O papel do magistrado, o controle de convencionalidade e a lei Maria da Penha: Uma leitura doutrinária
O Controle de Convencionalidade consiste na análise da compatibilidade das normas internas com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro. Tal controle decorre do princípio da supremacia dos tratados internacionais de direitos humanos, especialmente aqueles ratificados sob o rito do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal, ou que, mesmo sem tal rito, gozam de status supralegal conforme a jurisprudência consolidada pelo STF.
O controle de convencionalidade foi intensamente desenvolvido pela Corte IDH - Corte Interamericana de Direitos Humanos, principalmente no caso Almonacid Arellano vs. Chile (2006), no qual se afirmou que todos os órgãos estatais - inclusive o Poder Judiciário - possuem o dever de exercer o controle de convencionalidade ex officio, ou seja, de ofício e em todas as fases do processo.
No ordenamento brasileiro, o controle de convencionalidade encontra respaldo no inciso n. II do art. 4º da Constituição Federal, que consagra a prevalência dos direitos humanos como fundamento das relações internacionais da República Federativa do Brasil. Além disso, o art. 5º, §§ 2º e 3º, reforça a abertura do sistema constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos.
A lei 11.340/06 (lei Maria da Penha) é um marco legislativo no combate à violência de gênero e foi criada, em grande medida, em atendimento às recomendações da CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no caso paradigmático Maria da Penha Maia Fernandes vs. Brasil (2001). Este caso evidenciou a omissão do Estado brasileiro na proteção eficaz das mulheres e a necessidade de medidas legislativas e políticas públicas para combater a violência doméstica e familiar.
A lei Maria da Penha, portanto, é uma resposta normativa que dialoga diretamente com as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil, especialmente as previstas na CEDAW - Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), instrumentos que orientam o controle de convencionalidade no tocante à proteção das mulheres.
O controle de convencionalidade reforça a validade e a necessidade das medidas diferenciadas previstas na lei Maria da Penha, mesmo diante de normas internas que poderiam, num primeiro olhar, parecer conflitantes, como o princípio da isonomia em sentido estrito. O equívoco hermenêutico de tratar desiguais de forma igual foi superado pela jurisprudência do STF, que reconheceu a constitucionalidade da lei Maria da Penha, especialmente na ADI 4424, em que se afirmou que a criação de mecanismos protetivos específicos para as mulheres não ofende o princípio da igualdade, mas o concretiza no plano material.
Qualquer tentativa de interpretação ou aplicação das normas internas que relativize a proteção diferenciada à mulher no âmbito doméstico poderá ser reputada incompatível com os tratados internacionais ratificados pelo Brasil e, portanto, poderá ser afastada por força do controle de convencionalidade.
O magistrado brasileiro tem o dever de aplicar o controle de convencionalidade de forma difusa e incidente, inclusive ex officio. No caso da lei Maria da Penha, isso significa que qualquer decisão que pretenda, por exemplo, condicionar a concessão de medidas protetivas à instauração de inquérito policial ou ação penal, ou mesmo conferir tratamento genérico à violência doméstica, desconsiderando as especificidades de gênero, poderá ser reputada incompatível com a Convenção de Belém do Pará e com os parâmetros internacionais de proteção dos direitos humanos.
O Tema 1.249 do STJ é exemplo de aplicação de controle de convencionalidade, pois reafirma que as medidas protetivas de urgência independem de pedido da vítima ou de inquérito policial, garantindo proteção imediata, em consonância com as obrigações internacionais de proteção. Assim, o descumprimento das obrigações internacionais, notadamente das normas de proteção da mulher previstas na CEDAW e na Convenção de Belém do Pará, pode ensejar a responsabilidade internacional do Estado brasileiro. O sistema interamericano exige dos Estados parte a adoção de medidas legislativas e administrativas que sejam eficazes na prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher.
Decisões judiciais que minimizem a aplicação da lei Maria da Penha ou que a interpretem de forma restritiva podem ser objeto de responsabilização internacional, além de constituírem afronta à supremacia dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro.
O Controle de Convencionalidade aplicado à lei Maria da Penha é não apenas um instrumento hermenêutico, mas um dever jurídico inafastável dos operadores do Direito, em especial do Poder Judiciário, para assegurar a efetividade dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no âmbito da proteção dos direitos humanos das mulheres. A interpretação e a aplicação da Lei Maria da Penha devem, necessariamente, ser realizadas em conformidade com as normas internacionais de proteção de gênero, sob pena de violação de direitos humanos e eventual responsabilização internacional do Estado.
Portanto, a lei Maria da Penha, quando analisada sob o prisma do controle de convencionalidade, é expressão do princípio da máxima proteção e da centralidade da dignidade da pessoa humana, constitucionalmente consagrada e internacionalmente reconhecida como núcleo axiológico do sistema jurídico.
O juiz como guardião da ordem jurídica convencional
O magistrado, no contexto contemporâneo, transcende a sua atuação como mero aplicador da lei em sentido estrito. O Estado Constitucional de Direito, fundado na prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II, da CF/88), impõe ao juiz a posição de garantidor da convencionalidade das normas e dos atos estatais, inclusive no âmbito infralegal. Por sinal, o controle de convencionalidade pode ser realizado ex officio como função e tarefa de qualquer autoridade pública na altura de suas competências, e não apenas por juízes ou tribunais, que sejam competentes, independentes, imparciais e estabelecidos anteriormente por lei.
Desde precedentes internacionais, consolidou-se a orientação de que todos os poderes públicos, e não apenas os tribunais constitucionais, devem realizar o controle de convencionalidade ex officio, em caráter difuso, independentemente de provocação das partes. Este entendimento foi integralmente assimilado pela doutrina pátria ao sustentar que o controle de convencionalidade constitui atividade inerente ao ofício judicante e independe de cláusula de reserva de jurisdição específica.
No Brasil, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), internalizada no decreto 678/1992 e a Convenção de Belém do Pará, internalizada no decreto 1.973/1996 impõe ao juiz o dever jurídico de compatibilizar a legislação interna, bem como os atos judiciais e administrativos, com o sistema interamericano de proteção. A omissão ou a resistência em aplicar o controle de convencionalidade pode resultar, inclusive, na responsabilidade internacional do Estado brasileiro, à luz da jurisprudência da Corte IDH, que reconhece o caráter objetivo da responsabilidade estatal por violação de direitos humanos, independentemente de dolo ou culpa dos agentes públicos. Portanto, o magistrado brasileiro não apenas pode, mas deve obrigatoriamente exercer o controle de convencionalidade como extensão do controle de legalidade e de constitucionalidade já tradicionalmente atribuídos ao Judiciário.
A lei Maria da Penha constitui verdadeira norma de diálogo direto com o sistema internacional de proteção de direitos humanos. Sua origem normativa é inseparável do caso Maria da Penha Maia Fernandes vs. Brasil (2001), que expôs a omissão estrutural do Estado brasileiro no combate à violência doméstica contra a mulher. Logo, qualquer atuação judicial que diminua, relativize ou condicione a aplicação das medidas previstas na lei Maria da Penha, sem considerar a densidade axiológica dos tratados internacionais, viola não apenas o ordenamento interno, mas também os compromissos internacionais solenemente assumidos pelo Brasil.
O magistrado deve, por imperativo funcional e normativo, realizar o controle de convencionalidade de forma difusa, especialmente quando está em jogo: (i) a concessão ou denegação de medidas protetivas de urgência (Tema 1.249 do STJ); (ii) a análise da aplicação de penas alternativas nos crimes de violência doméstica, e; (iii) a interpretação de normas processuais que possam, de forma indireta, retardar ou esvaziar a eficácia da tutela jurisdicional da vítima.
Deve interpretar suas disposições à luz da técnica de interpretação conforme os tratados internacionais de direitos humanos, observando: (i) o princípio da primazia da norma, que determina a prevalência da norma mais favorável à proteção da dignidade da vítima; (ii) o princípio da não discriminação, que exige tratamento diferenciado e protetivo à mulher em situação de violência; (iii) a efetividade dos direitos humanos, que impõe respostas estatais céleres, eficazes e protetivas.
Decisões judiciais que desconsideram esses princípios, ou que utilizam interpretações restritivas para inviabilizar a aplicação da lei, configuram grave afronta à convencionalidade e ao próprio núcleo de proteção constitucional da dignidade da pessoa humana, cabendo, a depender do caso, de agravamento de instrumento ao Tribunal de Justiça.
Ademais, o dever do juiz não se restringe à provocação das partes. A própria Corte Interamericana exige que o controle de convencionalidade seja exercido ex officio. Isso significa que: (i) o juiz pode e deve afastar a aplicação de normas infraconstitucionais que entrem em conflito com os tratados internacionais de direitos humanos, mesmo sem pedido das partes; (ii) o magistrado tem o dever de verificar a adequação das decisões proferidas em face das obrigações internacionais, com especial atenção às garantias de proteção das vítimas de violência doméstica.
O dever judicial de proteção integral (art. 227, CRFB/88) deve ser lido em consonância com os artigos escupidos na Convenção de Belém do Pará, que impõem a obrigação estatal de prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher por meio de mecanismos eficazes e céleres.
O descumprimento do dever de controle de convencionalidade pode implicar em dupla responsabilização do Estado brasileiro: (i) na esfera interna, por violação dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, igualdade material e proteção especial à mulher; (ii) na esfera internacional, por violação aos compromissos da Convenção de Belém do Pará e da CEDAW, conforme jurisprudência reiterada da Corte IDH.
Portanto, a atuação diligente e atenta do magistrado ao controle de convencionalidade não é mera faculdade interpretativa, mas imperativo funcional e de lealdade à ordem jurídica internacional, sob pena de violar frontalmente a doutrina dos direitos humanos incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro.
Considerações finais
O percurso traçado até aqui revela, de forma inequívoca, que o magistrado brasileiro ocupa posição central e inafastável na garantia da supremacia dos tratados internacionais de direitos humanos, especialmente no tocante à proteção das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. A lei Maria da Penha, mais do que um diploma normativo interno, é a materialização concreta dos compromissos internacionais solenemente assumidos pelo Estado brasileiro, seja no plano regional, pela Convenção de Belém do Pará, seja no plano universal, pela CEDAW.
O controle de convencionalidade, nesse contexto, não pode ser compreendido como um elemento acessório ou subsidiário da atividade jurisdicional. Pelo contrário, é uma atividade essencial e imperativa, de exercício ex officio, que incumbe diretamente ao juiz [e a todos os agentes públicos], o qual atua como agente de filtragem não apenas constitucional, mas também convencional da ordem jurídica. A jurisdição, neste espectro, é intrinsecamente aberta à proteção internacional dos direitos humanos e exige que o magistrado internalize, em sua prática diária, a densidade axiológica das normas convencionais.
No âmbito específico da lei Maria da Penha, o controle de convencionalidade é vetor interpretativo e força de concretização dos direitos fundamentais das mulheres, exigindo que o juiz promova a máxima proteção da vítima, interprete e aplique a lei de forma compatível com os tratados internacionais; atue de ofício, mesmo sem provocação das partes, na salvaguarda da dignidade da mulher, e; realize uma hermenêutica ampliativa e protetiva, jamais restritiva ou formalista.
Negar ou minimizar esse dever é negar a própria essência do Estado Democrático de Direito comprometido com os direitos humanos.
Diante disso, o magistrado, enquanto agente primordial do controle difuso de convencionalidade, tem o dever jurídico e funcional de assegurar a máxima efetividade da lei Maria da Penha como instrumento de concretização dos compromissos internacionais de proteção às mulheres, devendo exercer, de ofício e em todas as fases processuais, a compatibilidade normativa com os tratados internacionais de direitos humanos, sob pena de violação à dignidade da pessoa humana e de responsabilização internacional do Estado brasileiro.
Esta ideia não apenas sintetiza o arcabouço doutrinário e jurisprudencial aqui explorado, mas também projeta um dever ativo, contínuo e inafastável ao magistrado contemporâneo, cuja atuação se encontra irrevogavelmente vinculada ao sistema global e regional de proteção dos direitos humanos.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal.
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário Oficial da União, Brasília, 8 ago. 2006.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Tema Repetitivo 1249. REsp 1.984.057/MG, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 17/05/2023.
CEDAW - Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, aprovada pelo Decreto nº 4.377/2002.
CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, promulgada pelo Decreto nº 1.973/1996.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso González y otras (“Campo Algodonero”) vs. México, Sentença de 16 de novembro de 2009.
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) – Decreto nº 678/1992