Engana-se quem pensa que o Direito e a literatura são áreas do conhecimento distantes entre si. Ao abordar aspectos da vida social, do comportamento humano e das relações interpessoais, compartilham do mesmo objeto, e, nesta medida, permitem a leitura e a compreensão cultural de uma sociedade. Não raro, é possível identificar institutos jurídicos nas obras literárias, como será demonstrado no conto “O Homem que Sabia Javanês”, escrita por Lima Barreto, e publicada em 1911.
A obra é desenvolvida a partir de um diálogo em que Castelo, narrador personagem, conta ao seu amigo Castro como foi nomeado cônsul. Quando chegou ao Rio, levava uma vida miserável, sem dinheiro, emprego ou perspectiva. Certo dia, leu no jornal o anúncio de uma vaga para ser professor de língua javanesa. Decidiu, naquele momento, que ia se candidatar, mesmo sem saber uma só palavra do idioma desconhecido.
Antes de encontrar o possível empregador, foi à Biblioteca Nacional, em busca de informações mínimas sobre o tema. Aprendeu características gerais sobre a origem do javanês, os nomes de alguns de seus autores, seu alfabeto e três regras de gramática. Depois disso, apresentou-se ao Barão de Jacuecanga, que desejava aprender o idioma para ler um livro que seu avô recebera de presente, quando em vida.
Mesmo sem saber javanês, Castelo foi contratado, pois aparentava dominar a língua estrangeira. Começou por ensinar o alfabeto, mas, ao final de dois meses, o Barão desistiu de aprender a linguagem e contentou-se com a tradução do livro. A incumbência tornou-se ainda mais fácil, já que o professor gozava de total liberdade criativa para inventar traduções. Entusiasmado com as aulas, o Barão enviou uma carta ao Visconde de Caruru, a fim de inserir Castelo na diplomacia, diante de seu notório saber no distinto idioma. Foi assim que começou a trabalhar no Ministério, no qual nenhum funcionário desconfiou da limitação de sua sabedoria. Inclusive, Castelo foi enviado à Europa, para representar o Brasil no Congresso de Linguística. Posteriormente, foi nomeado cônsul, em Havana.
A narrativa de Lima Barreto, embora carregada de ironia, lança luz sobre figuras jurídicas clássicas no Direito Administrativo brasileiro. A trajetória do protagonista, que ascende a cargos públicos relevantes sem possuir a qualificação necessária, nos permite refletir sobre os institutos do funcionário de fato, do agente putativo e a consequente validade dos atos administrativos, além da responsabilidade civil do Estado.
No caso de Castelo, observa-se a atuação de alguém que exerce função pública sem preencher os requisitos legais para tanto. A despeito de não saber javanês, ele é contratado como professor, recebe carta de recomendação por seus “serviços” e, mais adiante, passa a exercer atribuições diplomáticas. Ainda que a origem seja irregular, exerce as atribuições de maneira pública, contínua e com aparência de legitimidade. Nesse contexto, a doutrina e a jurisprudência pátrias reconhecem a figura do funcionário de fato: aquele que, embora sem investidura válida, pratica atos administrativos amparado pela presunção de legalidade que o cargo inspira.
A doutrina majoritária reconhece que os atos praticados por funcionários de fato, como Castelo, devem ser preservados, sobretudo quando destinados a terceiros de boa-fé. O fundamento está na proteção à confiança legítima e na continuidade dos serviços públicos.
No conto, Castelo não apenas omite sua inaptidão, mas forja uma competência inexistente. Ainda assim, do ponto de vista de terceiros que com ele interagem, como é o caso de outros funcionários do Ministério, sua condição é tida como regular. Esse é o cenário típico do agente putativo, figura cuja atuação é aceita pelo ordenamento em razão da aparência de legalidade, desde que presente a boa-fé dos administrados.
A validade dos atos administrativos praticados por tais agentes, portanto, não decorre da licitude da investidura, mas da necessidade de resguardar o interesse público. Assim, se Castelo, no exercício da função consular, tiver assinado documentos oficiais, tais atos podem ser considerados válidos, desde que praticados no exercício aparente do cargo e inexistente má-fé dos terceiros envolvidos.
No âmbito da responsabilidade civil do Estado, a Administração responde objetivamente pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, o que inclui atos de funcionários de fato ou agentes putativos. Se, por exemplo, algum cidadão fosse prejudicado por ato administrativo praticado por Castelo, tal como a expedição de documento falso, o Estado brasileiro poderia ser condenado em eventual ação de responsabilidade civil.
Ao retratar a trajetória cômica e crítica de um impostor que se torna cônsul, Lima Barreto fornece uma moldura literária precisa para a análise de figuras típicas do Direito Administrativo. A constatação de que o ordenamento jurídico vigente contempla institutos capazes de enfrentar a situação ilustrada, embora o conto tenha sido escrito no século XX, é indício de que há algo imutável no comportamento humano.
Não basta saber javanês - é preciso compreender o seu fundador. Nisto, o Direito possui papel fundamental, na medida em que traduz em lei os valores mais importantes de uma sociedade.