1. Introdução
A colaboração premiada, após sua ampla utilização na autodenominada Operação Lava Jato, tornou-se um dos instrumentos mais debatidos do processo penal contemporâneo e tem retornado recorrentemente ao centro dos debates. Mais recentemente, esse retorno se deu por ocasião do julgamento do golpe de Estado e da respectiva colaboração premiada firmada por Mauro Cid.
Desde sua normatização mais sistemática pela lei 12.850/13, esse instrumento passou a ser usado com muita frequência em investigações de grande repercussão, especialmente no que envolve crimes como lavagem de dinheiro, corrupção, organização criminosa. No entanto, o uso recorrente da colaboração também gerou dúvidas, críticas e desafios práticos relevantes para a atuação de todo o sistema de justiça, especialmente para a advocacia criminal. Este artigo busca apresentar alguns dos diversos aspectos da Colaboração Premiada, como os fundamentos legais, os principais conceitos, os limites constitucionais, servindo como introdução crítica ao tema.
2. Evolução legislativa e construção jurisprudencial
A colaboração premiada surgiu de forma dispersa em diversos diplomas legais antes de ser sistematizada pela lei 12.850/13. Já era prevista, por exemplo, na lei dos crimes hediondos (lei 8.072/90), na lei de proteção a vítimas e testemunhas (lei 9.807/1999), na lei de lavagem de capitais (lei 9.613/1998) e na lei de drogas (lei 11.343/06). No entanto, foi com o advento da lei 12.850/13 que se passou a tratar do instituto com clareza quanto ao seu procedimento, requisitos, benefícios possíveis e garantias do colaborador.
Além disso, três decisões do STF marcaram a consolidação dos conceitos estruturantes da colaboração premiada: o HC 127.483/PR, a PET 7074 QO e a ADI 5508.
No HC 127.483/PR, rel. min. Teori Zavascki, o Tribunal firmou que a homologação judicial do acordo deve se limitar à verificação da legalidade, voluntariedade e regularidade do ajuste, sem adentrar no mérito do conteúdo. Ainda nessa decisão, ficou assentado o entendimento de que “A colaboração premiada é um negócio jurídico processual” e trata-se de meio de obtenção de provas. Ademais, o STF reafirmou o caráter personalíssimo do acordo, vedando sua impugnação por coautores não signatários, admissibilidade da disposição sobre os efeitos extrapenais, bem como que a sanção premial é direito subjetivo do colaborador, caso a colaboração seja efetiva. No mesmo sentido, é a decisão do STJ, no RHC 69.988/RJ.
Na PET 7074 QO (rel. min. Edson Fachin), o plenário reafirmou que a competência para homologação do acordo, em sede no STF, é do relator, nos termos do art. 4º, § 7º da lei 12.850/13, sendo que a eficácia do acordo só será analisada no momento da sentença e dos termos do acordo, considerando, portanto, controle jurisdicional diferido.
Já na ADI 5508, o STF julgou improcedente pedido que pretendia excluir a possibilidade de acordos firmados por delegados de polícia, consolidando o entendimento de que a colaboração pode ser iniciada na fase de inquérito, com atuação da polícia.
3. Conceitos fundamentais
A colaboração premiada é definida como um negócio jurídico processual entre o investigado ou acusado e o Estado, com objetivo de obter informações úteis à investigação criminal, em troca de benefícios como redução de pena, perdão judicial ou substituição da pena por restritivas de direitos (art. 4º da lei 12.850/13).
Segundo Bitencourt1, “se definia o instituto como um benefício de natureza penal material, consistente na redução de pena (podendo chegar, em algumas hipóteses, até mesmo à total isenção de pena) para o acusado que cooperasse com a autoridade policial ou judicial, o qual é concedido pelo juiz na sentença final condenatória, desde que satisfeitos os requisitos que a lei estabelece”.
Podemos elencar quatro fases da colaboração premiada, quais sejam, negociação, homologação, colaboração/produção da prova e sentença, momento em que será avaliado o benefício a ser concedido. Nesse sentido, o acordo pode ser realizado em todas as fases desde investigação preliminar, no processo, na execução penal e após o trânsito em julgado2.
Vinicius Vasconcelos3 propõem como requisitos de admissibilidade e validade do acordo, sendo eles de admissibilidade a adequação/idoneidade, necessidade e proporcionalidade e quanto aos requisitos de validade, aponta como voluntariedade, inteligência e adequação/exatidão, além de assistência por defensor técnico.
4. O que avaliar antes de celebrar um acordo
A decisão de colaborar deve ser feita com cautela, após análise técnica da robustez das provas, dos riscos penais do colaborador, da eventual repercussão reputacional e da coerência dos compromissos exigidos. Conforme Nefi Cordeiro4, “a colaboração do acusado pode se dar por razões morais de arrependimento e de busca do correto, mas também pode ocorrer por válida estratégia processual” e complementa “o acusado compreender como melhor à sua defesa buscar a redução de pena”5.
O advogado deve esclarecer ao cliente que a colaboração exige renúncia ao silêncio (art. 4º, § 14) e à impugnação futura das cláusulas (art. 4º, § 7º). Além disso, a colaboração só é válida se gerar efeitos concretos.
5. Efeitos da colaboração
Conforme já visto, os principais efeitos da colaboração premiada são a possibilidade de redução da pena em até 2/3, a substituição por pena restritiva de direitos, ou ainda o perdão judicial (art. 4º, caput, da lei 12.850/13).
Além disso, em diversos precedentes do STF, há possibilidade de redução de pena ao réu delator, mesmo sem a formalização do acordo: (HC 127.483/PR, Plenário, rel. min. Dias Toffoli, j. 27/8/2015, p. 40; Inq. 3.204, 2ª turma, rel. min. Gilmar Mendes, j. 23/6/2015; RE-AgR 1.103.435, 2ª turma, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 17/5/2019; MS 35.693 AgR, 2ª turma, rel. min. Edson Fachin, j. 28/5/2019), 2ª turma, e do STJ (STJ, REsp 1.691.901/RS, 6ª turma, rel. min. Sebastião Reis Júnior, j. 26/9/2017)6.
Ainda, em construção jurisprudencial, consolidou-se o entendimento de que o interrogatório do colaborador delator deve ser realizado antes dos demais corréus.
Embora parte da doutrina sustente que o delator deveria ser ouvido na condição de testemunha da acusação (Vasconcellos, 2018, p.124), a jurisprudência brasileira reconhece sua natureza híbrida: é réu, mas atua com funções típicas de colaborador da persecução penal, o que justifica a necessidade de seu interrogatório prévio.
Por fim, quanto ao descumprimento do acordo de colaboração premiada, não permite, por si só, a imposição de prisão preventiva (STF, HC 138.207, Rel. ministro Edson Fachin), bem como “a inexecução voluntária do contrato bilateral gera o retorno à situação prévia, com a satisfação de eventuais perdas e danos. Todas essas considerações do negócio jurídico são integralmente aplicáveis à colaboração premiada.7”
6. Conclusão
A colaboração premiada representa um instrumento processual de alta relevância no enfrentamento da criminalidade organizada e dos crimes econômicos no Brasil contemporâneo. Sua previsão normativa, principalmente a partir da lei 12.850/13. No entanto, a prática acumulada ao longo da última década também revelou os desafios estruturais e os riscos de deformações no uso do instituto.
O estudo da evolução legislativa e da construção jurisprudencial dos conceitos centrais da colaboração premiada demonstra que o respeito às garantias fundamentais do réu, como a voluntariedade, a ampla defesa, o contraditório e a legalidade estrita, não pode ser relativizada em nome da eficiência. A homologação de acordos pelo Judiciário deve respeitar limites formais e materiais, e qualquer cláusula que extrapole os contornos legais deve ser considerada nula, sob pena de corrosão da legitimidade do processo penal.
Ao mesmo tempo, a colaboração bem estruturada, tecnicamente assessorada e juridicamente válida pode representar uma estratégia legítima de defesa, especialmente quando o réu, ciente da gravidade do conjunto probatório, opta por cooperar com as investigações de forma voluntária e eficaz. Para tanto, o papel do advogado é essencial, não apenas como garantidor dos direitos do colaborador, mas como agente responsável por assegurar a lisura, a coerência e a efetividade do acordo.
Conclui-se, portanto, que a colaboração premiada deve ser compreendida não como um atalho ou barganha simplista, mas como um mecanismo de justiça negocial que exige responsabilidade técnica, controle judicial rigoroso e compromisso ético de todas as partes envolvidas. Em tempos de expansão do direito penal negocial, a prudência, a técnica e a consciência das nulidades processuais são as verdadeiras salvaguardas da integridade do sistema de justiça criminal.
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1 BITENCOURT, Cezar Roberto. MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes Contra a Ordem Tributária. 2. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 275.
2 BITENCOURT, Cezar Roberto. MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes Contra a Ordem Tributária. 2. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 280.
3 VASCONCELLOS, Vinicius. 4. Pressupostos de Admissibilidade e Requisitos de Validade da Colaboração Premiada: Critérios para Orientar a Proposta e o Controle da Justiça Criminal Negocial In: VASCONCELLOS, Vinicius. Colaboração Premiada no Processo Penal - Ed. 2023. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais. 2023. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/colaboracao-premiada-no-processo-penal-ed-2023/1804175943. Acesso em: 5 de Julho de 2025.
4 CORDEIRO, Nefi. Colaboração Premiada: caracteres, limites e controles. Rio de Janeiro: Forense, 2020. [E-book], p. 62
5 CORDEIRO, Nefi. Colaboração Premiada: caracteres, limites e controles. Rio de Janeiro: Forense, 2020. [E-book], p. 62
6 BITENCOURT, Cezar Roberto. MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes Contra a Ordem Tributária. 2. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 284.
7 CORDEIRO, Nefi. Colaboração Premiada: caracteres, limites e controles. Rio de Janeiro: Forense, 2020. [E-book], p. 83-84.