No mundo de hoje, marcado por guerras que parecem intermináveis, fome crescente mesmo diante da abundância, exclusão sistemática de populações inteiras e um ódio que se dissemina com velocidade nas redes e nas ruas, é legítimo nos perguntarmos: os direitos humanos deram certo? A promessa de dignidade universal, de igualdade e liberdade para todos os seres humanos, soa cada vez mais distante para milhões de pessoas. Frente a isso, há quem deseje simplesmente abandonar esse projeto, como quem joga fora a água suja da bacia - mas com ela, arrisca-se a jogar também o bebê.
Talvez o problema não esteja na ideia de direitos humanos em si, mas na forma como ela foi historicamente concebida e aplicada: eurocentrada, abstrata, individualista, muitas vezes desvinculada dos territórios, dos corpos e das experiências concretas dos povos. Para não desistirmos dos direitos humanos, precisamos reimaginá-los. E uma das portas mais potentes para essa reinvenção se abre na obra e na vida de Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo.
Seu pensamento é uma convocação radical à pluralidade. Em vez de tentar salvar os direitos humanos apenas por meio de reformas internas, ele nos convida a atravessar fronteiras epistemológicas. A partir de sua vivência quilombola, de sua oralidade potente e de seu enraizamento na terra, Nego Bispo reconstrói a gramática do justo e do digno a partir da ancestralidade, da circularidade e da convivência com a diversidade.
Para ele, as palavras são armas e sementes. “Vamos pegar as palavras do inimigo que estão potentes e vamos enfraquecê-las. E vamos pegar as nossas palavras que estão enfraquecidas e vamos potencializá-las.” Essa “guerra das denominações” não é apenas um gesto linguístico; é uma prática política. É uma recusa do colonizador de sentidos. É o exercício contra colonial de transformar o que está fraturado em força.
Direitos humanos, nessa chave, não são conceitos fixos, mas práticas vivas, orgânicas, situadas. São, como diz ele, fruto de “confluência”: encontro de rios que não perdem sua identidade ao se encontrarem, mas se fortalecem. “Um rio não deixa de ser um rio porque confluí com outro rio, ao contrário, ele passa a ser ele mesmo e outros rios, ele se fortalece.” Assim também deveriam ser os direitos: não universais por subtração, mas pluriversais por confluência. Um direito que não nasce da imposição de um modelo único de humanidade, mas do encontro fértil entre modos diversos de habitar o mundo; uma ética do múltiplo, do relacional, do rizomático.
Contra a cosmofobia - esse medo da diversidade, das formas múltiplas de vida - Bispo afirma a potência do diverso: “Enquanto a sociedade se faz com os iguais, a comunidade se faz com os diversos.” Sua crítica ao humanismo moderno é justamente sua tentativa de aprisionar a humanidade numa forma única de ser, pensar e viver. Contra isso, propõe o “pensamento fronteiriço”, que reconhece as bordas como lugar de troca, e o mundo como espaço de pluriversos - muitos mundos dentro do mundo, todos legítimos.
E, sobretudo, ele nos oferece uma filosofia do cuidado e da convivência: “O mundo é grande e tem lugar para todo mundo. O mundo é redondo exatamente para as pessoas não se atropelarem.” Os direitos humanos, nesse horizonte, deixam de ser um pacto entre iguais abstratos e passam a ser uma conversa entre diferentes que se reconhecem na sua interdependência. O cuidado, aqui, é fundamento político dos direitos humanos. É a ética da interdependência, da convivência, da recusa ao atropelo e à destruição.
Somos, nas palavras de Nego Bispo, povos de trajetórias, não de teorias. “Somos da circularidade: começo, meio e começo. As nossas vidas não têm fim.” Nessa cosmovisão, o tempo é espiralado, o direito é relacional, e a justiça é semente: se planta, se cultiva, se compartilha.
Re-semear os direitos humanos com Nego Bispo não se trata de romantizar a margem, mas de reconhecer que há sabedorias que resistem ao colapso do mundo porque nunca dependeram da sua centralidade.