1. Introdução
Em julho de 2025, o DOJ - Departamento de Justiça dos Estados Unidos instituiu recompensas financeiras para estimular denúncias de práticas antitruste1. O Whistleblower Rewards Program permite que indivíduos recebam até 30% das multas aplicadas em processos criminais, desde que forneçam informações originais e voluntárias ao DOJ. Essa iniciativa representa uma evolução no já consolidado sistema norte-americano de combate a infrações concorrenciais, tradicionalmente baseado em políticas de leniência. O programa abrange tanto condutas de cartel quanto práticas de monopolização, exigindo que as informações sejam inéditas, fornecidas espontaneamente e anteriores a qualquer investigação formal do governo. Os pagamentos são realizados pelo USPS, com recursos provenientes das multas arrecadadas pelo DOJ.
2. A experiência norte-americana serve como referência concreta para o debate nacional. Considerando a tendência legislativa observada no Brasil em outros campos, não é improvável que, nos próximos anos, se discuta a implementação de um modelo semelhante para infrações concorrenciais.
3. Panorama atual no Brasil
O Brasil ainda não conta com um programa nacional de recompensas por denúncias antitruste. O principal instrumento vigente é o Acordo de Leniência, previsto na lei 12.529/11 e regulamentado pelo CADE. Porém, trata-se de um mecanismo voltado para incentivar a delação pelos próprios infratores, e não por terceiros, como empresas ou pessoas prejudicadas pelas condutas ilícitas.
4. As estatísticas mostram que o número de acordos de leniência no Brasil tem se mantido relativamente estável nos últimos anos. Entre 2019 e 2024, o CADE firmou, em média, quatro acordos de leniência por ano, principalmente em investigações de cartel em licitações e mercados regulados. O valor das multas e dos compromissos financeiros assumidos nesses acordos ultrapassou R$ 2 bilhões no período. Vide abaixo estatísticas dos acordos de leniência, conforme divulgado pelo CADE2:
5. Além do sistema de leniência, o CADE mantém o sistema Clique Denúncia, que permite a qualquer cidadão encaminhar informações sobre práticas anticompetitivas. Em 2023, foram registradas 1.352 denúncias via Clique Denúncia, com foco principal em práticas de cartel e condutas unilaterais. Em 2024, esse número saltou para 3.725 denúncias3, incentivas possivelmente por uma maior divulgação das atribuições do CADE na mídia.
6. Apesar da ampla utilização, poucos casos julgados pelo Tribunal do CADE têm origem nesse programa. Isso pode ser explicado, em parte, pelo fato de muitas denúncias tratarem de temas alheios ao direito concorrencial ou não serem acompanhadas de informações e documentos suficientes. O sigilo, frequentemente utilizado para evitar retaliações, pode limitar o acesso do CADE a dados essenciais, dificultando o avanço das investigações.
7. Experiências fora da seara concorrencial
Fora do âmbito concorrencial, o Brasil já possui um programa inicial de recompensas, previsto na lei 13.608/18, que trata do serviço telefônico de recebimento de denúncias e da possibilidade de recompensa por informações úteis a investigações policiais. O art. 4º da referida lei autoriza a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios a estabelecerem formas de recompensa, inclusive pagamentos em dinheiro, para quem fornecer informações relevantes à prevenção, repressão ou apuração de crimes ou ilícitos administrativos.
8. Diversos estados já implementaram programas de recompensa, especialmente na área de segurança pública. Em São Paulo, o Programa Estadual de Recompensa prevê pagamentos de até R$ 50.000 por denúncias úteis à polícia. No Ceará, as recompensas variam entre R$ 5.000 e R$ 8.000, enquanto no Rio de Janeiro os valores são definidos caso a caso. Em nível federal, as recompensas podem chegar a R$ 100.000, além de até 5% sobre valores recuperados.
9. Tendências legislativas e debates jurídicos
Há uma tendência de ampliação desses programas de recompensa. No Congresso Nacional, destacam-se dois projetos que, embora não focados diretamente em concorrência, podem abrir precedentes relevantes:
- PL 2.581/23: Prevê recompensas de até 10% sobre multas aplicadas pela CVM - Comissão de Valores Mobiliários ou valores recuperados, para quem denunciar crimes financeiros relacionados a companhias abertas.
- PL 3.165/15: Institui o programa do "informante do bem", prevendo até 15% de recompensa sobre valores recuperados em casos de corrupção e improbidade administrativa.
10. Esses projetos evidenciam o reconhecimento legislativo da utilidade de incentivos financeiros à denúncia, o que pode inspirar iniciativas semelhantes na esfera concorrencial.
11. No âmbito jurídico, ainda que não haja declaração formal de inconstitucionalidade pelo STF ou STJ, existem debates relevantes sobre a validade desses programas. O STF já reconheceu, em decisões como a ADI 5508, a importância dos colaboradores na investigação criminal. Contudo, questões como o princípio da moralidade administrativa (art. 37, caput, CF/88) e o devido processo legal (art. 5º, LIV e LV, CF/88) deverão ser discutidas em eventuais processos legislativos e na execução dessas leis.
12. Reflexão final
A autoridade concorrencial brasileira tem buscado ampliar sua capacidade de detecção de condutas anticompetitivas, avançando nos programas de leniência e acordos sobre condutas ilícitas. Diante desse cenário, é legítimo questionar se o próximo passo da legislação concorrencial será a criação de um programa nacional de recompensas para denunciantes.
13. Essa proposta levanta questões importantes, como:
- Qual seria a estrutura ideal: pagamento vinculado à multa, percentual fixo, teto máximo?
- Como equilibrar o incentivo financeiro com a proteção contra denúncias falsas?
- Como articular esse programa com a política já consolidada de leniência?
14. O tema merece análise aprofundada por profissionais da área concorrencial, considerando seus impactos sobre a eficácia do enforcement antitruste, a segurança jurídica e a política pública de defesa da concorrência no Brasil.
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1 O anúncio foi feito em seu site oficial: https://www.justice.gov/opa/pr/justice-departments-antitrust-division-announces-whistleblower-rewards-program.
2 Estatísticas do Programa de Leniência do CADE. Disponível em: https://www.gov.br/cade/pt-br/assuntos/programa-de-leniencia/estatisticas.
3 Anuário do CADE em 2024. Disponível em: https://indd.adobe.com/view/89a82010-1734-43f2-954b-0318eb218ed1.