A liberdade religiosa ocupa lugar de destaque no rol dos direitos fundamentais, na medida em que representa não apenas a possibilidade de professar livremente crenças e convicções espirituais, mas também a afirmação da autonomia de consciência e da dignidade humana. Sua proteção reflete o pluralismo, a tolerância e o respeito à diversidade, valores indissociáveis de uma sociedade democrática.
Contudo, a evolução histórica desse direito no Brasil percorreu um longo caminho, pontuado por rupturas e continuidades, avanços e retrocessos. Do colonialismo português até a promulgação da Constituição de 1988, observa-se uma trajetória marcada inicialmente pela intolerância e pela supremacia católica, seguida por uma lenta, mas progressiva, consolidação normativa da liberdade de crença.
O estudo que se segue busca resgatar, em perspectiva histórico-constitucional, os marcos e contextos normativos que moldaram a liberdade religiosa no Brasil, realçando aspectos textuais dos diplomas constitucionais e reflexões sobre sua aplicação prática e social.
O período colonial (1500-1822): Intolerância e monopólio religioso
Entre o início da colonização, em 1500, e a independência política, em 1822, não havia no Brasil qualquer garantia de liberdade religiosa. O catolicismo foi instituído, desde o primeiro momento, como elemento central do projeto colonial, legitimado juridicamente pelo padroado régio, que autorizava o monarca português a organizar a vida eclesiástica nos domínios ultramarinos, nomeando bispos e administrando bens da Igreja.
Essa fusão entre Igreja e Estado transformava a fé católica em fundamento do poder colonial, de forma a legitimar a dominação de populações indígenas e africanas escravizadas. Expressões religiosas de matriz africana ou práticas indígenas eram reprimidas de modo sistemático, qualificadas como idolatria, feitiçaria ou heresia. A Inquisição portuguesa, ainda que sem tribunal fixo no Brasil, atuou por meio de visitadores e processos persecutórios, alimentando o medo e restringindo qualquer manifestação religiosa não alinhada à ortodoxia católica.
Vale mencionar que, no plano social, a religião católica exercia funções para além do culto, pois regulava registros de nascimento, casamentos, batismos e sepultamentos, conferindo ao clero um poder difuso sobre a vida civil dos indivíduos. Essa dimensão reforçava o monopólio religioso, esvaziando a possibilidade de qualquer liberdade de consciência ou culto diverso.
Ao fim do período colonial, portanto, a intolerância religiosa era institucionalizada, naturalizada pela cultura jurídica e política, e serviu de base para a configuração constitucional do nascente Estado imperial.
Constituição de 1824: Tolerância limitada e supremacia católica
Promulgada em 1824, sob a égide de um Império recém-independente, a primeira Constituição brasileira consagrou a religião católica apostólica romana como religião oficial do Estado, nos seguintes termos:
“Art. 5º A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo.”
O dispositivo evidencia que a liberdade de crença ainda era percebida como mera permissão, sujeita a forte controle do poder imperial. O catolicismo seguia como instrumento de coesão nacional e sustentava o sistema de padroado adaptado ao novo Estado independente.
Outras religiões poderiam existir, mas somente em recintos privados, sem manifestações públicas, num contexto de vigilância e restrições. Mesmo toleradas, essas confissões religiosas viviam sob suspeita de comprometer a ordem social ou os valores cristãos.
Sob o argumento de garantir a unidade do Império, a Constituição de 1824 manteve práticas herdadas do absolutismo português, limitando drasticamente a liberdade religiosa e subordinando-a à supremacia oficial católica. Esse modelo perdurou até a ruptura republicana no final do século XIX.
Constituição de 1891: Ruptura com o confessionalismo e consagração do Estado laico
A proclamação da República, em 1889, transformou profundamente a relação entre religião e Estado. A Constituição de 1891 representou o marco inaugural de um Estado laico, ao extinguir a religião oficial e assegurar ampla liberdade de culto. Seu art. 72, §3º dispôs:
“Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer livremente os seus cultos, associando-se para esse fim, sem dependência de licença alguma da autoridade pública.”
E complementava:
“Fica igualmente garantido o exercício do direito de qualquer culto, respeitado o sossego público e os bons costumes.”
Essa redação expressou, pela primeira vez, a liberdade de culto como direito público subjetivo, afastando a tutela estatal sobre a prática religiosa. Ao abolir a religião oficial, a Constituição republicana reconheceu a pluralidade religiosa e deu bases jurídicas para a autonomia das comunidades de fé.
Ainda assim, as expressões “respeitado o sossego público e os bons costumes” mostram que persistiam controles morais e policiais, reflexo do temor de manifestações que pudessem desafiar a ordem social ou a moral vigente.
É possível afirmar que a Constituição de 1891 inicia o ciclo moderno da liberdade religiosa no Brasil, ao desvincular o poder público de qualquer confissão, ainda que não eliminasse todas as resistências culturais à diversidade religiosa.
Constituição de 1934: Reforço de garantias e proteção aos símbolos religiosos
Após as transformações da Revolução de 1930, a Constituição de 1934 reafirmou a separação entre Igreja e Estado e fortaleceu a proteção jurídica da liberdade religiosa. O art. 113, 6, dispôs:
“É inviolável a liberdade de consciência e de crença.”
E acrescentava:
“O Estado assegurará a proteção aos locais de culto e seus símbolos.”
Esse acréscimo revela uma evolução importante: o constituinte passou a preocupar-se não apenas com a liberdade abstrata de crença, mas também com a salvaguarda física dos espaços e dos elementos materiais de prática religiosa. Isso refletia um contexto de maior valorização dos direitos individuais e da convivência plural, marcando uma abertura cultural que acompanhava a modernização do Brasil urbano e industrializado.
Além disso, a Constituição de 1934 proibiu subvenções públicas a entidades religiosas, reforçando a separação institucional e prevenindo favoritismos oficiais. Esse detalhe tornava o modelo laico mais consistente, ajustando-se a padrões democráticos de neutralidade estatal.
Constituição de 1937: Autoritarismo e restrições na prática
Promulgada durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, a Constituição de 1937 manteve formalmente a liberdade religiosa, conforme previa seu art. 122, 6:
“É inviolável a liberdade de consciência e de crença.”
Entretanto, o ambiente político autoritário relativizou essas garantias. O governo impôs forte censura, controle de associações e vigilância constante, inclusive contra grupos religiosos que se posicionassem de forma crítica ao regime. O temor da infiltração de ideias consideradas subversivas fez com que a prática da liberdade religiosa fosse severamente monitorada, mesmo que a Constituição previsse sua inviolabilidade.
Esse contraste entre norma e realidade demonstra que a efetividade da liberdade religiosa depende não apenas de previsões constitucionais, mas de instituições livres e democráticas que as sustentem.
Constituição de 1946: Redemocratização e proteção ampliada
Encerrada a Segunda Guerra Mundial e superado o Estado Novo, a Constituição de 1946 devolveu ao Brasil um ambiente democrático. O art. 141, § 7º reafirmava:
“É inviolável a liberdade de consciência e de crença.”
E, de forma inovadora, concedeu imunidade tributária aos templos religiosos:
“Os templos de qualquer culto são imunes de impostos.”
Esse dispositivo representou avanço significativo, pois reconheceu que a autonomia das comunidades religiosas depende também de condições econômicas favoráveis para seu funcionamento. Ao isentar de impostos, a Constituição de 1946 protegeu financeiramente os espaços de culto, reconhecendo seu papel na formação cidadã e comunitária.
Esse marco se ajustou a um contexto de pluralidade religiosa em crescimento no país, acompanhando a revalorização dos direitos fundamentais em um cenário internacional influenciado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
Constituição de 1967 e emenda 1/1969: Formalidade sem efetividade
Em plena vigência do regime militar, a Constituição de 1967 e a emenda constitucional 1/1969 mantiveram a garantia da liberdade religiosa, prevendo no art. 150, § 6º:
“É inviolável a liberdade de consciência e de crença.”
E preservando a imunidade tributária dos templos. Todavia, a prática autoritária do regime cerceava movimentos religiosos envolvidos na luta por direitos civis, rotulando-os como subversivos ou contrários à ordem. Vários religiosos e comunidades de fé engajadas na defesa de populações vulneráveis sofreram monitoramento e repressão.
Fica evidente, portanto, que a letra da Constituição não bastava sem a vigência de liberdades políticas e de mecanismos de controle democrático capazes de garantir a efetividade dos direitos.
Constituição de 1988: a culminância da proteção democrática
A Constituição de 1988 consagrou definitivamente a liberdade religiosa como direito fundamental pleno, de forma compatível com os tratados internacionais de direitos humanos e os valores democráticos. O art. 5º, VI, dispõe:
“É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.”
Além disso, o art. 19, I, veda expressamente:
“À União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”
Tais dispositivos refletem um modelo laico robusto, garantindo não apenas a neutralidade estatal frente às confissões, mas também a proteção da autonomia religiosa, inclusive com a imunidade tributária prevista no art. 150, VI, “b”.
A Constituição de 1988, assim, completa a trajetória histórica de transformação do Brasil, de um regime de perseguição religiosa colonial para um ambiente de pluralidade e tolerância, em sintonia com a dignidade humana e o pluralismo democrático.
Considerações finais
O percurso histórico da liberdade religiosa no Brasil demonstra que a garantia desse direito fundamental não decorreu de concessões espontâneas, mas de um processo longo, permeado por lutas, resistências e movimentos sociais que reivindicaram maior respeito à autonomia de consciência. A Constituição de 1988 representa a culminância dessa evolução, acolhendo de forma plena a laicidade estatal e o pluralismo religioso como fundamentos essenciais para a construção de uma sociedade democrática.
Entretanto, permanece como desafio a concretização plena do texto constitucional. A intolerância religiosa, em suas diferentes faces - discriminação, discursos de ódio, perseguição de minorias religiosas - ainda se manifesta no cotidiano brasileiro, exigindo vigilância permanente da sociedade e atuação firme do Estado para garantir a aplicação efetiva dos dispositivos constitucionais. É preciso compreender que a liberdade religiosa não se resume a professar um culto, mas envolve a dignidade da pessoa humana, sua liberdade de consciência e a possibilidade de viver segundo seus próprios valores espirituais.
Assim, a trajetória histórica aqui exposta nos convida a pensar a liberdade religiosa como conquista civilizatória, que deve ser continuamente protegida e atualizada diante dos desafios contemporâneos, para que permaneça um direito vivo e efetivo na prática social.
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Referências
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Constituição do Império do Brasil (1824).
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891).
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1934, 1937, 1946).
Constituição da República Federativa do Brasil (1967, EC nº 1/1969, 1988).
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira. São Paulo: Edusp, 2008.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2019.
VENANCIO, Renato Franco. A Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.