Diversas iniciativas governamentais têm sido implementadas no Brasil com o objetivo de impulsionar a expansão e a eficiência do mercado de gás natural. O Ministério de Minas Energia à época do Governo Temer idealizou e lançou a programa Gás para Crescer. O programa, por si só, não foi suficiente para acelerar a tramitação do PL 6.407/13, que tinha como proposito alterar os dispositivos da lei 11.909, de 4 de março de 2009, que tratava à época do gás natural. Não existem dúvidas que os avanços legislativos e regulatórios eram almejados por todos da indústria, mas ao longo desse período não foi possível chegar a um consenso. Ao final do Governo Temer, todavia, foi editado o decreto 9.616 de 17 de dezembro de 2018, que trouxe algumas alterações no decreto 7.382, de 2 de dezembro de 2010, especialmente no segmento de transporte de gás natural. A agenda adotada no Governo Bolsonaro em relação a Petrobras, incentivando o processo de desinvestimento dos ativos da petroleira, contribuiu para dar continuidade as discussões iniciadas no Governo anterior. Assim, foi criado o programa denominado Novo Mercado de Gás Natural que contemplou uma articulação e coordenação com diferentes entes governamentais. Igualmente, foi assinado o Termo de Cessão de Conduta entre a Petrobras e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica que visava promover a concorrência no setor de gás natural por meio da desverticalização da atuação da estatal, especialmente com a venda de ativos nas áreas de transporte e distribuição de gás natural. Após um longo processo legislativo, que atravessou o período da pandemia, e enfrentou emendas no Senado Federal, a nova lei do gás 14.134 foi sancionada em 8 de abril de 2021, tendo sido regulamentada pelo decreto 10.712, de 2 de junho de 2021. Esse novo comando legal, entre outras, estabeleceu o acesso não discriminatório a infraestruturas essenciais de gás natural, como gasodutos de escoamento, instalações de tratamento/processamento e terminais de GNL, por meio de negociação entre as partes. Restou consolidada, portanto, uma mudança de paradigma para os agentes que operam no segmento de up-stream, especialmente no off-shore, visto que anteriormente estavam desobrigados por lei a permitir o acesso de terceiros. Para direcionar as negociações entre as partes interessadas, a lei determinou que fosse elaborado um código de conduta e prática de acesso à infraestrutura por terceiros. Assim, os agentes, por meio de grupo de trabalho coordenado pelo Instituto Brasileiro de Petróleo, editaram “Diretrizes para acesso a gasodutos de escoamento”, tendo como referência as melhores práticas internacionais e adotando como base o Code of Practice on Access to Upstream Oil and Gas Infrastructure on the UK Continental Shelf. As diretrizes para acesso às UPGNs já haviam sido elaboradas alguns anos antes seguindo as mesmas referências internacionais, e alinhada com as discussões travadasno âmbito do programa Gás para Crescer. Atualmente, estão operacionais três sistemas de gasodutos de escoamento de gás natural (Rota 1, Rota 2 e Rota 3) e compreendem o Sistema Integrado de Escoamento da Bacia de Santos, o qual inclui gasodutos de propriedade da Petrobras, Shell Brasil Petróleo Ltda, Petrogal Brasil SA e Repsol Sinopec Brasil SA. A existência dessas três rotas de gasodutos de escoamento possibilita a conexão de vinte plataformas de produção com capacidade total de escoamento de gás natural de 44 milhões de m3 /dia. De acordo com o Anuário Estatístico Brasileiro do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis 2024 da ANP, o volume de gás natural processado em 2023 corresponde a 20,1 bilhões de m3. Não obstante, tanto o governo quanto setores da industria, defendem que as reservas de gás natural podem ser mais bem aproveitadas pelos operadores que atuam no segmento off-shore. Atualmente, observa-se um elevado nível de reinjeção de gás natural, em razão de diversos fatores. Entre eles, destacam-se a utilização do gás para incrementar a recuperação de óleo nos reservatórios do pré-sal, os gargalos na implementação da infraestrutura de escoamento do gás natural e no acesso negociado a essa infraestrutura, além de incertezas quanto ao retorno do capital investido. Para encontrar soluções para essa problemática, estudos foram realizadas partindo da premissa de que as atividades de escoamento e de processamento de gás natural têm características de monopólio natural, enquanto as atividades de exploração e produção (E&P) de O&G são concorrenciais. Portanto, há riscos e retornos de investimentos distintos, com perfis de investidores diferentes para cada atividade. Uma solução possível seria a segregação das atividades de escoamento e de processamento de gás natural das atividades de E&P, a fim de permitir a alocação adequada de riscos e remuneração condizente. Essa solução constou, inicialmente, no estudo elaborado pelo BNDES denominado de Gás para o Desenvolvimento. Mesmo com as mudanças implementadas pelo Governo Lula em relação ao desinvestimento da Petrobras no sentido de suspender a venda de ativor e recomprar refinarias alienadas para a iniciativa privada, a revitalização da indústria de gás natural continuou em pauta. O Conselho de Política Energética Nacional instituiu, por meio da resolução, grupos de trabalho temáticos para desenvolver as diretrizes do Programa denominado de Gás para Empregar. Após um longo período de reuniões, análises, encontros com agentes da cadeia de valor de gás natural, foram apresentados relatórios por cada um dos grupos de trabalho criados. Ao final, o Ministério de Minas Energia encaminhou para aprovação do Presidente da República uma minuta de decreto alterando dispositivos do decreto 10.712, de 2 de junho de 2021. Na linha do que já tinha sido observado pelo BNDES, a exposição de motivos que acompanha a minuta do decreto consignou que um dos principais entraves identificados no processo de incremento da demanda de gás natural refere-se ao custo de acesso às infraestruturas essenciais, como os sistemas de escoamento, processamento e transporte. Ou seja, o gás natural abundante nos campos produtores off shore localizados no Sudeste ficam represados e não chegam aos mercados consumidores no continente em razão da dificuldade de realizar o seu escoamento. Segundo diagnóstico apresentado pelos grupos de trabalho, os valores cobrados por operadores para permitir o uso dessas estruturas são, em alguns casos, superiores ao custo de construção de uma nova infraestrutura, o que configura uma barreira econômica significativa e evidencia o desequilíbrio nas negociações. Além disso, os contratos vigentes impõem penalidades elevadas em caso de descumprimento, o que desincentiva a entrada de novos ofertantes e penaliza iniciativas comerciais alternativas. Como consequência, de acordo com as avaliações realizadas pelo grupo de trabalho, produtores optam frequentemente pela reinjeção do gás natural nos reservatórios, mesmo quando que tecnicamente desnecessário. Da mesma forma, as incertezas em relação a monetização do gás natural e, sobretudo, seu baixo retorno quando comparado com a venda de óleo, direciona o investimento do operador para uma infraestrutura de produção focada na monetização do óleo que é comercializado num mercado global de maior liquidez. Nota-se que as últimas plataformas encomendadas pela Petrobras possuíam especificações que privilegiavam a otimização na extração do óleo e o volume de barris produzidos, e não o aproveitamento do gas in place do reservatório. Isso porque a configuração de plataformas voltadas à otimização da produção de gás reduz a capacidade de extração de petróleo, em razão das limitações de espaço físico na embarcação. Veja, por exemplo, que as FPSO Almirante Tamandaré, FPSO P-80, FPSO P-82, FPSO P-83, foram (e estão sendo) construídas com uma capacidade de produção de 225 mil barris por dia e com uma menor ou nenhuma capacidade de aproveitamento do gás natural. A minuta de decreto alterando dispositivos do decreto 10.712, de 2 de junho de 2021 foi assinada pelo Presidente Lula em 26/8/2024 com uma série de alterações que podem ser destacadas da seguinte maneira: (i) Criação do Plano Nacional Integrado das Infraestruturas de Gás Natural e Biometano ("PNIIGB") por parte da EPE e participação da mesma na etapa de autorização para as atividades de escoamento, processamento, tratamento, transporte e estocagem subterrânea de gás natural; (ii) Aplicação subsidiária do regime de acesso regulado de terceiros ao transporte às infraestruturas de escoamento e processamento de gás natural;(iii) Possibilidade de determinação de revisão dos planos de desenvolvimento com o objetivo de redução dos níveis de reinjeção de gás natural; (iv) Previsão de competência da ANP para promover ações para assegurar a transparência na formação de preços e identificar os custos do gás natural, de seus derivados e do biometano, praticados pelos agentes do mercado; (v) Adoção transitória da modalidade postal para as tarifas de transporte, com adoção de tarifa uniforme cobrada de todos os carregadores no sistema de transporte;(vi) Possibilidade de a ANP realizar termos de ajustamento de conduta; e (vii) Criação do Comitê de Monitoramento do Setor de Gás Natural. As alterações inseridas pelo decreto geraram diferentes repercussões no mercado. De um lado, grupo de consumidores divulgaram nota defendendo a iniciativa do governo e afirmando que as alterações criam uma melhor perspectiva na abertura do mercado de gás natural. Os produtores, por sua vez, se manifestaram em sentido contrário e reforçaram que o decreto trouxe inovações e contradições em relação a lei, o que pode trazer insegurança jurídica e intervenções indevidas. Os representantes do governo saírem em defesa da iniciativa afirmando que o decreto não se tratava de uma inovação legal, e o seu objetivo foi atender aos objetivos da política nacional energética para o aproveitamento racional das fontes de energia como a preservação do interesse nacional, a valorização dos recursos, a proteção dos interesses do consumidos quanto ao preço, qualidade e oferta dos produtos, o incremento, em bases econômicas da utilização do gás natural, a livre concorrência. Adicionalmente, a possibilidade de revisão dos planos de desenvolvimento tem como fundamento a lei do petróleo e a nova lei do gás, a fim de explorar economicamente o bem da União para atender interesses públicos, assim como com o propósito de adotar estímulo à eficiência e à competividade e da redução da concentração na oferta de gás natural. O decreto incluiu a EPE como uma interveniente anuente no curso da obtenção das autorizações para exercício das atividades de escoamento, processamento, tratamento, transporte e estocagem subterrânea de gás natural, e conferindo mais poderes de planejamento do setor de gás que antes ocorria de maneira indicativa. Atualmente, os agentes interessados em obter autorização para a construção dessas infraestruturas estão submetidos, além da avaliação da ANP, à análise da EPE, que deverá seguir o rito estabelecido pelo Decreto, incluindo a realização de processo seletivo público. Essa inovação foi alvo de críticas por parte dos agentes, que apontam o risco de que essa etapa adicional acarrete maior morosidade no processo de autorização. A Petroreconvaco, por exemplo, ao submeter solicitação para construção de novo Polo de Processamento de Gás Natural - UPGN Mirange teve seu requerimento avaliado pela Superintendente de Produção de Combustíveis e, ainda, pela Diretoria de Estudos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis da EPE. Ao final, ambos os órgãos não apresentaram objeções quanto a implementação da infraestrutura, tendo a EPE enfatizado que a infraestrutura de processamento é compatível com o planejamento setorial e não prejudica o seu uso. No entanto, chama atenção o fato de a EPE recomendou na nota técnica EPE/DPG/SPG/04/2025 que a ANP já solicitasse do operador informações mais detalhadas relativas aos aspectos econômicos e financeiros a respeito da unidade de processamento que será construída como, por exemplo, a memória de cálculo e seus respectivos parâmetros da tarifa estimados para acesso de terceiros. A ANP, nesse primeiro momento, não acolheu a recomendação, mas poderá fazer quando o agente solicitar a autorização de operação após a conclusão da construção do ativo. Esse foi a primeira avaliação realizada pela ANP e EPE após as mudanças inseridas no decreto 12.153/24 e consumiu cerca de 6 meses para ser concluído. Pode-se notar que as regras estabelecidas no referido decreto já estão mudando a forma de conceber os projetos de escoamento, processamento, tratamento, transporte e estocagem subterrânea de gás natural. Isso porque, além daqueles documentos usualmente preparados e exigidos para obtenção das autorizações necessárias, será necessário apresentar documentos adicionais para permitir aos usuários uma melhor percepção sobre os custos associados ao acesso. A análise realizada pela EPE no caso em referência não considerou o Plano Nacional Integrado das Infraestruturas de Gás Natural e Biometano, visto que ele não está pronto. A EPE já apresentou uma sugestão de metodologia para elaboração de tal estudo e instituiu uma chamada pública para obter contribuições de agentes do setor, sendo que a previsão é de que uma versão final do plano seja publicada até Dezembro de 2025. Mesmo diante de críticas de representantes dos produtores, o documento funcionará como guia para o avanço de projetos ao longo da cadeia de valor do gás natural e contemplará outros estudos já divulgados pela EPE como o Plano Nacional de Energia, o Plano Decenal de Expansão de Energia, o Plano Indicativo de Processamento e Escoamento de Gás Natural, o Plano Indicativo de Terminais de GNL e o Plano Indicativo de Gasodutos de Transporte. Nos últimos anos, a ANP tem aprovado planos de desenvolvimentos estratégicos para o desenvolvimento de jazidas off-shore relevantes, refletindo o avanço do segmento de O&G e viabilizando a continuidade da produção. Em 2021, foi aprovado o Plano de Desenvolvimento da Jazida Compartilhada da Área de Desenvolvimento de Mero e Área não Contratada, nos termos do contrato Partilha de Produção de Mero. Na ocasião, foi consignado na resolução de diretoria 758/21 que até o final de 2025 a operadora deveria apresentar uma avaliação quanto à viabilidade técnica e econômica a respeito do aproveitamento do gás natural, incluindo a instalação de Hub para tratamento e exportação do gás produzido, previsão de disponibilidade da infraestrutura de exportação de gás natural para o período 2025-2035 e aumento do volume disponível de gás natural. Para o Campo de Búzios, de acordo com a resolução de diretoria 29/23, também foi estabelecido que até 31 de dezembro de 2026, o operador deveria apresentar “outras tecnologias ou combinação de tecnologias que possam promover a elevação da disponibilização de gás natural a partir de 2030.” Já para os Campos de Bacalhau e Bacalhau Norte, tanto a resolução de diretoria 163/21, quanto a 1.151, ao analisarem o plano de desenvolvimento apresentado pelo operador, insistem na necessidade de adequado aproveitamento do gás natural. Para esses dois últimos campos, a ANP já analisou os relatórios apresentadas seguindo a diretriz governamental previsto no programa Gás para Empregar, e na resolução CNPE 16/19. E, ainda, consignou que o projeto desenvolvido no Campos de Bacalhau e Bacalhau Norte deverá atender ao decreto 12.153, de agosto de 2024 que permite, por exemplo, que a ANP determine a redução da reinjeção de gás natural ao mínimo necessário ou incremento da produção de gás natural para campos em produção.
A despeito das incertezas quanto à implementação das novas diretrizes, pode-se notar que as regras estabelecidas no decreto 12.153/24 já estão influenciando de forma concreta a concepção dos projetos de escoamento, processamento, tratamento, transporte e estocagem subterrânea de gás natural. A exigência de maior transparência, integração com o planejamento energético e participação prévia da EPE no processo autorizativo vem redefinindo os parâmetros técnicos e econômicos que norteiam tais empreendimentos. Ainda que enfrentem resistências, essas mudanças regulatórias sinalizam uma inflexão relevante na política pública para o setor, com o potencial de ampliar o aproveitamento do gás natural nacional, estimular novos investimentos e promover maior equilíbrio concorrencial ao longo da cadeia.