A manipulação de resultados (match-fixing) é um dos fenômenos mais danosos à credibilidade do esporte, resultando em inequívoca afronta ao fair play. Com a expansão do mercado de apostas e a crescente sofisticação das fraudes, entidades como a FIFA, UEFA e Comitê Olímpico Internacional - e, no âmbito nacional, a CBF1 e o STJD do Futebol2 - passaram a adotar medidas disciplinares rígidas para preservar a integridade esportiva.
Neste artigo, analisa-se brevemente uma interessante decisão proferida pelo CAS - Tribunal Arbitral do Esporte no caso CAS 2017/A/5338 (o dinamarquês Lars Hilliger foi o árbitro único), envolvendo o jogador Olegs Penkovskis, da Letônia, e a LFF - Federação Letã de Futebol.
O referido caso, que discute a validade de uma suspensão de três anos imposta ao atleta sob a acusação de envolvimento em manipulação de resultados, oferece um marco relevante para compreender os contornos e limites do standard de prova da "satisfação confortável" (comfortable satisfaction), reiteradamente aplicado pelo CAS, para fins de julgamento em casos de manipulação, critério esse que foi recentemente aplicado pela 4ª Comissão Disciplinar do STJD do Futebol no exame do processo disciplinar 144-A/24, envolvendo a manipulação de partida válida pela Série D do Campeonato Brasileiro Masculino de Futebol, entre os clubes Patrocinense-MG e Inter de Limeira-SP.
O jogador Olegs Penkovskis foi acusado pela LFF de envolvimento na manipulação de três partidas disputadas por clubes diferentes em que atuava. As acusações basearam-se em (i) relatórios da UEFA/BFDS indicando padrões de apostas atípicos, (ii) análises de vídeo por especialistas independentes, (iii) declarações de terceiros e (iv) presunções relacionadas ao papel de Penkovskis como capitão da equipe.
O ponto central residia na terceira partida (Jekabpils vs. FK Jelgava), cuja derrota por 8x0 foi considerada altamente suspeita. O sistema BFDS detectou apostas intensas prevendo a derrota da equipe por sete ou mais gols, com oscilações de odds incompatíveis com a lógica de mercado. Contudo, nenhum dado vinculava diretamente Penkovskis às apostas.
No caso em questão, o CAS reconheceu que a terceira partida foi manipulada para fins de apostas, mas entendeu que a LFF falhou em demonstrar, com satisfação confortável, que Penkovskis participou direta ou indiretamente da manipulação. Isso, porque (i) o relatório BFDS não fazia referência ao jogador; (ii) a análise de vídeo mostrava passividade em lances específicos, mas não eliminava a existência de outras explicações plausíveis; (iii) a declaração de terceiros não mencionava seu nome diretamente; e (iv) argumento de que capitães são alvos preferenciais foi considerado genérico.
Assim, não se formou convicção suficiente para aplicar sanção grave. O Tribunal reiterou que a imposição de penas deve preservar a presunção de inocência e não pode derivar de suposições baseadas em tendências ou perfis genéricos.
O CAS, então, anulou a suspensão de três anos aplicada ao atleta e rejeitou o pedido de danos morais por falta de fundamentação. Essa decisão solidifica ao menos quatro diretrizes relevantes. Primeiro, o standard probatório da "satisfação confortável" não admite inferências genéricas sem corroboração individualizada. Segundo, provas circunstanciais devem ser complementadas por evidência direta ou muito próxima. Terceiro, o uso de relatórios de monitoramento de apostas exige cautela, servindo como ponto de partida investigativo e não como fundamento isolado para condenação. Quarto, o princípio do devido processo legal é inegociável, mesmo em face da urgência institucional de proteger a integridade esportiva.
A propósito do standard probatório da “satisfação confortável” - mais rigoroso do que o simples equilíbrio de probabilidades, mas menos exigente do que a prova além de qualquer dúvida razoável, ou seja, quanto mais grave for a alegação, mais convincente deve ser a prova para que essa alegação seja considerada comprovada -, vale transcrever dois itens da ementa do julgado do CAS, que bem elucidam o que se deve considerar para atingir esse critério no contexto de manipulação de resultados:
1. In match-fixing cases the burden of proof regarding alleged involvement in match manipulation and/or any other breach of the principles of fair play lies with the governing body of the respective sport. Furthermore, CAS jurisprudence has constantly upheld the standard of proof in match-fixing cases to be the one of comfortable satisfaction, defined as being greater than a mere balance of probability, but less than proof beyond a reasonable doubt. While applying this standard of proof in match-fixing cases, one should bear in mind “the seriousness of the allegation which is made” and that most likely any corruption and manipulation is “by its nature, concealed as the parties involved will seek to use the evasive means to ensure that they leave no trail of their wrongdoings”.
2. The fact that a match, based on specific evidence, is considered manipulated for betting purposes is only the first step in deciding whether a certain player or a certain club is to be considered with comfortable satisfaction directly or indirectly involved in such match manipulation. It is crucial whether it is possible, on the basis of the player’s/clubs’ conduct on the pitch during the match or otherwise, to conclude that the player/club was involved in manipulation and/or in any other way breached the principles of fair play. Put differently, a link has to be established between the match manipulation and the player/club and/or a breach of the principles of fair play committed by the player or club. The sole match report of a betting fraud detection system is not in itself, and without further documentation or evidence, sufficient to establish such link. In this context, the fact that a team captain, due to its influence within the squad, is often targeted by match-fixers or plays a crucial role in executing the match-manipulation plan does not in itself provide a sufficient basis for assuming, without the production of further evidence in support thereof, that the captain of a team participating in a manipulated match is automatically, as a matter of course, involved in the manipulation of the match or in any other way breaches the principles of fair play.
O caso Penkovskis reforça que o combate à corrupção no esporte deve ser feito, ao mesmo tempo, com rigor e Justiça. O standard probatório da "satisfação confortável" é um mecanismo poderoso, mas que exige cuidado metodológico. A decisão do CAS aqui examinada, ao anular uma sanção disciplinar mal fundamentada, protege não apenas um jogador, mas a credibilidade do próprio sistema de Justiça esportiva.
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1 Vide o Código de Ética da CBF (versão 2017), que determina que a “prática do futebol é incompatível com a manipulação de resultados entre os competidores” (art. 2º, iv), que veda “manipulação de resultados e dopagem, ou qualquer outro meio que atente contra o resultado desportivo ou sua integridade” (art. 6º, xii), que impõe o dever de denunciar “quaisquer situações que possam indicar suspeita de manipulação de resultados, mesmo que não consumadas” (art. 8º, ii) e proíbe, por fim, o oferecimento de “vantagem econômica com vistas a manipular o resultado de jogos ou de competições” (art. 19). Ademais, a legislação brasileira também se preocupa, com acerto inegável, com o combate à manipulação. Tanto é assim que a Lei Geral do Esporte tipifica como crime, em seus arts. 198, 199 e 200, respectivamente, (i) “solicitar ou aceitar, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem patrimonial ou não patrimonial para qualquer ato ou omissão destinado a alterar ou falsear o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado”; (ii) “dar ou prometer vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim de alterar ou falsear o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado”; e (iii) “fraudar, por qualquer meio, ou contribuir para que se fraude, de qualquer forma, o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado”. O CBJD vai nessa mesma linha, sob o viés ético-disciplinar.
2 Vide o Grupo Especial de Trabalho sobre manipulação em partidas de futebol, criado pelo eminente Procurador Geral da Justiça Desportiva, Dr. Paulo Dantas, através da Portaria n. 2, de 2024.