1) A moderna teoria da democracia e do Estado Democrático de Direito:
1.1) Histórico:
Lembramo-nos, agora, das memoráveis aulas de Direito Constitucional ministradas pelo nosso saudoso professor e juiz de Direito, Dr. Carlos Alberto Bastos de Matos, ao tempo de nossa graduação junto à Faculdade de Direito de Franca (a sexagenária FDF):
Ele sempre fazia menção de que a primeira ideia de democracia (em grego: Dhmokratia [Demokratia] = governo do povo) ocorreu na Praça de Ágora (em grego, Agora [Agorá], que quer dizer praça pública, assembleia ou reunião), na Antiga Grécia. Ali se reuniam todos os cidadãos de Atenas, para opinar e decidir sobre os assuntos daquela Cidade-Estado; todos os cidadãos atenienses tinham igual direito de voz e de voto. Porém, há que se salientar, aqui, que só os cidadãos (do sexo masculino, maiores e livres) podiam opinar e votar; estavam excluídos dessa assembleia os menores, as mulheres, os estrangeiros e os escravos.
1.2) Evolução das ideias da democracia:
Conforme a preleção de Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino1: “Na teoria contemporânea da Democracia confluem três grandes tradições do pensamento político: a) a teoria clássica, divulgada como teoria aristotélica, das três formas de governo, segundo a qual a Democracia, como governo do povo, de todos os cidadãos, ou seja, de todos aqueles que gozam dos direitos de cidadãos, se distingue da Monarquia, como governo de um só, e da Aristocracia, como governo de poucos; b) a teoria medieval, de origem romana, apoiada na soberania popular, na base da qual há a contraposição de uma concepção ascendente a uma concepção descendente da soberania conforme o poder supremo deriva do povo e se torna representativo ou deriva do príncipe e se transmite por delegação do superior para o inferior; c) a teoria moderna, conhecida como teoria de Maquiavel, nascida com o Estado moderno na forma das grandes monarquias, segundo a qual as formas históricas de governo são essencialmente duas: a monarquia e a república, e a antiga Democracia nada mais é que uma forma de república (a outra é a aristocracia), onde se origina o intercâmbio característico do período pré-revolucionário entre ideais democráticos e ideais republicanos e o governo genuinamente popular é chamado, em vez de Democracia, de república.
“O problema da Democracia, das suas características, de sua importância ou desimportância é, como se vê, antigo. Tão antigo quanto a reflexão sobre as coisas da política, tendo sido reproposto e reformulado em todas as épocas. De tal maneira isto é verdade, que um exame do debate contemporâneo em torno do conceito e do valor da Democracia não pode prescindir de uma referência, ainda que rápida, à tradição”.
A moderna teoria da democracia deve muito ao Contratualismo de Hobbes, embora fosse ele um defensor do despotismo: a) Hobbes parte de uma visão pessimista do ser humano: “O homem é lobo do homem” (em latim, “Homo homini lupus”); isto é: o homem é mau por natureza e, podendo, ataca, fere e mata o seu semelhante, para atender aos seus instintos e anseios egoístas; portanto, inicialmente, na noite dos tempos, ocorria aquilo que Hobbes denominou de estado de natureza, em que reinava o caos e ocorria “a guerra de todos contra todos”; b) Não por bondade, mas por uma necessidade de se protegerem dos perigos, intempéries e outros fatores adversos, que o estado de natureza lhes coloca à frente, os homens decidem celebrar um contrato social: não por confiarem uns nos outros, mas, ao contrário, por desconfiarem do que os outros possam fazer contra si, os indivíduos resolvem efetuar um pacto, na condição de pessoas detentoras de toda a sua liberdade, até aquele ponto; depois de celebrarem o contrato social, criam então o Estado - um poder que está acima de todos os indivíduos -, outorgando a ele toda a soberania e submetendo-se inteiramente ao comando desse ente estatal (que pode ser personificado por um soberano ou por uma assembleia ou por ambos conjuntamente); em outras palavras: os cidadãos abrem mão de uma parcela de sua liberdade, outorgando-a ao Estado; c) A esse Estado, Hobbes dá o nome de Leviatã, o monstro bíblico retratado no Capítulo 41 do Livro de Jó; o Leviatã seria um homem enorme, resultante da aglutinação de todos os homens, que devia regular as relações entre os indivíduos e proporcionar uma convivência pacífica entre eles, sendo tal convívio impossível de ser atingido no estado de natureza; esse Estado seria o “deus mortal” (o deus criado pelos seres humanos, para garantir sua sobrevivência em sociedade); daí a famosa frase de Hobbes, em contraposição à de Agostinho: Agostinho disse que “extra Ecclesiam, nulla salus” (fora da Igreja não há salvação), ao que Hobbes replicou que “extra Rem Publicam, nulla salus”, ou seja: fora da república, fora do estado, não há salvação.
A esta expressão de Hobbes, gostaríamos de adicionar o seguinte aforismo: “extra Democratiam, nulla salus” (conforme a entendemos nos dias atuais), pois o Estado Democrático de Direito se valeu da doutrina hobbesiana no ponto em que esta busca evitar a autotutela dos indivíduos, salvo naquelas hipóteses em que o Estado não esteja presente, em dado lugar e momento, para dizer de quem é o direito (exemplo: a legítima defesa, o estado de necessidade etc.).
Também, a moderna democracia deve muito ao Jusnaturalismo pregado por Hugo Grócio: a) ele é considerado o pai da Escola do direito natural (“jus naturae”) e do direito das gentes (“jus gentium”), sendo seguido neste pensamento por diversos juristas, como Pufendorf2, Vattel3, etc; o direito natural é aquele baseado na natureza das coisas, principalmente na natureza do homem, ou seja, no princípio racional de sociabilidade que é inerente ao homem; tal direito é universal e imutável, não dependendo da chancela do legislador positivo; o direito natural obriga, segundo Grócio, não somente cada ser humano (que é dotado de razão), mas também os estados, na guerra e na paz; este último (a ser seguido por todos os estados) é o chamado “jus gentium”, ou seja, o direito internacional; b) O contrato social, segundo este filósofo, nasce da vontade racional dos homens, em virtude de seu sentimento de sociabilidade e solidariedade, fatores que favorecem o respeito aos direitos individuais, especialmente ao de propriedade; através de tal ideia contratualista, ele almeja um estado forte, que possa fazer prosperar o comércio e reinar a paz; c) Hugo é, certamente, o pai do Direito Internacional Público, pois, com o seu “jus gentium”, ele procurou regular as relações entre os estados jovens da Europa, no tempo da Renascença; enquanto Maquiavel pretendia reger essas relações pela força e Guichardin pelo equilíbrio, Grócio procurou regulá-las com base no Direito.
A moderna teoria da democracia, por fim, deve muito a Montesquieu: este filósofo analisa a liberdade dos cidadãos em cada uma das três tipologias de governo de sua época (o republicano, o monárquico e o despótico); a liberdade, aqui, é vista não sob o prisma de uma independência pessoal nem da liberdade pura dos metafísicos, porém apenas como liberdade política; esta só pode ser encontrada nos regimes moderados; ao contrário do que se poderia crer, a liberdade não é um monopólio da democracia, pois o poder do povo não é a liberdade do povo; de fato, o homem é livre, não quando tem o direito de fazer tudo o que quer, mas quando tem o direito de fazer tudo o que as leis permitem e o que elas não proíbem4; isto quer dizer que o cidadão só é livre sob a proteção da lei, desde que esta atenda à exigência da moderação política; ora, esta condição essencial, que significa que o problema da liberdade se confunde com o da limitação do poder estatal, Montesquieu entendia que este binômio se encontrava bem equacionado no regime inglês de sua época: a Constituição da Inglaterra era um estatuto jurídico do rei e da liberdade dos cidadãos.
No entanto, quando os três poderes que existem em todo o Estado - o de fazer as leis, o de executar as leis e o de julgar os crimes e as pendência dos particulares - se confundem, o despotismo de um deles suprime qualquer liberdade, venha tal despotismo de um homem, de um corpo de legisladores ou do povo. Logo, a condição “sine qua non” da liberdade dos cidadãos é a não-confusão desses poderes; esta não-confusão não implica na separação absoluta das três funções estatais (pois o poder é uno5); a não-confusão dos três poderes significa a distinção orgânica entre eles, indo “pari passu” com sua independência funcional; trata-se de mostrar como convém realizar concretamente a não-acumulação dos poderes do Estado, a fim de instituir e salvaguardar a liberdade política.
Para solucionar tal problema, Montesquieu propõe como paradigma a Constituição Inglesa, segundo a qual o poder estatal é distribuído entre três órgãos diferentes, distintos e independentes entre si, mas interligados: cada um deles recebe e exerce sua respectiva função com independência, mas os três poderes são forçados a agir de comum acordo, a fim de cooperarem para o bom andamento do Estado. Aqui, não se trata de mera técnica de equilíbrio dos poderes, mas a expressão de uma dinâmica governamental cuja finalidade última é, acima de tudo, opor uma barreira contra qualquer tentativa de despotismo; criando-se um sistema de “checks and balances” (freios e contrapesos - sendo este termo cunhado pelos americanos, mais tarde), evita-se assim o surgimento de tiranos em cada um dos poderes estatais, mas cada qual fiscaliza os outros e se harmoniza com os demais6.
1.3) a moderna teoria da democracia:
Além de todas as atrocidades cometidas pelo despotismo durante o curso da história até o século XX, sobrevieram as tragédias da 2ª Grande Guerra Mundial de 1939 a 1945, com a ascensão do nazismo e a perda de muitas vidas humanas (60 a 70 milhões para ambos os lados, mais o extermínio de 6 milhões de pessoas do povo judeu) e tal conflito armado trouxe o medo do surgimento de uma 3ª Guerra Mundial. Destarte, com o fim da 2ª Grande Guerra, sobreveio a Constituição Federal da Alemanha de 1949, positivando os direitos naturais (fundamentais) do homem, consoante a pregação do “jus naturae” de Hugo Grócio, e passando a navalha de William of Ockham7 em todos os excessos argumentativos da política partidária e dos defensores de regimes autoritários.
Na seqüência, vieram a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotadas pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, nos anos de 1945 e 1948, bem como diversos tratados e pactos de Direito Internacional, subscritos pelos países civilizados perante a ONU. Assim, o conceito de soberania estatal não é mais absoluto, como antes, mas relativo; os direitos fundamentais devem ser entendidos como cláusulas pétreas não somente da constituição de um dado país, mas cláusulas pétreas da própria democracia como um todo (princípios inquebrantáveis, entre eles a proibição de retrocesso) - tal ideário é inerente ao próprio Estado Democrático de Direito e à teoria jurídica, à teoria da norma e à democracia em sua feição atual, de modo que o estabelecimento de limites ao poder estatal em face dos indivíduos e o propósito de se protegerem os direitos dos cidadãos (direitos humanos e fundamentais) hão que ser entendidos de tal maneira, que até em relação ao poder constituinte originário há limites hoje, frente aos acordos internacionais subscritos pelo Brasil e por muitos países, os quais são regidos pela democracia e não por regimes autoritários, e frente aos direitos humanos.
Em suma:
- O sistema de “checks and balances” (freios e contrapesos) continua a existir na moderna teoria da democracia, por óbvio, mas, no dizer de José Afonso da Silva: “cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os órgãos do poder, nem sua independência são absolutas; há interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro, especialmente dos governados8”. Isto, para o resguardo dos valores e princípios democráticos!
- Nesta linha de raciocínio, em 1920, durante as discussões havidas na elaboração da Constituição da Áustria, ocorreu o célebre debate entre Hans Kelsen e Carl Schmitt, sendo certo que o primeiro lutava pela prevalência do Direito sobre a política - ou seja: a última palavra, dentro do Estado de Direito, sobre a lei fundamental, devia ser da Corte Constitucional (com base na teoria pura do Direito, expurgada de qualquer de elemento político); e o segundo defendia a prevalência da política (política partidária) sobre o Direito - isto é: ao ver de Carl Schmitt, a última palavra deveria ser do chefe do Poder Executivo (do “Führer”, portanto). Para o bem da democracia, a posição de Kelsen é a dominante e, com ela, inicia-se o ativismo judicial9. No Brasil, o STF, como guardião da Constituição, está posicionado acima dos Poderes Executivo e Legislativo e, embora pertença ao Poder Judiciário, está acima de todas as instâncias jurisdicionais do Estado, que lhe são inferiores, por ser ele a Corte Suprema do Poder Judiciário. Nesta esteira de pensamento, vejamos as precisas exposições de:
- Tércio Sampaio Ferraz Júnior: no Estado Democrático de Direito, o Judiciário deve estar alinhado com os escopos do próprio Estado, não se podendo mais falar de uma neutralização de sua atividade10; aqui, tem-se em mente o controle jurisdicional e a separação dos poderes (a separação das funções estatais in Montesquieu) e o sistema dos “checks and balances” como uma forma de flexibilização da separação dos poderes estatais; nesta linha de raciocínio, surgiu o ativismo judicial; vide o Tema 698 do STF;
- E do ministro Barroso: “Nesse novo modelo, vigora a centralidade da Constituição e a supremacia judicial, como tal entendida a primazia de um tribunal constitucional11 ou suprema corte na interpretação final e vinculante das normas constitucionais”, uma vez que: “a jurisdição constitucional compreende o poder exercido por juízes e tribunais na aplicação direta da Constituição12, no desempenho do controle de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público em geral e na interpretação do ordenamento infraconstitucional conforme a Constituição”, concluindo, com isto que: “a idéia do ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes; em muitas situações, nem sequer há confronto, mas mera ocupação de espaços vazios”.13
1.4) O Estado Democrático de Direito:
Como uma conseqüência do ideário acima exposto, os indivíduos habitantes de países civilizados e democráticos não estão mais sujeitos ao “L’Etat c’est moi” (o Estado sou eu) do déspota francês Luís XIV (1638 a 1715)! Encontramo-nos, hoje, no “Rechtstaat” dos alemães, conforme anotam os professores J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira14: “O Estado é um Estado de direito democrático. Este conceito - que é seguramente um dos ‘conceitos-chave’ da CRP - é bastante complexo, e as suas duas componentes - ou seja, a componente do Estado de direito e a componente Estado democrático - não podem ser separadas uma da outra. O Estado de direito é democrático e só sendo-o é que é Estado de direito; o Estado democrático é Estado de direito e só sendo-o é que é democrático. Há uma democracia de Estado-de-direito, há um Estado-de-direito de democracia. Esta ligação material das duas componentes não impede a consideração específica de cada uma delas, mas o sentido de uma não pode deixar de ficar condicionado e de ser qualificado em função do sentido da outra. Aliás, ao fundir num único conceito essas duas componentes, a CRP arredou, ao mesmo tempo, toda e qualquer concepção que permitisse um entendimento do Estado de direito como obstáculo ao desenvolvimento democrático ou uma consideração do Estado democrático que fosse alheio a um corpo de regras sobre a formação e exercício do poder e sobre a posição subjectiva dos cidadãos perante os poderes públicos”. E o mesmo se diga da CF/88, frente ao art. 1º “caput”, incisos e parágrafo único. Destarte, Estado de Direito é aquele que se submete ao império da Constituição e das leis; Estado Democrático é aquele em que a Constituição e as leis são essencialmente democráticas!
Assim, àquela conceituação tradicional de que Estado é a junção de três elementos: povo, território e soberania - conforme lecionava o saudoso professor Dalmo de Abreu Dallari, isto é: pode-se conceituar “o Estado como a ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território15” -, há que se acrescer as seguintes observações: hoje, o bem comum do povo só é alcançado em um ambiente democrático, ou seja, com o estabelecimento de limites ao Poder Estatal em face dos indivíduos e com a intransigente proteção dos direitos fundamentais de todos; a soberania, nos dias atuais, não é absoluta, frente aos tratados internacionais e à extensão dos direitos humanos a todos, pois nenhum ser humano pode ser excluído da proteção de seus direitos fundamentais (como dizem os penalistas: nenhuma liberdade, que não seja nociva aos demais indivíduos e à coletividade, pode ser retirada do indivíduo, proibida ou punida pelo Estado); o território deve ser aquele historicamente atribuído a uma nação e reconhecido pelos tratados e pactos internacionais, pois, neste estágio de civilização e democracia em que nos encontramos, não é mais possível a guerra de conquista, mas só a guerra em legítima defesa, como “ultima ratio”! Destarte, o Estado Democrático de Direito, de nossos dias, respeita o “jus naturae”, ou seja, os direitos naturais, hoje positivados nas Constituições dos países civilizados, e o “jus gentium” no âmbito interno do Estado (o resguardo dos direitos fundamentais) e no âmbito externo (o respeito aos tratados e pactos internacionais), conforme sonhava Hugo Grócio em sua época!
De modo que a democracia e o Estado Democrático de Direito, hodiernamente, embora sejam criações dos homens, adquiriram vida própria, como entidades que, com razão, postulam o seu salutar desenvolvimento e sua perpetuação no tempo, enquanto existir o mundo!
E se a democracia e o Estado Democrático de Direito, nos dias atuais, adquiriram vida própria, como entidades que postulam o seu salutar desenvolvimento e sua perpetuação no tempo, não há como se pensar que a moderna democracia e o Estado Democrático de Direito sejam autofágicos, concedendo “perdão” a quem os quis derrubar ou aniquilar!
Observemos que os crimes previstos nos arts. 359-L do CP (abolição violenta do Estado Democrático de Direito) e 354-M do mesmo Estatuto Penal (golpe de Estado) vão contra a própria essência da Democracia e do Estado Democrático de Direito!
Nem se diga que os delitos acima apontados não estão no rol dos crimes do art. 5º, inciso XLIII, da CF/88, ou seja: aqueles que são insuscetíveis de graça ou anistia e inafiançáveis (a tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes, o terrorismo e os crimes hediondos), pois a mesma Carta Magna considera “crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares (ou sua tentativa), contra a ordem constitucional e o Estado Democrático” (inciso XLIV, logo a seguir ao inciso acima mencionado)! Ora, para que tornar imprescritível um crime ao qual se possa dar, depois, anistia (pelo Poder Legislativo) ou graça e indulto (pelo chefe do Poder Executivo)?! Isto seria um paradoxo, pois, como já se disse, os crimes contra as instituições democráticas (Parte Especial, Título XII, Capítulo II, do CP) vão contra a própria essência, o próprio cerne da democracia e do Estado Democrático de Direito!
2) Dos aspectos penais:
2.1) Anistia, graça e indulto:
A anistia, a graça e o indulto estão previstos no art. 107, inciso II, do CP, como causas de extinção da punibilidade. Mas vejamos a diferenciações de tais institutos penais:
- A anistia é concedida por lei e definida como o esquecimento jurídico da infração penal.16
- A graça e o indulto são formas de extinção de penas ou de parte delas, concedidas pelo chefe do Poder Executivo, através de decreto, sendo certo que a graça é individual (dirigida a um específico condenado) e o indulto é coletivo (direcionado a um grupo de condenados).
Assim, há que se pensar, aqui: como no atual ambiente democrático e civilizatório de nossa sociedade, poderíamos cogitar de esquecer juridicamente crimes que a própria Constituição da República tornou, desde a sua promulgação, imprescritíveis?!
2.2) Os tipos penais e a natureza dos crimes aqui tratados:
Vejamos letra do Estatuto Penal:
“Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:
Pena - reclusão de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência”.
E:
“Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência”.
Primeiramente, há que se observar, aqui, que ambos os delitos acima reproduzidos são crimes de atentado ou de empreendimento, isto é: são delitos a que a lei comina a mesma pena tanto para a hipótese de crime consumado, quanto para a de delito tentado (vide o verbo “tentar” no início de ambos os tipos penais), não se aplicando a eles os institutos da desistência voluntária ou do arrependimento eficaz, segundo Johannes Wessels17. Pois bem: tanto faz que a infração penal se consume ou fique apenas na tentativa, a pena é a mesma.
Em segundo lugar, havemos, neste ponto, que recordar quais as fases do “inter criminis” (o percurso do crime): 1ª) a cogitação; 2ª) os atos preparatórios; 3ª) os atos executórios; e 4ª) a consumação. Apenas para exemplificar: o indivíduo A pensa em matar seu desafeto B (trata-se da cogitação); o indivíduo A vai até a loja de armas e, ali, compra um revólver e as respectivas munições; em seguida, vai para a sua casa e municia o revólver (estes são atos preparatórios); o desafeto B vai até a residência de A, bate à porta da moradia e é atendido por A: hipótese 1 = A atira em direção a B, acertando-o ou não; hipótese 2 = A aponta a arma em direção a B; hipótese 3 = A apenas mostra seu revólver, que está em sua cintura, a B e diz-lhe, ato contínuo: “Eu vou matá-lo com esta arma”; nestas três hipóteses cuidam-se de atos executórios (desde que, na hipótese 1, o projétil não mate B, que fica apenas ferido)!
Completando o raciocínio: nos atos antidemocráticos do dia 8/1/23, houve emprego de violência e selvageria contra os prédios e outros objetos nas sedes dos três Poderes - aqui, houve tentativa do delito previsto no art. 359-L do CP, pois o tipo penal não exige violência contra a pessoa, podendo ser contra bens públicos ou até particulares, conforme se der o fato; já na seqüência de atos antidemocráticos anteriores e posteriores às eleições de 2022, ocorreram atos preparatórios demonstrando o intuito de “coup d’etat” (por exemplo: o gabinete do ódio e o punhal verde-amarelo), bem como atos executórios do crime previsto no art. 359-M do Estatuto Penal, que são suficientes para a caracterização da tentativa (“exempli gratia”: a minuta do golpe e as ameaças de morte feitas aos excelentíssimos presidente eleito e seu vice-presidente, como também ao excelentíssimo senhor doutor Alexandre de Moraes, ministro do excelso pretório). Destarte, perfeita a tipificação feita pela Procuradoria-Geral da República em suas denúncias de tais infrações penais!
3) Conclusão:
Está na hora de gritarmos: Viva a democracia! Abaixo o golpismo e o autoritarismo!
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1 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. tradução de Carmen C. Varriale et alii. 10ª ed. Brasília: Editora UNB, 1997, v. I, p. 319-320.
2 PUFENDORF, Samuel. Os Deveres do Homem e do Cidadão. 1ª ed., Rio de Janeiro/RJ: Liberty Fund e Topbooks (para a língua portuguesa), 2007.
3 VATTEL, Emmerich de. O Direito das Gentes (Le Droit des Gens). 1ª ed., Ijuí/RJ: Editora Unijuí, 2007.
4 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. Do Espírito das Leis. Tradução de Edson Bini. 1ª ed., Bauru-SP: Edipro, 2004, p. 188.
5 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat., Cit. obra, p. 190.
6 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. Cit. obra, p. 189-197.
7 STÖRIG, Hans Joachim. Kleine Weltgeschichte der Philosophie (id est: Pequena História Mundial da Filosofia). 18ª ed. Stuttgart/Alemanha: W. Kohlhammer GmbH, 2016, p. 308.
8 DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 7ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 44, com grifos nossos.
9 HERANI, Renato Gugliano, e THAMAY, Rennan Faria Krüger. Jurisdição Constitucional Concentrada. 1ª ed., Curitiba: Juruá Editora, 2016, p. 20-26 e 67-78.
10 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio in Revista USP nº 21, março/abril/maio de 1994, p. 14.
11 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo. 7ª ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 442.
12 BARROSO, Luís Roberto. Cit obra, p. 442-443
13 BARROSO, Luís Roberto. Cit. obra, p. 448.
14 CANOTILHO, J.J. Gomes et alius. Constituição da República Portuguesa Anotada. 4ª ed., revista e atualizada, São Paulo: Coimbra Editora e Revista dos Tribunais, 2007, v. 1, p. 204.
15 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 12ª ed., São Paulo: Saraiva, 1986, p. 100-101.
16 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 24ª ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2018, v. 1, p. 954.
17 WESSELS, Johannes. Direito Penal; Parte Geral. Trad. de Juarez Tavares. Porto Alegre: Fabris, 1976, p. 10.