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Reforma tributária 34: Desafios à fiscalização

O texto trata da fiscalização no âmbito da reforma tributária do consumo.

18/7/2025

O IVA dual brasileiro, formado pela CBS Federal, IBS estadual e IBS municipal, pode demandar a atuação de fiscalização dos três entes federativos, por meio de seus respectivos auditores: Federal, estadual e municipal. Para que essa fiscalização integrada seja possível, é preciso que se configure uma nova dinâmica de compartilhamento de informações, coordenação de ações e colaboração entre Fiscos.

Os documentos fiscais eletrônicos relativos às operações com bens ou com serviços deverão ser compartilhados com todos os entes federativos no momento da autorização ou da recepção, com utilização de padrões técnicos uniformes.

1. Base cadastral única e DTE

A primeira questão é que o art. 59 da LC  214/25 estabelece que as pessoas físicas, jurídicas e as entidades sem personalidade jurídica sujeitas ao IBS e à CBS são obrigadas a se registrar em cadastro com identificação única. Consideram-se os seguintes cadastros administrados pela RFB:

I - De pessoas físicas, o CPF - Cadastro de Pessoas Físicas;

II - de pessoas jurídicas e entidades sem personalidade jurídica, o CNPJ - Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica; e

III - De imóveis rurais e urbanos, o CIB - Cadastro Imobiliário Brasileiro.

As informações cadastrais terão integração, sincronização, cooperação e compartilhamento obrigatórios e tempestivos em ambiente nacional de dados entre as administrações tributárias Federal, estaduais, distrital e municipais. Para isso, o ambiente nacional de compartilhamento e integração das informações cadastrais terá gestão compartilhada por meio do CGSIM - Comitê para Gestão da Rede Nacional para Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios, nos termos da LC 123/2006 (que estabelece as regras e funcionamento das microempresas e empresas de pequeno porte).

As administrações tributárias Federal, estaduais, distrital e municipais poderão tratar de dados complementares e atributos específicos para gestão fiscal do IBS e da CBS.

Para que seja possível essa fiscalização e integração de sistemas, o DTE - Domicílio Tributário Eletrônico, previsto no art. 59 será unificado e obrigatório para todas as entidades e demais pessoas jurídicas sujeitas à inscrição no CNPJ.

As Fazendas federal, estaduais e municipais vão acessar o mesmo cadastro de contribuintes, de forma que a compatibilidade de informações permitirá a atuação conjunta ou isolada.

O DTE substituirá qualquer outro tipo de notificação postal ou por edital e será obrigatoriamente usado por todos os contribuintes, pessoas físicas e jurídicas, inclusive para fins de instauração de procedimento e fiscalização.

2. Coordenação do Comitê Gestor do IBS

O Comitê Gestor do IBS tem a finalidade de coordenar as atividades conforme previsto na EC 132/23, e serão detalhadas em leis complementares, como a LC 214/25 (que trata do IBS) e outras normas regulamentadoras. As principais funções do Comitê Gestor do IBS - Imposto sobre Bens e Serviços são:

O atraso na eleição dos membros do Comitê Gestor pode prejudicar o andamento da implantação das normas.

3. Fiscalização no destino

Em regra, a tributação deverá ocorrer no destino ou pelo adquirente, de forma que a fiscalização deixa de ser na origem ou no fornecedor para se dar sobre o adquirente.

Observemos que:

Art. 11. Considera-se local da operação com:

I - Bem móvel material, o local da entrega ou disponibilização do bem ao destinatário;

II - Bem imóvel, bem móvel imaterial, inclusive direito relacionado a bem imóvel, serviço prestado fisicamente sobre bem imóvel e serviço de administração e intermediação de bem imóvel, o local onde o imóvel estiver situado;

III - Serviço prestado fisicamente sobre a pessoa física ou fruído presencialmente por pessoa física, o local da prestação do serviço;

IV - Serviço de planejamento, organização e administração de feiras, exposições, congressos, espetáculos, exibições e congêneres, o local do evento a que se refere o serviço;

V - Serviço prestado fisicamente sobre bem móvel material e serviços portuários, o local da prestação do serviço;

VI - Serviço de transporte de passageiros, o local de início do transporte;

VII - Serviço de transporte de carga, o local da entrega ou disponibilização do bem ao destinatário constante no documento fiscal;

VIII - Serviço de exploração de via, mediante cobrança de valor a qualquer título, o território de cada Município e Estado ou do Distrito Federal, proporcionalmente à correspondente extensão da via explorada;

IX - Serviço de telefonia fixa e demais serviços de comunicação prestados por meio de cabos, fios, fibras e meios similares, o local de instalação do terminal; e

X - Demais serviços e demais bens móveis imateriais, inclusive direitos, o local do domicílio principal do:

a) Adquirente, nas operações onerosas;

b) Destinatário, nas operações não onerosas.

Essa ruptura com o sistema atual de tributação na origem ou no fornecedor implicará adaptação dos procedimentos de fiscalização local. Porém, será a tecnologia que fará a maior parte do trabalho, tornando a atuação dos agentes estatais de fiscalização muito mais pontual.

4. Fiscalização entre "pares": Creditamento somente após o recolhimento tributário do antecessor na cadeia

O maior estímulo para a regularidade fiscal deve se dar entre pares. De acordo com o art. 47, que trata da não cumulatividade, para que o contribuinte possa se apropriar de créditos do IBS e da CBS, deve ocorrer a extinção por qualquer das modalidades previstas no art. 27 dos débitos relativos às operações em que seja adquirente, excetuadas exclusivamente aquelas consideradas de uso ou consumo pessoal.

A apropriação dos créditos será realizada de forma segregada para o IBS e para a CBS, vedada, em qualquer hipótese, a compensação cruzada entre os tributos. A apropriação dos créditos está condicionada à comprovação de adimplemento da operação por meio de documento fiscal eletrônico idôneo.

Em suma, os contribuintes vão funcionar como fiscais entre si. Somente após verificado o efetivo pagamento do tributo será possível a apropriação dos créditos tributários.

A função dos profissionais de fiscalização se torna cada vez mais pontual e excepcional.

Considerando-se que a redução substancial da evasão fiscal também resultará em novas dinâmicas e funcionalidades dos sistemas de fiscalização e da atuação dos auditores fiscais.

5. Uso massivo das TICs e split payment (recolhimento financeiro)

As TCIs - Tecnologias da Informação e Comunicação referem-se ao conjunto de recursos tecnológicos utilizados para produzir, transmitir, processar, armazenar e acessar informações. No contexto tributário, essas tecnologias incluem ferramentas como sistemas de emissão de documentos fiscais eletrônicos, plataformas de cruzamento de dados, inteligência artificial, blockchain, algoritmos de auditoria digital, portais integrados de arrecadação e aplicativos móveis de monitoramento em tempo real.

Na fiscalização do IBS e da CBS, as TICs serão amplamente utilizadas para garantir o cumprimento das obrigações tributárias de forma automatizada, precisa e em tempo real. Exemplos práticos incluem:

De acordo com o art. 31, nas transações de pagamento relativas a operações com bens ou com serviços, os prestadores de serviços de pagamento eletrônico e as instituições operadoras de sistemas de pagamentos deverão segregar e recolher ao Comitê Gestor do IBS e à RFB, no momento da liquidação financeira da transação (split payment), os valores do IBS e da CBS.

Os procedimentos do split payment compreenderão a vinculação entre:

I - Os documentos fiscais eletrônicos relativos a operações com bens ou com serviços; e

II - A transação de pagamento das respectivas operações.

Os atos conjuntos do Comitê Gestor do IBS e da RFB disciplinarão o recolhimento financeiro, inclusive no que se refere às atribuições dos prestadores de serviços de pagamento eletrônico e das instituições operadoras de sistemas de pagamento, considerando as características de cada arranjo de pagamento e das operações com bens e serviços.

Todos os prestadores de serviços de pagamento eletrônico, participantes de arranjos de pagamento abertos e fechados, públicos e privados - inclusive os participantes e arranjos que não estão sujeitos à regulação do Banco Central do Brasil - devem usar o mecanismo de recolhimento financeiro com divisão de pagamento. Nesses sistemas, inclusive pode haver simulações de impacto financeiro e lançamentos simplificados, pré lançamentos como já ocorrem com o IRPF.

Para alguns, a função dos profissionais de contabilidade e dos auditores fiscais se tornará mais reduzida, podendo também haver a retração substancial de sonegação e judicialização. Mas isso só com o tempo saberemos.

Além do split normal, haverá o split simplificado por setor ou segmento produtivo, o que facilitará o recolhimento do tributo.

No procedimento padrão do split payment, o fornecedor é obrigado a incluir no documento fiscal eletrônico informações que permitam:

I - A vinculação das operações com a transação de pagamento; e

II - A identificação dos valores dos débitos do IBS e da CBS incidentes sobre as operações.

O próprio sistema se incumbirá de dividir e enviar para o credor do tributo. Entre os benefícios para quem atua junto ao poder público está o ingresso contínuo de recursos nos cofres dos entes federativos.

O sujeito passivo do IBS e da CBS, ao realizar operações com bens ou com serviços, inclusive exportações e importações, deverá emitir documento fiscal eletrônico. As informações prestadas pelo sujeito passivo possuem caráter declaratório e constituem confissão do valor devido de IBS e de CBS consignados no documento fiscal.

A obrigação de emissão de documentos fiscais eletrônicos aplica-se inclusive às operações imunes, isentas ou contempladas com alíquota zero ou suspensão. As transferências de bens entre estabelecimentos pertencentes ao mesmo contribuinte também deverão ser declaradas.

O Comitê Gestor do IBS e as administrações tributárias responsáveis pela autorização ou recepção de documentos fiscais eletrônicos observarão a forma, o conteúdo e os prazos previstos em ato conjunto do Comitê Gestor do IBS e da RFB.

A União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios estão obrigados a adaptar os sistemas autorizadores e aplicativos de emissão simplificada de documentos fiscais eletrônicos vigentes para utilização de leiaute padronizado, que permita aos contribuintes informar os dados relativos ao IBS e à CBS, necessários à apuração desses tributos. Ao compartilhar os documentos fiscais eletrônicos, após recepção, validação e autorização, com o ambiente nacional de uso comum do Comitê Gestor do IBS e das administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, todos poderão utilizar as informações para proceder às fiscalizações. Não se deve deixar de considerar também a responsabilidade pelo uso da informação de acordo com a LGPD.

6. Uso de informações pelas autoridades fiscais

A decisão do STF que trata do compartilhamento de informações bancárias e fiscais sem necessidade de autorização judicial é o julgamento do RE 1055941, com repercussão geral reconhecida (Tema 990). A tese fixada autoriza a Receita Federal e as administrações tributárias estaduais, distrital e municipais a obterem diretamente, junto às instituições financeiras, dados bancários dos contribuintes sem prévia autorização judicial, desde que respeitados os princípios constitucionais, a legislação complementar e a LGPD.

A tese foi firmada na apreciação do Tema 990 da repercussão geral: "É constitucional o compartilhamento dos dados bancários dos contribuintes, requisitados diretamente às instituições financeiras pela Receita Federal do Brasil, para fins de instrução de procedimento administrativo fiscal, nos termos da LC 105/2001, com a redação dada pela LC 104/2001."

A fundamento legal principal: art. 6º da LC 105/2001, que autoriza autoridades fiscais a requisitarem diretamente às instituições financeiras informações sobre movimentações bancárias.

7. Período de transição

Os municípios e o Distrito Federal ficam obrigados, a partir de 1/1/26, a:

I - Autorizar seus contribuintes a emitir a NFS-e Nota Fiscal de Serviços Eletrônica de padrão nacional no ambiente nacional ou, na hipótese de possuir emissor próprio, compartilhar os documentos fiscais eletrônicos gerados, conforme leiaute padronizado, para o ambiente de dados nacional da NFS-e; e

II - Compartilhar o conteúdo de outras modalidades de declaração eletrônica, conforme leiaute padronizado definido no regulamento, para o ambiente de dados nacional da NFS-e.

Os dados do ambiente centralizador nacional da NFS-e deverão ser imediatamente compartilhados. O padrão e o leiaute são aqueles definidos em convênio firmado entre a administração tributária da União, do Distrito Federal e dos Municípios que tiver instituído a NFS-e, desenvolvidos e geridos pelo CGNFS-e - Comitê Gestor da Nota Fiscal de Serviços Eletrônica de padrão nacional.

O ambiente de dados nacional da NFS-e é o repositório que assegura a integridade e a disponibilidade das informações constantes dos documentos fiscais compartilhados.

Porém, o Comitê Gestor do IBS e a RFB poderão definir soluções alternativas à plataforma NFS-e, respeitada a adoção do leiaute do padrão nacional da NFS-e para fins de compartilhamento em ambiente nacional.

8. Cidadania fiscal

O Comitê Gestor do IBS e a RFB poderão instituir programas de incentivo à cidadania fiscal por meio de estímulo à exigência, pelos consumidores, da emissão de documentos fiscais. Os programas poderão ser financiados pelo montante equivalente a até 0,05% da arrecadação do IBS e da CBS.

Conclusões

____________

BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional n.º 132, de 20 de dezembro de 2023. Altera o Sistema Tributário Nacional e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 dez. 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: 9 jul. 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.º 1.055.941/ SP. Relator: Min. Dias Toffoli. Julgado em: 24 nov. 2020. Disponível em: https://www.stf.jus.br. Acesso em: 9 jul. 2025.

BRASIL. Lei Complementar n.º 123, de 14 de dezembro de 2006. Institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 dez. 2006. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: 9 jul. 2025.

BRASIL. Lei Complementar n.º 192, de 7 de março de 2024. Dispõe sobre normas gerais relativas ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 mar. 2024. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: 9 jul. 2025.

BRASIL. Lei Complementar n.º 214, de 20 de maio de 2025. Dispõe sobre a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e regulamenta dispositivos da Emenda Constitucional n.º 132/2023. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 maio 2025. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: 9 jul. 2025.

Rosa Freitas
Doutora em Direito pelo PPGD/UFPE, advogada, professora universitária, Servidora pública, , palestrante e autora do livros "A nova Dogmática da tributação.dos Serviços no Brasil" e outros.

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