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STF reafirma a descentralização da execução de serviços públicos

Com o julgamento da ADIn 7.629/MG, neste ano de 2025, o STF reafirma o entendimento consubstanciado no julgamento da ADI 1923/DF, que instituiu a descentralização da execução de serviços públicos

17/7/2025

O debate acerca da descentralização da execução de serviços públicos não é recente, ganhando protagonismo em discussões como a da (im)possibilidade de terceirização de atividades-fim. Inicialmente, cumpre destacar que o legislador constituinte, ao editar os artigos que tratam “Da Ordem Social”, no Título VIII da Constituição Federal de 1988, o fez conferindo ao Estado o dever de planejar e garantir a seguridade social, a saúde, a previdência social, a assistência social, a educação, a cultura, o desporto, a ciência e tecnologia, a comunicação social, o meio ambiente, dentre outros direitos e garantias individuais e coletivos.

Muito embora tenha se estabelecido ser dever do Estado a promoção desses direitos, a Constituição Federal de 1988 foi também imperativa em aduzir - como o faz através do seu art. 193 - que à sociedade compete não apenas fruir desses direitos, mas, também, possui legitimidade para intervir e executar, em certa medida, ações com vistas à promoção dos serviços públicos sociais.

Ora, não há que se compreender, portanto, que haja uma separação imiscível entre Poder Público e particulares, quando se trata da promoção de serviços públicos. Exemplo disso é trazido pelos próprios arts. 205 e 209, da Constituição Federal de 1988, que, ao tutelar o direito à educação, preveem a colaboração da sociedade para a sua promoção, consignando, inclusive, a possibilidade de sua prestação através da iniciativa privada.

É nesse contexto que surge, então, o terceiro setor, definição que é usualmente utilizada no Brasil para designar o conjunto de organizações da sociedade civil sem fins lucrativos que passaram a atuar de forma regular no país, a partir do final da década de 80 e início dos anos 90.

No Brasil, tem-se como marco regulatório do terceiro setor as leis 9.637/1998 e 9.790/1999, que tratam, respectivamente, das OS - Organizações Sociais e OSCIP - Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público; e, mais recentemente, a lei 13.019/14, que regulamentou as parcerias entre as chamadas OSC - Organizações da Sociedade Civil e o Poder Público.

A possibilidade de descentralização da execução de serviços sociais foi - e segue sendo - alvo de muitas discussões, chegando a ser examinada pelo STF, através da ADI 1923/DF1, protocolada em 1998 e julgada em 2015.

Nessa ocasião, foram examinandos diversos aspectos da pactuação entre a Administração Pública e as entidades do terceiro setor, a qual contestava os arts. 18 e 20, da lei 9.637/982, que dispõem a respeito da absorção, por parte das Organizações Sociais, de atividades desenvolvidas por entidades ou órgãos públicos da União.

Segundo os autores, os serviços de saúde, educação, proteção ao meio ambiente, patrimônio histórico e acesso à ciência deveriam ser prestados pelo Estado, tendo em vista que a natureza do serviço público não deveria ser diluída como atividade econômica em sentido estrito - própria dos agentes privados.

Em seu voto, o ministro Luiz Fux, relator da ADIn 1.923/DF, consignou que a Constituição Federal prevê que as atividades de saúde, educação, cultura, desporto e lazer, ciência e tecnologia, e meio ambiente são deveres do Estado e da sociedade, de modo que são livres à iniciativa privada. 

Além do mais, registrou-se que, ainda que particulares prestem diretamente esses serviços por direito próprio, configuram-se como serviços públicos, entendimento cujo precedente assenta-se na ADIn 1.266, de relatoria do ministro Eros Grau. Vide:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 6.584/1994 DO ESTADO DA BAHIA. ADOÇÃO DE MATERIAL ESCOLAR E LIVROS DIDÁTICOS PELOS ESTABELECIMENTOS PARTICULARES DE ENSINO. SERVIÇO PÚBLICO. VÍCIO FORMAL. INEXISTÊNCIA. 1. Os serviços de educação, seja os prestados pelo Estado, seja os prestados por particulares, configuram serviço público não privativo, podendo ser prestados pelo setor privado independentemente de concessão, permissão ou autorização. 2. Tratando se de serviço público, incumbe às entidades educacionais particulares, na sua prestação, rigorosamente acatar as normas gerais de educação nacional e as dispostas pelo Estado-membro, no exercício de competência legislativa suplementar (§2º do ar. 24 da Constituição do Brasil). 3. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado improcedente.3

O ministro Luiz Fux asseverou entendimento de que a lei 9.637/9882 pretendeu instituir sistema de fomento e incentivo para que tais atividades fossem desempenhadas de modo eficiente pelos particulares, por meio de colaboração público-privada, instrumentalizada pelo Contrato de Gestão com Organizações Sociais. 

Igualmente, afirmou que cabe aos agentes eleitos definirem o modelo de atuação mais adequado ao projeto político vencedor do pleito eleitoral, ou seja, qual modelo de intervenção, seja direta ou indireta, mostra-se mais eficaz para o atingimento das metas coletivas almejadas pela sociedade. Ao final, o julgado trouxe contribuições importantes fixando balizas para o procedimento de qualificação das entidades e para a contratação de terceiros pelas Organizações Sociais com a utilização de recursos públicos.

Passados dez anos do julgamento da ação direta de inconstitucionalidade paradigmática, o STF reafirmou o seu posicionamento neste ano de 2025, através do julgamento da ADI 7629/MG, que contestava a transferência da gestão de hospitais para entidades do terceiro setor, sustentando que tal procedimento violaria as diretrizes do SUS - Sistema Único de Saúde.

Nessa oportunidade, então, restou reiterado que a Constituição Federal estabelece serviços públicos não privativos do Poder Público, de modo que não se exige a sua atuação de forma direta, destacando, dentre eles, a saúde, acerca do qual a Carta Magna autoriza a atuação indireta, por meio de fomento - art. 199.4

A celebração de contratos com o terceiro setor, então, traduz-se em escolha político-administrativa da Administração Pública, autorizada pela Constituição Federal e expressão dos princípios da eficiência e da economicidade. Ressaltou-se, ainda, que, na execução de serviços públicos, às Entidades devem ser aplicados os princípios que norteiam a atuação estatal - reafirmando-se, também neste ponto, o entendimento outrora fixado.

Percebe-se, portanto, que a jurisprudência do STF, interpretando o texto constitucional, é consolidada no sentido de possibilitar a descentralização da execução de serviços públicos às Entidades de terceiro setor, consignando, no entanto, que tal procedimento “deve ser conduzido de forma pública, objetiva e impessoal, em observância aos princípios do caput do art. 37 da Constituição Federal”.5

_________

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 1923/DF. Relator: Min. Ayres Britto. 16 abr. 2015. DJE 11 fev. 2016.

2 Art. 18. A organização social que absorver atividades de entidade federal extinta no âmbito da área de saúde deverá considerar no contrato de gestão, quanto ao atendimento da comunidade, os princípios do Sistema Único de Saúde, expressos no art. 198 da Constituição Federal e no art. 7o da Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990.

(...)

Art. 20. Será criado, mediante decreto do Poder Executivo, o Programa Nacional de Publicização - PNP, com o objetivo de estabelecer diretrizes e critérios para a qualificação de organizações sociais, a fim de assegurar a absorção de atividades desenvolvidas por entidades ou órgãos públicos da União, que atuem nas atividades referidas no art. 1o, por organizações sociais, qualificadas na forma desta Lei, observadas as seguintes diretrizes:                

I - ênfase no atendimento do cidadão-cliente;

II - ênfase nos resultados, qualitativos e quantitativos nos prazos pactuados;

III - controle social das ações de forma transparente.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 1266. Relator: Min. Eros Grau. 06 abr. 2005. DJE 23 set. 2005.

4 “Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.”

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 7.629/MG. Relator: Min. Dias Toffoli. 17 fev. 2025. DJE 15 mai. 2025.

Krysna Paiva
Advogada potiguar especialista em Direito Público, com foco em Direito Penal Econômico, Direito Administrativo Sancionador e Contratações Públicas. Sócia do Escritório Paiva Marinho Advocacia.

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