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Advocacia criminal: O maior risco para a defesa pode ser o próprio cliente

A confiança entre cliente e advogado é pilar da defesa penal. Quando falha, compromete estratégias, mina a credibilidade e torna o processo vulnerável.

30/7/2025

Em nenhuma outra área do Direito o vínculo entre advogado e cliente é tão determinante quanto no penal. Não se trata de um dado processual, tampouco aparece nas sustentações orais ou nas petições. Mas está ali, silencioso e decisivo, em cada linha escrita, em cada escolha de estratégia, em cada momento diante do juiz. Quando essa confiança falha, a defesa inteira pode ruir. E não são raros os casos em que advogados abandonam causas após descobrirem pela imprensa fatos relevantes que não lhes foram comunicados, ou quando decisões tomadas pelos clientes, sem alinhamento prévio, tornam a permanência ética ou técnica simplesmente inviável. No Direito Penal, confiança não é detalhe, é estrutura.

É comum ouvir que o advogado criminalista deve conhecer profundamente os autos do processo, os dispositivos legais e a jurisprudência aplicável. Mas há um outro tipo de conhecimento, muitas vezes mais decisivo: o conhecimento do caso real, tal como efetivamente ocorreu. A verdade processual, que se forma a partir dos elementos formalmente inseridos nos autos, nem sempre coincide com o que de fato aconteceu. E é função da defesa aproximar essas duas dimensões tanto quanto possível. Isso só é viável quando o cliente está disposto a dizer a verdade - somente a verdade - ao seu defensor.

No entanto, é justamente aí que mora o maior dos riscos. Muitos clientes, mesmo os mais instruídos, experientes e bem assessorados, temem confiar plenamente no seu advogado. Por receio de julgamento moral, vergonha diante da gravidade dos fatos ou simples impulso de autopreservação, acabam omitindo informações ou até mentindo deliberadamente sobre detalhes relevantes do caso. Em vez de reconhecerem que o advogado é seu único aliado processual, projetam nele a mesma desconfiança que sentem das instituições que os investigam.

Essa dinâmica, por mais compreensível que possa parecer, pode ser devastadora no plano jurídico. É comum que a defesa inicie a construção de sua estratégia a partir de uma narrativa falsa do cliente, para só depois dar de cara com provas que as contradizem nos autos. Se essa narrativa estiver baseada em omissões ou falsidades, a estratégia pode ser armada sobre alicerces frágeis. Quando o processo evolui e as provas desmentem o que foi relatado, a credibilidade da defesa acaba completamente. Com ela, as chances de um desfecho minimamente favorável se reduzem drasticamente.

O cenário é ainda mais delicado quando se trata de casos de alta complexidade na advocacia criminal. Nesse ambiente, os processos são densos, os relatórios periciais extensos, as quebras de sigilo são recorrentes e as autoridades que investigam são altamente qualificadas. A atuação da Polícia Federal, da Receita Federal e do Ministério Público Federal frequentemente revela um grau de tecnicidade e detalhamento que impõe à defesa um patamar igualmente elevado. Não há espaço, nesse contexto, para improvisos ou surpresas causadas por versões mal contadas.

Um bom exemplo é o das ações penais que derivam de fiscalizações tributárias. A Receita Federal, ao identificar indícios de crimes fiscais ou de lavagem de capitais, emite uma representação fiscal para fins penais que é enviada ao Ministério Público. A partir desse ponto, o que antes era uma mera dívida tributária passa a ser uma persecução penal. Em muitos desses casos, com valores vultosos envolvidos, as acusações podem ganhar contornos de organização criminosa, especialmente quando há estruturas societárias complexas e movimentações patrimoniais relevantes. Imagine, então, que o cliente não compartilha todos os documentos com sua defesa, omitindo detalhes sobre sua estrutura empresarial ou mesmo subestimando os fatos investigados. Caso as comprovações sejam apresentadas adiante nos autos do processo, a linha de defesa é totalmente comprometida.

Há, ainda, um fator adicional a ser considerado: o perfil do cliente de direito penal econômico. Não se trata, via de regra, de alguém alheio à realidade jurídica. São empresários, executivos, agentes públicos e profissionais liberais com alta escolaridade, familiarizados com os conceitos jurídicos básicos e que muitas vezes detêm conhecimento técnico superior ao do advogado no que diz respeito ao funcionamento interno de suas operações. Isso torna a atuação defensiva ainda mais desafiadora, pois é necessário, ao mesmo tempo, entender profundamente o caso concreto e demonstrar ao cliente que a construção da estratégia depende de uma relação de confiança plena e bilateral.

Não se trata apenas de ética ou dever profissional, mas também técnica. Uma defesa eficiente pressupõe um advogado que saiba tudo sobre o caso, inclusive aquilo que ainda não está nos autos. Quando isso não acontece, é comum que o processo seja marcado por erros de avaliação, pedidos indevidos e estratégias incompatíveis com as provas. Há casos em que uma linha de defesa promissora se perde por completo após a juntada de uma nova prova ou o depoimento de uma testemunha que contradiz frontalmente a versão sustentada pela defesa. Nesses momentos, a credibilidade do advogado diante do juízo também pode ruir, o que compromete até mesmo as possibilidades futuras de negociação, acordo ou até mesmo de uma condenação mais branda.

Diante desse panorama, o papel do advogado vai além da técnica jurídica. É também pedagógico, relacional e até psicológico. Desde os primeiros contatos, é preciso construir um ambiente de confiança, mostrar ao cliente que não há espaço para julgamentos morais e que o compromisso do advogado é com a legalidade, a ampla defesa e o devido processo legal. Nos casos mais sensíveis, é recomendável formalizar decisões estratégicas em documentos assinados pelo cliente, como termos de responsabilidade e ciência. Isso protege a atuação da defesa e também conscientiza o cliente sobre as consequências de suas escolhas.

Ao contrário do que se poderia imaginar, portanto, o maior risco à atuação da defesa não está necessariamente no rigor das provas ou na agressividade da acusação. Muitas vezes, está dentro do próprio gabinete do advogado, quando o cliente decide não colaborar ou adota uma postura defensiva diante de quem deveria ser seu maior aliado. O processo penal não admite improvisos e a confiança, nesse contexto, não é um mero detalhe.

André Coura
Graduado e Mestre em Direito pela Universidade FUMEC (MG). Lecionou as disciplinas de Direito Penal, Processo Penal e prática jurídico-penal em diversos cursos de graduação e pós-graduação em Direito. Advogado com intensa atuação em investigações e processos criminais de alta complexidade, especialmente, perante os Tribunais Superiores e em grandes operações criminais envolvendo a matéria penal econômica, financeira e empresarial.

Antônio Silvério Neto
Atua há mais de oito anos na área criminal, com foco no consultivo e contencioso criminal, notadamente em casos de grande complexidade, principalmente operações dos órgãos policiais envolvendo criminalidade financeira. Especializado em manejo de Habeas Corpus e de recursos perante os Tribunais Superiores. Consultor jurídico para compliance criminal empresarial e ESG. Graduado em Direito e pós-graduado em Direito Penal e criminologia pela PUC-RS.

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