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A loteria da dor e a psicologização da Justiça

Na era da performance emocional, o Judiciário enfrenta o risco de banalizar o dano moral ao priorizar narrativas afetivas em vez de critérios jurídicos objetivos.

31/7/2025

Na era da performance emocional, o Judiciário brasileiro tem sido cada vez mais convocado a arbitrar não apenas conflitos jurídicos, mas frustrações íntimas. O dano moral, instituto nobre da responsabilidade civil, tem sofrido corrosão silenciosa ao ser apropriado como palco para a dramatização subjetiva de desconfortos cotidianos.

Esse fenômeno, que denomino de “loteria da dor”, consiste na transformação do processo judicial em arena de validação simbólica de narrativas afetivas. Não raro, o sucesso da demanda depende menos da gravidade do fato e mais da eloquência da narrativa do autor. A dor deixa de ser elemento aferível juridicamente e passa a operar como capital simbólico.

A consequência é um duplo risco: de um lado, a banalização da reparação extrapatrimonial, com decisões que premiam abalos presumidos e desprovidos de densidade fática; de outro, a exclusão silenciosa de sujeitos que sofrem, mas não performam.

O Judiciário, assim, abandona a toga e assume o divã, convertendo-se em instância terapêutica de acolhimento emocional.

Esse deslocamento do técnico para o afetivo além de comprometer a função contramajoritária da magistratura, também desvirtua a lógica objetiva da responsabilidade civil.

É preciso resgatar a centralidade da prova, da causalidade e da proporcionalidade na valoração do dano moral. Reconhecer o sofrimento legítimo não é o mesmo que recompensar o incômodo ordinário. A Justiça deve ser sensível, sim - mas jamais colonizada emocionalmente.

Litigância não é catarse. Dor não é bilhete premiado. E o processo civil não pode ser palco de encenações subjetivas. O acesso à Justiça precisa ser, antes de tudo, acesso à racionalidade jurídica.

Samara Camargo
Advogada especializada em contencioso cível estratégico. Pós-graduada em Direito Contratual e Processo Civil. Estuda a psicologização da Justiça e seus efeitos sobre o sistema de responsabilidade civil no Brasil.

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