Migalhas de Peso

Demarcação de terras indígenas e o marco temporal: Entre a folha de papel e a força normativa

O artigo desmonta a tese do marco temporal e defende a força normativa do art. 231 da Constituição, mostrando como interesses políticos tentam esvaziar os direitos indígenas à terra.

28/7/2025

Introdução

Os conflitos políticos atinentes à demarcação de terras indígenas no Brasil lamentavelmente escancaram a dificuldade de concretização dos direitos fundamentais albergados na Constituição de 1988, a qual reafirmou o direito originário dos povos indígenas sobre as terras por eles tradicionalmente ocupadas (art. 231). Recentemente (28/5/25), o plenário do Senado Federal, em retumbante retrocesso, aprovou o PDL 717/24, que suspende decretos do Poder Executivo: a) acerca do procedimento demarcatório geral (art. 2º do decreto 1.775, de 8/1/1996)1; que demarcavam terras indígenas no Estado de Santa Catarina (decreto 12.289, de 2024, que demarca Toldo Imbu, em Abelardo Luz/SC; e decreto 12.290, de 2024, que demarca Morro dos Cavalos, em Palhoça/SC). Segundo justificativa de seu proponente, o senador Espiridião Amin (PP/SC), integrante do Centrão, os decretos referidos colidem com a lei 14.701, de 20/10/2023 - “lei do marco temporal”2.

A aprovação em plenário deu-se a despeito da inconstitucionalidade (quanto aos decretos demarcatórios em SC) apontada pelo relator da matéria na CCJ - Comissão de Constituição e Justiça, senador Alessandro Vieira (MDB/SE), para quem o controle concreto de decretos, nos termos do direito constitucional pátrio, cabe somente ao Poder Judiciário. Por outro lado, a sustação foi justificada como “resposta necessária e juridicamente sólida ao abuso normativo” pelo senador oposicionista Sergio Moro (União/PR), que acusou o STF de paralisar a aplicação da lei do marco temporal. Tendo sido aprovado no Senado, o PDL seguiu para escrutínio na Câmara dos Deputados3.

Trata-se de uma postura sistemática de malbaratamento dos direitos dos povos indígenas às terras, arquitetada sob interesses escusos, por parlamentares (da chamada “bancada ruralista”) que se comportam como prepostos dos latifundiários, ruralistas, mineradores e garimpeiros, a quem interessa o descumprimento da norma constitucional do art. 231, ainda que amparados por modificações legislativas em sua maior parte inconstitucionais. No campo legislativo, é digna de nota a já referida lei do marco temporal, plasmada na tese jurídica segundo a qual os direitos dos povos indígenas às terras cingem-se às efetivamente ocupadas, física e permanentemente, na data da promulgação da Constituição: 5/10/1988. Para os partidários dessa tese, o marco temporal traria segurança jurídica para os proprietários de terras, ao mesmo tempo que impediria uma temida ampliação das terras demarcáveis. Defensores dos direitos humanos dos povos indígenas contra-argumentam4 que se trata de uma tese injusta, inconstitucional e colonialista, na medida em que desconsidera que, antes de 1988, muitos povos haviam sido expulsos ou fugiram da violência perpetrada em seus territórios.

Trazendo a discussão para o campo jurídico, há que constar, antes de tudo, que, como detalharei adiante, o art. 231 possui eficácia plena e efeito imediato, de tal sorte que não cabe ao legislador restringir os direitos fundamentais de essência constitucional proclamados pelo poder constituinte originário, acrescentando barreiras (datas arbitrariamente escolhidas) para seu exercício. O STF confirmou em setembro de 2023, com lucidez, essa obviedade jurídica. No entanto, recalcitrante, o Congresso Nacional, dominado pelos interesses patrimonialistas do Centrão, aprovou, logo após a decisão do STF, a já mencionada lei do marco temporal, em clara reação à jurisprudência garantista do tribunal. Naturalmente, o tema retornou ao STF, a fim de que seja confirmada a flagrante inconstitucionalidade da lei.

Quero questionar, à luz da controvérsia do marco temporal, em que medida as disposições constitucionais que garantem os direitos originários dos povos indígenas às suas terras possuem força normativa, ou em que medida não passam de inscrições estéreis em uma mera folha de papel. Noutras palavras: há normatividade no art. 231, ou devemos compreendê- lo como um simples joguete nas mãos do legislador, a ter sua normatividade esvaziada ao bel-prazer do Centrão? Na ciência do direito constitucional, tal questão está no cerne da célebre teoria sociológica constitucional do político social-democrata alemão Ferdinand Lassalle (1825-1864), bem como de sua respectiva crítica, não menos célebre, desenvolvida pelo jurista alemão Konrad Hesse (1919-2005). Desenvolverei este ponto na seção 1.

Às discussões sobre a tese jurídica do marco temporal, dedicarei a seção 3, onde busco sintetizar criticamente o debate nas circunscrições do STF (subseção 3.1) e do Congresso Nacional (subseção 3.2). Preliminarmente, contudo, discutirei os direitos dos povos indígenas às terras tradicionais tal como instituídos pela Constituição de 1988 (seção 2). Ao final, espero convencer de que as prescrições do art. 231 devem “sair do papel” e conformar a realidade social, no que tange especialmente aos direitos indígenas, pela força irradiadora das normas constitucionais, à qual o Estado Democrático de Direito brasileiro há de se conformar - assim o é, porque nossa Constituição reveste-se de incontestável força normativa. Pretextos escorados em teses mirabolantes e sofismáveis, como a do marco temporal, apenas expõem as tentativas das forças reacionárias de obstruírem o potencial transformador dos direitos sociais, ao tentar reduzi-los a simples textos sem aplicabilidade e eficácia. Vá-se aos argumentos.

Antonio Oneildo Ferreira
Advogado. Presidente da OAB/RR no período de 2001 a 2012. Diretor-Tesoureiro do CFOAB no período de 2013 a 2019.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Autonomia patrimonial e seus limites: A desconsideração da personalidade jurídica nas holdings familiares

2/12/2025

Pirataria de sementes e o desafio da proteção tecnológica

2/12/2025

Você acha que é gordura? Pode ser lipedema - e não é estético

2/12/2025

Tem alguém assistindo? O que o relatório anual da Netflix mostra sobre comportamento da audiência para a comunicação jurídica

2/12/2025

Frankenstein - o que a ficção revela sobre a Bioética

2/12/2025