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Tutela de urgência do art. 20-B da LREF em tempos de crise no agronegócio

A utilização da tutela de urgência do art. 20-B, §1º da LREF pelos produtores rurais.

22/7/2025

A escalada dos pedidos de recuperação extrajudicial ou judicial por produtores rurais nos últimos dois anos apenas confirmou o que já se intuía no meio jurídico e econômico: a insolvência no campo é uma realidade concreta, multifacetada e que demanda respostas ajustadas às suas particularidades. Entre 2023 e 2024, o número de pedidos de recuperação no agronegócio cresceu 138%. O dado mais expressivo, porém, vem das pessoas físicas1. Nesse grupo, o aumento ultrapassou 340%, escancarando o avanço de crises estruturais fora dos grandes centros urbanos.

Mas, antes mesmo que a recuperação extrajudicial ou judicial seja formalizada, o sistema oferece uma válvula de escape anterior - e é aí que entra a tutela cautelar do art. 20-B, §1º, da lei 11.101/05 (“LREF”). Essa medida, muitas vezes mal compreendida, precisa ser tratada com precisão técnica e, sobretudo, com responsabilidade.

A tutela cautelar prevista no referido dispositivo autoriza o devedor a pedir, antes mesmo da distribuição de uma recuperação extrajudicial ou judicial, a suspensão de execuções e constrições por até 60 dias, desde que já tenha instaurado formalmente um procedimento de mediação ou conciliação com seus credores. Não se trata de uma antecipação genérica dos efeitos do procedimento de insolvência, mas de uma providência jurídica específica, destinada a preservar as condições mínimas para a negociação. A medida tem fundamento tanto no art. 20-B da LREF quanto no art. 305 do CPC, que regula as cautelares antecedentes. O objetivo é criar um ambiente de estabilidade mínima que permita a tentativa de recomposição antes da judicialização plena da crise.

A aplicação da medida, contudo, não é automática. O produtor rural ou qualquer devedor interessado deve demonstrar a presença dos requisitos clássicos da tutela de urgência: a probabilidade do direito e o perigo de dano. No plano prático, isso se traduz em comprovar que há tratativas sérias de negociação em curso e que, sem a suspensão, os efeitos das execuções em andamento comprometeriam a própria viabilidade da composição. Além disso, a lei exige que a mediação esteja devidamente instaurada, com convite formal aos credores, seja via CEJUSC, seja por câmara privada especializada.

O enunciado 6 do FONAREF deixa claro que a medida cautelar só pode produzir efeitos em relação aos credores convidados a participar da mediação, mesmo que não compareçam. Credores não notificados formalmente não são abrangidos pela suspensão.

Há, ainda, debate relevante sobre a documentação necessária para instruir o pedido da tutela cautelar prevista no art. 20-B, §1º, da LREF. O enunciado 10 do FONAREF entende que, para sua concessão, bastariam os documentos exigidos pelo art. 48 da lei - isto é, a comprovação do exercício regular da atividade empresarial nos dois anos anteriores ao pedido. Essa interpretação busca prestigiar a desburocratização do acesso à medida e a celeridade na instauração do ambiente negocial.

No entanto, parte significativa da doutrina e da jurisprudência2 tem adotado entendimento mais restritivo, exigindo a apresentação dos documentos previstos no art. 51 da LREF, especialmente a relação de credores, demonstrações contábeis, extratos bancários e descrição de bens.

Para esses julgados, a análise do art. 20-B não pode ser dissociada da lógica principiológica do regime recuperacional, estruturado com base na boa-fé, na transparência e na busca pelo equilíbrio entre as partes. Assim, conceder a suspensão de execuções antes mesmo do ajuizamento da recuperação extrajudicial ou judicial - ainda que por prazo delimitado - constitui medida de alto impacto, que interfere diretamente na esfera jurídica dos credores. Por essa razão, a dispensa dos documentos do art. 51 comprometeria a integridade do sistema e esvaziaria a efetividade do contraditório e da confiança entre os sujeitos envolvidos.

Esses documentos, longe de constituírem mera formalidade burocrática, representam instrumentos mínimos de lisura, permitindo que os credores compreendam a real situação patrimonial do devedor e avaliem, com segurança, a viabilidade da composição. A ausência dessas informações poderia fragilizar a mediação e compromete a sua finalidade prática, convertendo o procedimento em uma oportunidade para o devedor apenas ganhar tempo, sem compromisso efetivo com a negociação.

Nesse contexto, o prazo de 60 dias previsto no art. 20-B deve ser compreendido, portanto, como um período de estabilização pré-processual. Um tempo concedido para que devedor e credores, em ambiente protegido, tentem alcançar um acordo capaz de evitar a judicialização do conflito.

Caso a composição seja bem-sucedida, poderá ser homologada judicialmente. Se frustrada, abre-se a via da recuperação extrajudicial ou judicial formal, a ser proposta nos mesmos autos da cautelar, com o desconto do período já decorrido no cômputo do stay period. Não havendo o ajuizamento dentro do prazo legal, a medida perde automaticamente sua eficácia, restabelecendo-se o curso regular das execuções.

Longe de ser uma panaceia jurídica: Uso estratégico e racional da tutela de mediação antecedente ao pedido de recuperação

A tutela prevista no art. 20-B da LREF não representa uma solução mágica para todos os desafios da recuperação extrajudicial ou judicial. Seu valor está no uso estratégico e responsável, que incentiva negociações autênticas e evita a simples postergação de conflitos. Quando aplicada com critério, essa tutela contribui para equilibrar os interesses de credores e devedores, assegurando a continuidade das atividades empresariais e a efetividade do processo de soerguimento.

O propósito do art. 20-B é facilitar a conciliação e a mediação em momentos-chave do processo recuperacional, abrangendo fases pré-processuais, disputas entre sócios e acionistas, conflitos envolvendo credores extraconcursais, e negociações de dívidas antes do ajuizamento da recuperação extrajudicial ou judicial. A lei estabelece limites claros para o alcance dessas mediações, vedando seu uso para discutir a natureza, classificação de créditos ou critérios de votação em assembleias, de modo a impedir que esse mecanismo se transforme em instrumento para postergar decisões essenciais. Assim, o art. 20-B fortalece um processo mais justo e eficiente, sempre pautado pela negociação genuína e pela busca por soluções viáveis que garantam a continuidade das empresas em dificuldades.

No contexto das relações do produtor rural, a mediação com seus credores assume uma dimensão particular, distinta do ambiente empresarial urbano. Essas relações são marcadas por vínculos de confiança, interdependência social e laços de longo prazo que vão além do mero contrato econômico. Estimular a mediação nesse cenário é fundamental para preservar essas relações e evitar que conflitos financeiros comprometam não apenas a atividade produtiva, mas também a estabilidade das comunidades rurais.

Dessa forma, a tutela do art. 20-B se configura como uma medida excepcional, porém extremamente eficaz. Ela reforça a paridade de armas, impedindo que o produtor rural, frequentemente fragilizado em sua estrutura jurídica e financeira diante de credores robustos - como bancos, cooperativas e tradings - seja pressionado a negociar sob ameaça de bloqueios e leilões iminentes. Nesse contexto, a mediação pré-processual com suporte judicial se apresenta como um importante instrumento para facilitar acordos, preservar relacionamentos e, em última análise, evitar o desgaste e os custos da recuperação extrajudicial ou judicial.

Contudo, é justamente por sua utilidade que essa medida não pode ser banalizada. A concessão da tutela do art. 20-B, embora legítima, não deve ser tratada como rotina ou expediente para ganhar tempo sem compromisso real com a negociação. Infelizmente, há casos em que o dispositivo é invocado apenas para suspender execuções, sem mediação efetiva ou intenção genuína de composição. Em outras situações, serve como estratégia para adiar o inevitável, postergando o colapso sem construir soluções concretas.

Esse uso deturpado fragiliza o próprio instituto. Quando se transforma a mediação em pretexto e a suspensão em escudo para má-fé, perde-se o equilíbrio e esvazia-se a confiança no sistema. O Judiciário, nesse contexto, deve ser criterioso: nem permissivo com abusos, nem excessivamente formalista a ponto de inviabilizar o uso responsável do instrumento. O bom uso da LREF exige maturidade de todos os atores - inclusive do devedor, que precisa compreender que as ferramentas da lei não foram feitas para proteger estratégias evasivas, mas para dar suporte à reestruturação séria e viável.

Suspender para negociar é legítimo. Suspender apenas para adiar, não. A tutela de urgência do art. 20-B é uma das engrenagens possíveis da reestruturação empresarial no campo, mas, como toda ferramenta jurídica robusta, deve ser usada com responsabilidade, transparência e compromisso. Porque, no fim das contas, não se trata apenas de postergar um problema - mas de demonstrar que existe, de fato, uma solução a ser construída.

__________________

1 A recuperação extrajudicial ou judicial é uma ferramenta voltada exclusivamente a empresários e sociedades empresárias, de modo que o produtor rural pessoa natural só adquire legitimidade para acessá-la se estiver previamente inscrito como empresário regular. Essa formalização, embora não altere sua natureza jurídica de pessoa física, é condição indispensável para ingresso válido no regime recuperacional.

2 AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL OU JUDICIAL. TUTELA CAUTELAR ANTECEDENTE PARA SUSPENSÃO DAS EXECUÇÕES. Insurgência contra decisão que determinou a juntada de documentos a fim de comprovar os requisitos do artigo 51 da Lei 11 .101/2005, sob pena de indeferimento da inicial. Art. 20-B, § 1º, da Lei 11.101/2005. Preenchidos os requisitos para concessão da tutela de urgência cautelar, isto é, demonstração pela empresa autora do seu direito a requerer recuperação extrajudicial ou judicial e instauração do procedimento de mediação ou conciliação perante câmara especializada. Deferimento parcial da tutela cautelar antecedente para suspensão das execuções movidas contra as agravadas pelos credores, pelo prazo 60 (sessenta) dias. Recurso provido. (TJ-SP - Agravo de Instrumento: 22608636420248260000 São Paulo, Relator.: J.B. Paula Lima, Data de Julgamento: 27/11/2024, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 28/11/2024)

Letícia Marina da S. Moura
Advogada e jornalista especializada em Direito Empresarial, com formação em Falência e Recuperação pela PUC-PR e Compliance Anticorrupção. Pesquisadora em grupos avançados da USP e PUC-SP.

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