na atuação antirracista emergem como fundamentais para o sucesso de iniciativas nessa direção. Primeiro, a institucionalização gradual. Isto porque resultados consistentes são mais possíveis de serem atingidos numa abordagem de implementação por etapas, começando pela revisão de documentos organizacionais e culminando na criação de políticas efetivas e indicadores de impacto mensuráveis. Essa abordagem permite ajustes sem comprometer a operação e facilita a assimilação cultural das mudanças.
Segundo, deve haver a integração do combate à discriminação com a missão organizacional. Políticas antidiscriminatórias não devem ser vistas como anexos burocráticos ou interesses de grupos ou pessoas específicas, mas como elementos intrínsecos à efetividade dos programas, projetos e atividades da organização como um todo. Organizações que conseguiram essa integração relatam não apenas redução de conflitos internos, mas também melhoria na qualidade das atividades desenvolvidas e dos serviços prestados aos seus beneficiários.
Terceiro, o monitoramento precisa estar baseado em evidências. A sustentabilidade de políticas antidiscriminatórias depende também da capacidade de demonstrar resultados concretos, tanto para partes interessadas dentro da própria organização quanto para financiadores e parceiros. Isso inclui métricas de diversidade, indicadores de clima organizacional e avaliação de impacto nos programas executados, por exemplo.
É importante ressaltar, contudo, que embora o compromisso com a não discriminação deva ser universal entre as organizações da sociedade civil, não existem fórmulas prontas ou modelos únicos para sua implementação. Cada OSC possui características específicas - porte, área de atuação, público beneficiário, estrutura organizacional e contexto regional - que demandam abordagens particulares. Uma organização que atua em comunidades quilombolas terá desafios distintos de outra focada em tecnologia social urbana. Do mesmo modo, uma entidade com 50 colaboradores enfrentará questões diferentes de um coletivo com atuação voluntária.
A efetividade das políticas antidiscriminatórias depende, portanto, de um diagnóstico cuidadoso da realidade organizacional e da construção de estratégias sob medida. O que se apresenta como boas práticas deve ser adaptado, não replicado mecanicamente. Nessa personalização reside tanto o desafio quanto a oportunidade de construir um terceiro setor verdadeiramente inclusivo e representativo da diversidade brasileira.
As organizações do terceiro setor, com seu histórico de conquistas e aprendizados, seguem sendo atores fundamentais nessa transformação social. Fortalecê-las institucionalmente, promover a diversidade em seus próprios quadros e dotá-las de ferramentas adequadas são passos decisivos para que estejam à altura desse desafio.
_______
1 Art. 5º O regime jurídico de que trata esta Lei tem como fundamentos a gestão pública democrática, a participação social, o fortalecimento da sociedade civil, a transparência na aplicação dos recursos públicos, os princípios da legalidade, da legitimidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da economicidade, da eficiência e da eficácia, destinando-se a assegurar: (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015)