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Quem tirou Deus do Direito?

Análise histórica do Direito Natural revela o afastamento da teologia e seus impactos na teoria jurídica, ética e política contemporâneas ocidentais.

28/7/2025

Quem se debruça sobre o estudo do Direito, começando pelo Direito Natural, inevitavelmente começa a se perguntar: como é que tantos pensadores deste campo do direito tiveram concepções tão díspares acerca de um tema que, a princípio, deveria ter mais laços comuns? Afinal, o que é o Direito Natural? Sua gênese está em Deus ou no pensamento humano?

Começando com Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.) (Ética a Nicômaco, Política), vemos que ele introduziu a ideia de uma justiça natural (dikaion physikon), distinta da justiça legal (nomikon), acreditando que a natureza teria uma ordem racional, e que o direito deveria buscá-la. O Direito Natural, para ele, era baseado na teleologia: tudo tem um fim, e a justiça é aquilo que realiza o fim do ser humano (a virtude). A forma essencial do homem seria a expressão de uma natureza racional (alma). Mas não se fala em Deus ou deuses como gerador(es) do Direito Natural.

Passando para Cícero (106 a.C. - 43 a.C.) (De Re Publica, De Legibus), vemos que ele uniu o pensamento grego com o romano: o Direito Natural é eterno, imutável e universal, baseado na razão. Ele defendia que a lei verdadeira é a reta razão conforme a natureza, e que leis humanas contrárias à razão são inválidas. Para ele igualmente, o Direito Natural é um reflexo da ordem cósmica e moral. Só que nessa palavra “cósmica” reside indelevelmente uma concepção panteísta da divindade. Para Cícero, o Direito Natural existe objetivamente, como parte da ordem do cosmos - ou seja, não é inventado, mas sim reconhecido. E essa ordem é racional por natureza (logos), e os seres humanos, ao participarem dessa razão, podem conhecê-la por meio da sua própria racionalidade. Parece não haver uma clareza sobre a participação de Deus na ignição do Direito Natural que é experimentado pelo ser humano, antes mesmo da positivação.

Entretanto, com Santo Tomás de Aquino (1225–1274) (Suma Teológica), a questão começa a receber linhas diferentes. Ele sistematizou o Direito Natural dentro da tradição cristã e da filosofia aristotélica, estabelecendo uma hierarquia das leis: 1) Lei eterna (razão divina); 2) Lei natural (participação racional do homem na lei eterna); 3) Lei humana (derivada da natural); 4) Lei divina revelada (como os Dez Mandamentos). Segundo Santo Tomás, o Direito Natural é acessível pela razão, mesmo sem fé. Mas isso não impede concluir-se que, para Santo Tomás, o Direito Natural vem de Deus. Ele afirma que toda ordem da criação deriva da lei eterna - que é a razão divina que governa o universo. O Direito Natural é a participação da criatura racional na lei eterna. Portanto, Deus é a fonte do Direito Natural."Lex naturalis nihil aliud est quam participatio legis aeternae in rationali creatura." (“A lei natural nada mais é do que a participação da lei eterna pela criatura racional”) - Suma Teológica, I-II, q. 91, a. 2.

A influência de Santo Tomás de Aquino sobre a tradição do Direito Natural foi enorme, duradoura e estrutural, a ponto de moldar séculos de pensamento jurídico, moral, político e teológico no Ocidente. Ele integrou razão e fé, conseguindo sistematizar a filosofia aristotélica com a teologia cristã. Isso deu ao Direito Natural uma base racional, mas também teológica, tornando-o aceito tanto por filósofos quanto por teólogos e juristas. Ele defendeu que há um conjunto de princípios morais universais, inscritos na própria natureza humana, que podem ser conhecidos pela razão. Isso serviu como antídoto ao relativismo moral e justificativa para leis justas. O tomismo foi utilizado na doutrina oficial da Igreja Católica (especialmente a partir do Concílio de Trento e reforçado por Leão XIII com a encíclica Aeterni Patris). E os juristas medievais e renascentistas, e depois os teóricos escolásticos ibéricos (como Suárez e Vitoria), seguiram fortemente suas ideias.

Santo Tomás inspirou formulações no Direito Canônico, pois a base moral das normas eclesiásticas está profundamente enraizada na teoria de Tomás. Quanto ao contrato social, autores como Grotius, Pufendorf e Locke foram influenciados pela ideia de leis naturais que precedem o Estado. Já quanto à Declaração dos Direitos Humanos, o reconhecimento de direitos naturais universais encontra em Tomás um fundamento filosófico clássico. Por fim, influenciou o direito contemporâneo, com a ideia de que há princípios de justiça superiores à lei positiva, que ainda ecoam no direito constitucional, na bioética e nos direitos fundamentais.

A despeito da força do pensamento tomista, vejamos mais alguns autores importantes do Direito Natural.

Para Hugo Grotius (1583–1645) (De Jure Belli ac Pacis (Do Direito da Guerra e da Paz), considerado o “pai do Direito Internacional”, baseando-se em fundamentos do Direito Natural, o Direito Natural existiria mesmo se Deus não existisse ("etsi Deus non daretur") - ou seja, tem validade racional autônoma. Ele defende uma ordem jurídica baseada em normas universais da razão prática e convivência humana.

A curiosidade começa aqui: como a influência de Santo Tomás foi dando lugar, séculos depois, a um pensamento segundo o qual Deus não estaria mais “participando” da gênese do Direito Natural? Buscaremos esta resposta mais adiante.

Por fim, John Locke (1632-1704) (Segundo Tratado sobre o Governo Civil), que é considerado o fundador do jusnaturalismo moderno liberal, defendia que os homens nascem com direitos naturais inalienáveis: à vida, à liberdade e à propriedade, e que o governo só é legítimo se proteger esses direitos - ideia que influenciou as revoluções americana e francesa. Fundamentou o contrato social na preservação dos direitos naturais. No Segundo Tratado sobre o Governo Civil (1690), Locke sustenta que “A lei da natureza, que é razão, ensina a toda a humanidade, que todos os homens são iguais e independentes, e que ninguém deve prejudicar outro na vida, liberdade ou propriedade (§6)”. À primeira vista, isso parece puramente racional - mas veja o que ele diz logo adiante: “Pois os homens, sendo todos obra de um criador onipotente e infinitamente sábio, [...] são propriedade de Deus, seu criador.” (§6, continuação).Embora Locke fundamente de certo modo o Direito Natural em Deus, ele não é lembrado primariamente como um pensador religioso, e sim como um filósofo político e jusnaturalista moderno.

Ocorre que, nessa época, nos séculos dezessete e dezoito, a compreensão do Direito Natural enquanto fruto de Deus já estava passando por uma transformação cujos efeitos ecoariam até o presente dia.

Ao estudar o Direito Natural, vi-me instigado pela falta de comunhão entre os pensadores do Direito Natural acerca do conceito deste mesmo, e comecei a investigar de que forma Deus, que era tão presente na formulação desta área do Direito a partir do século XIII, foi aos poucos sendo deixado de lado pelos estudiosos ditos “intelectuais”.

Na busca por respostas, deparei-me com a majestosa obra do Desembargador Ricardo Dip, Os Direitos Humanos e o Direito Natural - de como o homem Imago Dei se tornou Imago Hominis (Prefácio de Miguel Ayuso e Posfácio de Marcus Boeira. Coleção Documentos Jurídicos, II. Livraria Resistência Cultural Editora. São Luís, Maranhão, 2022). Simplesmente ele reúne todos os elementos técnicos que eu buscava para a percepção do que historicamente aconteceu com a percepção de Deus na análise e estudo do Direito Natural.

Para o renomado autor, em linha oposta ao paradigma dominante, o jusnaturalismo tradicional “enfrenta a incômoda busca de uma vigência política. De comum vinculada ao cristianismo, já nisso encontra fortíssimas resistências, embora tenha a seu favor o sistema e o método de uma filosofia consistente e, no terreno histórico, possa testemunhar sucessos fáticos e doutrinais”.1

O doutor Dip não tem dúvidas: é no plano político atual que reside sabidamente o obstáculo de vigência para o jusnaturalismo tradicional, onde o embate dos amantes do Direito Natural é contra a contínua formulação do descrédito da doutrina, da história, da moral e dos pensadores cristãos2.

Nesse passo, os juristas contemporâneos valem-se da “negação prática da ordem legislativa universal, vale dizer, o desprezo da asserção jusnaturalista de que Deus é o princípio externo que move para o bem, instruindo pela “lei” e ajudando pela graça. Se não existe uma Lei Eterna, dá-se o estabelecimento de um “poder absoluto” em causas segundas, “formais” [...] ou “materiais” (a raça, com Gumplowicz, Chamberlain e Gobineau; a classe, com Marx; os consentimentos, com Hobbes, Locke e Rousseau). O conceito de Lei Eterna não surgiu diretamente na teologia, nem esta foi buscá-lo nas Escrituras. Já estava em Heráclito (sécs. VI-V a.C.), em que se anuncia a ideia de uma lei sempiterna - nomos eimarmene -, uma “lei divina”, “fogo eterno”, da “razão sempre existente”, da “lei universal”, da “razão comum”3.

Prossegue o autor: “Para S. Tomás de Aquino, a “razão mesma do governo das coisas, em Deus, que é o regedor do Universo, tem natureza de lei”; a Lei Eterna “não é mais que a razão da sabedoria divina, enquanto diretiva de todos os atos e moções”; “a razão da divina sabedoria”; “a razão do governo divino” (ratio divinae gubernationis); “ razão da Divina Providência” (ratio divinae providentiae). Enfim, a lei Eterna é a summa ratio. Para o jusnaturalismo tradicional, à ideia de creatio liga-se a de gubernatio (direção de todas as coisas a seu fim), de modo que ao conceito de Deus Creator se liga a noção de Deus Gubernator - de sorte que o universo não só foi criado por um Ser racional, senão que o Universo é também razoável, i.e., tem um sentido, um fim racional. Disso deriva que a lei eterna é a mesma ratio divina, enquanto dirige todas as coisas a seu fim [...]. A lei eterna é, assim, o princípio da Providência Divina”4.

Em sucessão de eventos históricos, os sistemas religiosos e morais que dantes serviam para ordenar ou estruturar as sociedades ficaram paulatinamente circunscritos à esfera privada atual, onde o chamado “espaço público” seria algo “neutro”, fazendo com que as sociedades não sejam capazes de enunciar os valores fundamentais que poderiam ser compartilhados por todos.

Segundo o desembargador, a ideia atual de direitos humanos não possuiu o mesmo caráter de universalidade que se encontra no judaísmo (descendência humana de um só casal primigênio, a pessoalidade do Deus criador) e no cristianismo (Deus se faz homem, a cujo sacrifício se atribui a centralidade da salvação para a qual se vocacionam todos os homens). “As noções de “gênero humano” e de “dignidade da humanidade” da nova era são cosmopolitas e não universais. Elas se cifram à ideia do cidadão do mundo, que supera as fronteiras de um locus geográfico, (desterritorialização) e de uma polis definida (extra-territorialidade), subordinando-se ao cosmos, à maneira tendencial de uma polis única e de uma politeia global”. “É fácil compreender  oquanto de atração massiva não tem uma vocação do homem a ser um deus, designadamente quando, no desafio de “direitos”, promete-se, na terra, a antiga felicidade do Céu”. “Um novo paradigma, pois, esse “único universal e indivisível”, é o gênero humano, como o diz repetidamente Antonio Truyol Serra, noção-base para a afirmação da “dignidade da humanidade”, conceito que, abarando - com simultânea superação - o da racionalista “dignidade do homem”, se aclima à ideia já de reginalização e, além disso, muito mais, à de um possível futuro governo mundial5”.

A lucidez com que Dip percebe os efeitos da retirada de Deus do âmago do Direito Natural permite-nos inclusive antever a possibilidade de criação de um Estado totalitário que nem Orwell ou Huxley sequer sonharam. Quiçá, algumas poucas mentes jusnaturalistas contemporâneas que detêm o conhecimento desse processo histórico seriam capazes de vislumbrar esse futuro. 

E conclui: “Uma breve excursão pelo Magistério da Igreja Católica, p. ex., permitirá recolher esse contraste substancial, desde a primeira afirmação do Papa Pio VI, no sentido de que os direitos humanos da Declaração Francesa de 1789 são “contrari alla religione e alla societá”, até chegar às sucessivas críticas constantes da Quanta Cura e do Syllabus de Pio IX, às objeções de Leão XIII dirigidas à civilização moderna, à doutrina contramodernista de S. Pio X – designadamente na Pascendi e na condenação ao movimento do Sillon -, a Pio XI e, em meados do século XX, às reiteradas afirmações do Papa Pio XII, como se pode aferir, a título ilustrativo, desta passagem da Alocução dirigida aos jurisconsultos italianos, em 6 de novembro de 1949: “(...) l'errore del nazionalismo moderno è consistito (...) nella pretesa di voler costruire el sistema dei diritti umani (...) considerando la natura dell'uomo como un ente per sé stante, al quale manchi qualsiasi riferimento ad un Essere superiore, dalla cui volontà creatrice e ordinatrice dipende nell'essenza e nell'azione6.

Citando diversos autores e estudiosos do Direito Natural, Ricardo Dip teceu, assim, uma obra pela qual resta tecnicamente e historicamente comprovado que, se para o cristianismo, Deus se fez homem, para o moderno e contemporâneo racionalismo dos direitos humanos é o homem que se faz deus.

O efeito prático dessa reorganização de fatores leva à direção na qual o objetivo central da vida jurídico-estatal passa a ser a contemplação dos direitos chamados essenciais, sem que haja necessidade de referir-se àquilo que o cristianismo protege como sendo o maior interesse de Deus, ou seja, a salvação das almas, com base não apenas no seguimento de Jesus Cristo, mas pela simples observação da ordem universal que tem Deus como Criador e fim último de todas as criaturas, e dentro da contemplação desta ordem é possível aprender sobre a aplicação da verdadeira Justiça.

Em suma, o debate sobre o jusnaturalismo, se reduzido ao racionalismo, evoca correntes de pensamento dentre as quais se posicionaram, inclusive, estudiosos que eram diretamente e frontalmente contra qualquer traço de espiritualidade mística, relegando o estudo ao cerne do empírico ou possivelmente mensurável.

Tal reducionismo vem conduzindo paulatinamente as diversas sociedades para a aceitação de um futuro governo único mundial que, ao contrário do pensamento utópico de alguns jusnaturalistas e mesmo positivistas modernos, não terá o ser humano como centro do Direito Natural, mas fará da humanidade uma escrava da sua própria pretensão de buscar viver como se Deus não existisse. E essa pretensão custará caro.

Sem Deus no pensar do Direito, resta o esforço humano limitado. Com Deus, a verdadeira essência dos amplos e diversos significados da palavra Jus reencontra sua própria finalidade ontológica, sua teleologia mais imanente, a fonte da correção de todas as suas reações em cadeia: realmente dar a cada um o que é seu, e a Deus a primazia de tudo. Naturalmente.

_______

1 DIP, Ricardo. Os Direitos Humanos e o Direito Natural – de como o homem Imago Dei se tornou Imago Hominis (Prefácio de Miguel Ayuso e Posfácio de Marcus Boeira). Coleção Documentos Jurídicos, II. Livraria Resistência Cultural Editora. São Luís, Maranhão, 2022, p. 48.

2 Ob. Cit., p. 53.

3 Ob. Cit., p. 54

4 Ob. Cit., Pp. 55/56.

5 Ob. Cit., Pp. 81/85.

6 Ob. Cit., Pp. 87/88.

Dávio Antonio Prado Zarzana Júnior
Sócio de Gueller e Vidutto Sociedade de Advogados. Presidente da Comissão de Direito Natural e das Relações Sociais da 116ª Subseção da OAB/SP.

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