Um texto preliminar da reforma administrativa deverá ser apresentado nos próximos dias pelo Grupo de Trabalho da Câmara dos Deputados. Em que pese ainda não se ter o documento, como concordaria Norman Fairclough, um dos principais expoentes da Análise Crítica do Discurso, a reflexão sobre os discursos dos parlamentares integrantes do GT pode embasar uma discussão sobre a constitucionalidade das alterações pretendidas, pois a linguagem é um grande indicativo do que poderá se tornar a prática social.
Das entrevistas concedidas e nas falas registradas nas audiências públicas sobre o tema, percebe-se um discurso paradoxal desses parlamentares, pois, de um lado, buscam tranquilizar os servidores de que a estabilidade a eles assegurada não será afetada, do outro, defendem a ampliação do uso de contratos temporários e a centralidade da avaliação de desempenho.
Ao fazerem questão de ressaltar em suas falas que não seriam reavivadas pelo GT as inovações veiculadas pela PEC 32/20, que buscavam confrontar abertamente o instituto da estabilidade, ao passo em que se posicionam pela massificação dos temporários e por acelerar a regulamentação a avaliação de desempenho, é possível visualizar, desde logo, que as propostas a serem apresentadas acarretarão o mesmo processo de erosão constitucional da proposta de reforma administrativa de 2020, mas com uma dinâmica diferente: a prática do constitucionalismo abusivo.
Assim, busca-se aqui relacionar a teoria do constitucionalismo abusivo com os riscos que a reforma administrativa em elaboração representa à estabilidade dos servidores públicos e, por consequência, à própria configuração constitucional da Administração Pública.
A teoria do constitucionalismo abusivo, formulada por David Landau, descreve a prática crescente de erosão do regime democrático por meio do uso instrumental de mecanismos formais de mudança constitucional. Em vez de rupturas abertas e inconstitucionais, recorre-se a reformas com aparência de legalidade para corroer pilares estruturais do sistema constitucional, enfraquecendo a democracia por dentro. Nesse contexto, o presente artigo aplica tal teoria à análise da proposta de reforma administrativa, cuja formulação está sendo conduzida com sinalizações claras de esvaziamento progressivo da estabilidade dos servidores públicos efetivos.
A estabilidade no serviço público, embora não configurada expressamente como cláusula pétrea nos termos do art. 60, § 4º, da Constituição Federal, integra o núcleo essencial do regime jurídico-administrativo voltado à impessoalidade, continuidade e profissionalização da função pública. Trata-se, portanto, de instituto que transcende a esfera individual de direitos dos servidores, cumprindo papel estruturante para a conformação republicana da Administração Pública e para a salvaguarda do interesse público frente ao patrimonialismo, à captura institucional e ao uso político da máquina estatal.
Todavia, conforme já indicado nas exposições feitas por integrantes do referido grupo de trabalho, o centro gravitacional do novo modelo será deslocado da estrutura de cargos efetivos para os vínculos precários, em especial os contratos temporários, paralelamente à regulamentação de mecanismos de avaliação de desempenho com enfoque punitivo. O objetivo implícito (e abusivo) é instrumentalizar esses institutos para enfraquecer a estabilidade e, por via reflexa, desidratar o regime jurídico de direito público que ancora a atuação administrativa. Ainda que a estabilidade não venha a ser formalmente revogada, o seu esvaziamento por via indireta representa uma reconfiguração substancial da arquitetura constitucional da Administração Pública, passível de controle de constitucionalidade material por violar cláusulas que representam o verdadeiro núcleo central do Estado Democrático de Direito.
O artigo demonstrará, adotando-se a tese do constitucionalismo abusivo, que reformas que utilizam de modo desvirtuado instrumentos constitucionais (como os contratos temporários e a avaliação de desempenho) para esvaziar institutos centrais da ordem constitucional (como a estabilidade) ainda que observem a forma do processo legislativo e aparentem estar em consonância material com o texto fundamental, configuram alteração verdadeiramente anticonstitucional.
Indícios do constitucionalismo abusivo
A noção de constitucionalismo abusivo, capitaneada por David Landau desde o seu artigo “Abusive Constitutionalism”, é útil para descrever o uso estratégico de instrumentos formais de mudança constitucional com o propósito de corroer os fundamentos do regime democrático, sem a aparência de ruptura institucional aberta. Trata-se de um fenômeno em que reformas formalmente válidas produzem, em seu conteúdo e efeitos, retrocessos estruturais no arranjo constitucional, muitas vezes sob o disfarce da legalidade procedimental, dada a presunção de legitimidade da atividade do constituinte derivado.
Ao contrário de golpes tradicionais ou de formas explícitas de autoritarismo, o constitucionalismo abusivo opera por meio da manipulação de mecanismos legítimos, tornando-os veículos para desarticular garantias institucionais e redistribuir o poder de modo a enfraquecer os mecanismos de controle, a pluralidade e a proteção de direitos. O que caracteriza a prática não é a ilegalidade formal, mas a corrosão substancial da democracia e de suas estruturas de proteção. Em outras palavras, é a subversão do espírito da Constituição por meio do uso ostensivamente fiel à sua letra.
Segundo Landau, o foco da teoria é o desvirtuamento de instrumentos constitucionais para enfraquecer o regime democrático, especialmente por meio da concentração de poder, da eliminação de mecanismos de responsabilização (horizontal e vertical), da limitação de direitos fundamentais e da manipulação das regras do jogo político para favorecer o grupo incumbente. Ainda que mantida a aparência democrática, porquanto respeitadas as regras procedimentais, tais reformas produzem, em seu conjunto, uma degradação do constitucionalismo democrático e um deslocamento autoritário da Constituição.
Essa teoria encontra ressonância nas reflexões de Mark Tushnet e Rosalind Dixon sobre os limites materiais das reformas constitucionais, especialmente diante da atuação de maiorias constituintes que, embora formalmente legítimas, promovem erosões incompatíveis com a preservação do Estado de Direito. Portanto, disso é possível extrair uma ideia “cláusulas pétreas implícitas” ou de “princípios estruturantes” do constitucionalismo, para admitir nem todos os limites materiais à reforma constitucional estão expressamente enumerados no art. 60, § 4º, da Constituição Federal, podendo decorrer da própria estrutura lógica do sistema constitucional.
É nesse ponto que se insere o núcleo da presente análise: a estabilidade no serviço público, enquanto instrumento de proteção institucional da Administração Pública, deve ser compreendida como uma dessas cláusulas materiais de proteção reforçada, pois devem ser traduzidas como núcleo central da Constituição de 1988. Trata-se de mecanismo que confere densidade ao princípio da impessoalidade, assegura a continuidade administrativa, impede o uso clientelista do Estado e resguarda o interesse público contra pressões políticas ou econômicas indevidas.
Embora não esteja formalmente incluída no rol das cláusulas pétreas do art. 60 da Constituição de 1988, a estabilidade integra o núcleo normativo do regime jurídico-administrativo que estrutura a Administração Pública brasileira, e sua supressão material, ainda que mascarada pela regularidade do processo legislativo, configura alteração nuclear da Constituição. Nesse sentido, toda proposta de reforma constitucional que, a pretexto de racionalizar a gestão pública, desloca a centralidade da Administração para vínculos precários ou fragiliza as garantias estruturais dos servidores efetivos deve ser examinada à luz do paradigma do constitucionalismo abusivo.
Esse uso distorcido dos mecanismos constitucionais como as contratações temporárias e a avaliação de desempenho constitui um caso exemplar daquilo que Landau denomina como "erosão democrática com aparência constitucional". Em vez de revogar frontalmente a estabilidade tal como na PEC 32/20, a reforma administrativa que se denota dos discursos parlamentares buscaria desidratá-la por dentro, por meio da proliferação de vínculos precários e da intimidação funcional do servidor estável, configurando um desvio de finalidade institucional e um abuso constitucional da forma.
Rumo aos discursos parlamentares
Os discursos dos integrantes do GT sobre a reforma administrativa são suficientes para perceber uma estratégia legislativa que, embora revestida de formalidade constitucional, conduzirá a um esvaziamento progressivo da estabilidade dos servidores públicos e, por consequência, do regime jurídico-administrativo orientado ao interesse público. Ainda que não se trate de revogação explícita da estabilidade, o que se tem proposto discursivamente importará na erosão desse instituto, deslocando o eixo da organização administrativa para vínculos precários e politicamente moldáveis, em flagrante subversão do modelo constitucional de Administração Pública.
A importância atribuída aos contratos temporários, aliada à anunciada regulamentação da avaliação de desempenho, cuja EC 19/1998 atribuiu nítida finalidade punitiva, sinaliza uma reconfiguração estrutural que altera profundamente o equilíbrio constitucional entre autonomia administrativa, responsabilidade funcional e proteção institucional. Trata-se, na prática, da substituição da presunção de permanência vinculada à legalidade, própria do servidor efetivo, por vínculos jurídicos frágeis, instrumentalizáveis e orientados à lógica da rotatividade.
Esse movimento não apenas fragiliza a Administração Pública como função de Estado, mas opera uma corrosão sistemática de suas garantias estruturais, comprometendo sua capacidade de resistir a interferências indevidas do poder político ou econômico. O regime jurídico-administrativo não é neutro: sua arquitetura visa proteger o interesse público primário por meio de prerrogativas e limitações que conformam a atuação estatal. A estabilidade, nesse contexto, não é um direito ou garantia individual, mas mecanismo de limitação do arbítrio e de preservação da impessoalidade, continuidade e profissionalismo da função pública.
A proposta em gestação, ao privilegiar vínculos excepcionais como regra e deslocar a estabilidade para posição residual, inverte a lógica do sistema. O uso reiterado e generalizado do contrato temporário, originalmente concebido para hipóteses excepcionais de interesse público relevante, como forma ordinária de composição da força de trabalho estatal, caracteriza típico desvio de finalidade constitucional. Trata-se daquilo que Landau descreve como abuso da forma constitucional: a manipulação de institutos válidos, sob justificativas plausíveis, para alcançar resultados que corroem os fundamentos democráticos e institucionais do Estado.
Do mesmo modo, a proposta de regulamentação da avaliação de desempenho, mesmo com as promessas de bonificação constantes dos discursos dos integrantes do GT, não se dissocia do enfoque predominantemente sancionador instituído pela EC 19/1998. Sem a garantia de critérios objetivos, transparência e devido processo, cria-se ambiente de intimidação funcional incompatível com a independência técnica e a autonomia profissional do servidor público. A avaliação, que poderia ser instrumento legítimo de aprimoramento institucional, tem chances fundadas de ser convertida em mecanismo de seleção político-funcional, com grave risco de instrumentalização.
O conjunto das medidas discursadas configura, assim, uma tentativa de reorganização da Administração Pública sob premissas que não apenas ignoram, mas frontalmente contradizem os princípios nucleares do regime constitucional de 1988. Ainda que formalmente lastreada em processo legislativo adequado, inclusive com a capa de legitimidade democrática decorrente da convocação de audiências públicas, se concretizados os discursos parlamentares, a proposta se revestirá de conteúdo material incompatível com os limites implícitos de reforma da Constituição, pois comprometerá a identidade constitucional do regime democrático ao fragilizar deliberadamente um dos principais institutos de contenção do arbítrio governamental.
A estabilidade, nesse contexto, não pode ser tratada como variável de ajuste ou obstáculo à eficiência, mas como salvaguarda institucional de natureza contramajoritária. A sua corrosão representa uma ameaça à impessoalidade, à moralidade administrativa e à profissionalização do serviço público. Ao enfraquecer a função pública de Estado, a proposta de reforma não apenas fragiliza o servidor, mas compromete a própria integridade da Constituição enquanto pacto de limitação do poder.
Dessa forma, a reforma administrativa intencionada pelos integrantes do GT, ainda que não revogue expressamente a estabilidade, revela traços claros de constitucionalismo abusivo, por meio da manipulação de institutos de exceção previstos na Constituição de 1988 (contratos temporários e avaliação de desempenho) para minar garantias institucionais estruturantes, desfigurando o núcleo essencial do regime constitucional da Administração Pública cidadã e republicana de 1988.
De volta à Assembleia Nacional Constituinte
Para manter-se vinculante, a Constituição carece de atualizações face às complexidades e contingências naturais do desenrolar das novidades sociais. Mas é preciso se atentar para os limites dessa atualização, tendo em vista que a Constituição também precisa ser resistente às demandas por modernização que desfigurem o seu núcleo essencial, sob pena de se ter apenas um texto constitucional abusivamente atualizado, e não a prática de um verdadeiro constitucionalismo.
Ou seja, uma Constituição necessariamente contém elementos atemporais, e uma das formas de visualizá-los é estudar as dinâmicas das respectivas assembleias constituintes. No que diz respeito à estabilidade moldada pela Constituição de 1988, os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte denotam que seu desenho normativo foi uma reação ao período anterior: especialmente durante a ditadura, proliferaram contratações sem concurso e regimes celetistas precários, abrindo brechas para nepotismo e apadrinhamentos na máquina pública. No ambiente de redemocratização de 1988, os constituintes buscaram fortalecer o serviço público de carreira, exigindo concurso público para ingresso e garantindo a estabilidade após o estágio probatório, como forma de profissionalizar a administração.
As pressões por modernização e enxugamento da máquina não são novidade, especialmente na década de 80, em que o Brasil amargou profunda crise fiscal. E foi nesse contexto que o Constituinte de 1988 optou pela estabilidade como forma de alavancar Brasil, em contraposição ao roteiro de flexibilização que surge em momentos de necessária reorganização econômica, privilegiando uma visão de Estado forte e impessoal.
Durante os debates da Constituinte, estabilidade foi concebida pelos defensores como um instrumento de proteção do Estado, assegurando que o servidor público sirva ao interesse público e às instituições, e não a governos ou chefes políticos transitórios. Diversos constituintes argumentaram que o servidor público precisa ter garantias para agir com neutralidade, sem medo de perseguições políticas ou demissão por motivos partidários. Dessa forma, a estabilidade funcionaria como condição para a impessoalidade na Administração Pública, um dos princípios consagrados no caput do art. 37 da nova Constituição. Em outras palavras, protegendo o servidor, a estabilidade protege o interesse público, pois evita que os órgãos governamentais se tornem “cabides de emprego” sujeitos ao clientelismo ou que servidores sejam coagidos a agir em benefício de grupos privados.
Apesar de pontuais controvérsias, limitadas à extensão da estabilidade aos servidores preexistentes que não prestaram concurso, os Constituintes convergiram na ideia de que a estabilidade era necessária para resguardar a Administração Pública de ingerências políticas e profissionalizar o Estado brasileiro. Essa convicção refletiu-se no texto final, que foi aprovado sem nenhum voto contrário à estabilidade dos servidores públicos efetivos, consolidando esse instituto como elemento central de proteção institucional na Constituição de 1988.
Percebe-se, portanto, que a estabilidade enquanto ferramenta de gestão pública é um marco atemporal do Estado brasileiro de 1988. A manutenção meramente figurativa do instituto, para dar lugar aos contratos precários e intimidações dos servidores efetivos que restarem, implica em constitucionalismo abusivo por corroer o núcleo central da administração constitucional.
É possível falar em reforma administrativa discursivamente inconstitucional
A adoção do modelo de reforma administrativa discursado pelo GT da Câmara dos Deputados enseja graves riscos institucionais e democráticos que ultrapassam a esfera funcional do servidor público e projetam efeitos sistêmicos sobre a própria configuração do Estado brasileiro. A centralidade atribuída a vínculos precários e a fragilização deliberada da estabilidade comprometem não apenas a eficiência do serviço público, mas a integridade da ordem constitucional que estrutura e limita o exercício do poder estatal.
Do ponto de vista institucional, a substituição progressiva de quadros permanentes por agentes contratados sob regimes temporários e desprovidos de garantias mínimas de permanência compromete a continuidade administrativa, a formação de conhecimento técnico acumulado e a memória institucional dos órgãos públicos. O enfraquecimento da estabilidade compromete a resiliência do aparato estatal frente a oscilações políticas e a interferências indevidas, abrindo caminho para práticas de patrimonialismo, clientelismo e aparelhamento ideológico da máquina pública, justamente os males historicamente combatidos no processo de redemocratização e institucionalização do serviço público.
Além disso, a estruturação de vínculos precários como regra cria um ambiente de insegurança funcional que desencoraja a autonomia técnica e favorece a autocensura dos agentes públicos diante de pressões hierárquicas ou externas. A consequência é a erosão da função pública enquanto locus de neutralidade e profissionalismo, substituída por uma lógica de obediência circunstancial e de subordinação política, incompatível com os princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade que regem a Administração Pública nos termos do caput do art. 37 da Constituição Federal.
Sob a ótica democrática, esses discursos comprometem os mecanismos de contenção do poder previstos no arranjo constitucional de 1988, pois fragilizam uma das principais barreiras à instrumentalização política da burocracia estatal. A estabilidade não constitui privilégio individual, mas proteção institucional voltada a assegurar que o exercício da função pública não se submeta aos humores do governo de turno. Sua relativização enfraquece o caráter impessoal e técnico do Estado, transformando os servidores em agentes vulneráveis à vontade da autoridade política, o que fere diretamente os princípios republicanos e o regime de freios e contrapesos.
Esse movimento, além de afetar diretamente a qualidade da política pública e a capacidade estatal de execução, produz efeitos indiretos sobre a cidadania e os direitos fundamentais. O enfraquecimento da função pública compromete a entrega de serviços essenciais, como saúde, educação, segurança, justiça, fiscalização ambiental e proteção social, dentre outros, com especial impacto sobre as populações em situação de vulnerabilidade. A instabilidade funcional repercute também sobre a denúncia de ilegalidades, a proteção do patrimônio público e o controle interno, reduzindo o espaço para práticas de integridade e accountability.
Nesse cenário, a reforma administrativa discursivamente apresentada não pode ser compreendida apenas como alteração de política pública ou medida de eficiência gerencial. Trata-se de inflexão profunda na lógica do Estado brasileiro, promovida sob aparência de normalidade institucional, mas com sérias implicações para o pacto democrático e para a própria funcionalidade do serviço público como expressão do interesse público. É, portanto, caso paradigmático de constitucionalismo abusivo.