Para o empresário, o executivo de alto escalão ou o investidor que construiu seu patrimônio ao longo de décadas, a palavra "legado" transcende o valor financeiro. Ela representa a continuidade de um propósito, a segurança da família e a materialização de uma vida de trabalho. Proteger essa construção contra as intempéries econômicas e, principalmente, contra a voracidade fiscal do Estado, não é uma opção, mas um imperativo estratégico.
Nesse contexto, a reforma tributária sobre o consumo, com a criação do IBS e da CBS, pode parecer, à primeira vista, um assunto distante do planejamento patrimonial e sucessório. Um erro crasso de avaliação.
A verdade é que essa mudança representa a maior alteração tectônica em nosso ambiente de negócios em décadas, e suas ondas de choque inevitavelmente alcançarão as estruturas de holdings, os acordos de sócios e os cofres das famílias empresárias. Mais do que isso, a reforma abriu uma "janela de Overton" legislativa, tornando politicamente palatável a discussão sobre temas antes considerados tabus, como a tributação de dividendos e a majoração de impostos sobre heranças.
Este artigo não é um alarme de incêndio, mas um mapa estratégico. Ele demonstrará que, em meio à névoa da incerteza, surgem oportunidades raras para aqueles com a visão de antecipar movimentos e reestruturar seu patrimônio de forma inteligente, muitas vezes exigindo soluções que transcendem as fronteiras nacionais.
O efeito dominó: Por que uma reforma no consumo ameaça seu patrimônio?
A conexão pode não ser óbvia, mas é direta e poderosa. A reforma tributária, focada no IVA, impacta o patrimônio e a sucessão de, no mínimo, três formas cruciais:
1. A sede arrecadatória dos Estados: A reforma trouxe mudanças importantes ao ITCMD - Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação. Tornou sua progressividade obrigatória em razão do valor da herança ou doação e estabeleceu que, para bens no exterior, o imposto será devido ao estado de domicílio do falecido. O que isso sinaliza? Um apetite renovado dos estados pela arrecadação sobre o patrimônio. Com a perda de autonomia na tributação do consumo (o ICMS será extinto), a tendência natural é que os governos estaduais voltem suas baterias para o ITCMD, explorando o teto atual de 8% ou, como já se ventila, pressionando o Senado por sua elevação.
2. O fantasma da tributação de dividendos: Há anos o Brasil flerta com o fim da isenção sobre a distribuição de lucros e dividendos. Com a necessidade de calibrar a carga tributária geral durante e após a transição para o IBS/CBS, a taxação de dividendos surge como uma das mais prováveis "moedas de troca". Uma eventual alíquota de 15%, como já proposto, alteraria drasticamente a equação financeira de qualquer holding familiar, exigindo uma reavaliação completa da política de distribuição de lucros e reinvestimento.
3. Mudança no fluxo de caixa das empresas operacionais: O novo IVA alterará a dinâmica de caixa das empresas que geram o lucro a ser distribuído pela holding. Mudanças na apuração de créditos e no tempo de ressarcimento impactarão diretamente a liquidez e, consequentemente, a capacidade de remunerar os acionistas.
Ignorar esses sinais é como navegar em direção a um iceberg confiando apenas no que se vê acima da superfície. A maior parte do perigo está submersa, e é lá que a estratégia deve atuar.
A holding sob nova perspectiva: Ferramenta ou armadilha?
A holding familiar é, merecidamente, a estrutura mais utilizada nos dias de hoje para o planejamento patrimonial e sucessório no Brasil. Ela centraliza o controle, protege os ativos operacionais e facilita a transição entre gerações. Contudo, no cenário pós-Reforma, uma holding criada sob a lógica do passado pode se tornar uma armadilha.
É preciso se perguntar:
- A estrutura atual é eficiente? O modelo de "holding pura" (que apenas detém participações) versus "holding mista" (que também presta serviços às controladas) terá implicações fiscais distintas sob o IBS, especialmente na tributação desses serviços e na possibilidade de tomada de créditos;
- O acordo de sócios está preparado? O acordo que rege a holding e a família prevê os impactos de uma eventual tributação de dividendos? Ele estabelece regras claras para a distribuição de lucros em um cenário de menor liquidez?
- A estrutura é flexível? Uma estrutura rígida, pensada apenas para o cenário fiscal de hoje, pode engessar a família e gerar custos desnecessários amanhã. A flexibilidade para adaptar a holding a novas regras tributárias será um diferencial competitivo.
A holding continua sendo uma ferramenta poderosa, mas sua eficácia dependerá de um redesenho estratégico, que considere não apenas o presente, mas os múltiplos futuros possíveis para a tributação no Brasil.
Planejamento sucessório: O relógio está correndo
Se a tendência de aumento da carga sobre o patrimônio se confirmar, o momento para executar ou revisar o planejamento sucessório é agora. A "janela de oportunidade" para realizar doações de quotas com reserva de usufruto, antecipar a legítima ou estruturar a sucessão sob as alíquotas atuais do ITCMD pode estar se fechando.
Esperar a poeira da reforma baixar pode significar pagar um imposto significativamente maior sobre a transferência do mesmo patrimônio. A proatividade aqui não é uma virtude, é uma necessidade financeira. É preciso analisar o acervo patrimonial, o perfil dos herdeiros e os objetivos da família para desenhar um plano que utilize os instrumentos jurídicos disponíveis (doações, testamentos, seguros de vida, planos de previdência privada) da forma mais eficiente e segura possível.
Desbravando fronteiras: Estruturas internacionais
Quando a complexidade do patrimônio e a instabilidade do ambiente doméstico aumentam, limitar-se a soluções puramente brasileiras é uma estratégia que pode trazer risco. A era pós-reforma marca a ascensão definitiva de estruturas internacionais como componentes essenciais de uma blindagem patrimonial robusta.
Veremos algumas opções:
1. O trust: A ferramenta fundamental e suas variações
O trust é uma relação fiduciária onde o instituidor (settlor) transfere seus ativos para um administrador (trustee), que os gere em benefício de terceiros (beneficiaries). Sua força reside na segregação patrimonial: os ativos deixam de pertencer legalmente ao instituidor. Essa ferramenta, quando bem utilizada, se torna muito mais eficiente:
- Trusts irrevogáveis e discretionários: Para máxima proteção, o trust deve ser irrevogável (o instituidor não pode reaver os bens) e discretionário (o trustee tem poder de decisão sobre quando e como distribuir os recursos aos beneficiários). Essa combinação cria uma fortaleza contra credores, disputas matrimoniais e, crucialmente, torna o processo de inventário no Brasil inaplicável àqueles ativos, evitando custos, publicidade e a morosidade do judiciário.
2. PTCs - Private Trust Companies: Controle e governança familiar
Para famílias que desejam manter um grau de controle sobre a gestão de seus trusts, a PTC - Private Trust Company é a solução. Trata-se de uma empresa, constituída em uma jurisdição como Jersey ou Ilhas Cayman, cuja única finalidade é atuar como trustee para os trusts daquela família específica. Os membros da família podem sentar-se no conselho da PTC, influenciando as decisões de investimento e gestão sem comprometer a validade legal do trust.
3. FIPs - Fundações de Interesse Privado: A alternativa do civil law
Comuns em jurisdições como Panamá e Liechtenstein, a FIP - Fundação de Interesse Privado é uma entidade legal que não tem donos. Ela é gerida por um conselho conforme os desejos do fundador, expressos em seu estatuto. Para famílias de tradição jurídica romano-germânica, seu conceito como "entidade" pode ser mais intuitivo que o "relacionamento" do trust. A FIP pode ser usada para deter ações de empresas operacionais ou mesmo para ser a acionista de uma PTC, criando uma camada adicional de governança e proteção.
4. Arquiteturas Híbridas
Um exemplo de arquitetura mais complexo, com uma proteção também mais robusta frequentemente envolve a combinação dessas estruturas. Imagine um cenário:
- Uma Fundação de Interesse Privado no topo, garantindo a perpetuidade do propósito da família;
- Essa Fundação detém as ações de uma PTC - Private Trust Company;
- A PTC, por sua vez, atua como trustee de múltiplos trusts irrevogáveis e discretionários, cada um desenhado para um ramo da família ou para uma classe de ativos específica.
Essa arquitetura cria um sistema de freios e contrapesos, com diversas camadas de proteção legal e governança, tornando o patrimônio praticamente imune a choques políticos, econômicos e fiscais originados no Brasil.
Nota de cautela e a nova realidade fiscal: É crucial frisar que tais estruturas não são mecanismos de evasão. A Lei 14.754/2023 ("Lei das Offshores") estabeleceu uma tributação anual de 15% sobre os rendimentos de ativos no exterior. A sofisticação, agora, não está em buscar a alíquota zero, mas em utilizar essas estruturas para obter o que o Brasil não oferece: segurança jurídica, previsibilidade, proteção contra credores, planejamento sucessório eficiente e uma governança profissionalizada. O imposto de 15% torna-se o "custo de admissão" para um nível de blindagem e organização patrimonial incomparavelmente superior.
O plano de ação:
- Diagnóstico patrimonial 360º: Realizar um levantamento minucioso de todos os ativos, passivos, estruturas societárias existentes e acordos de família. Incluir a análise da exposição internacional e da alocação de ativos globais.
- Modelagem de impacto: Simular os efeitos financeiros da tributação no Brasil versus a manutenção de ativos em estruturas internacionais eficientes.
- Desenho da arquitetura internacional: Com base no diagnóstico e na modelagem, redesenhar a estrutura societária e o plano sucessório. Isso pode envolver a criação de uma holding, a cisão de uma existente, a alteração de contratos sociais ou a execução de um plano de doações. Avaliar a necessidade e a viabilidade de implementar estruturas como trusts, PTCs ou fundações, desenhando uma solução híbrida e sob medida.
- Implementação e governança: Executar o plano de forma faseada e estabelecer regras claras de governança familiar e corporativa para garantir a perenidade e a eficácia da nova estrutura.
A reforma tributária, em sua essência, é um evento de redistribuição de cargas fiscais. Para o patrimônio desprotegido, ela representa uma ameaça. Para o patrimônio estrategicamente organizado, ela se revela uma oportunidade ímpar de otimização e fortalecimento.
É bom lembrar que o direito tributário, societário e contratual não são disciplinas isoladas, mas engrenagens de uma mesma máquina que impulsiona e protege o seu patrimônio. E você vai precisar disso.