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Trabalho em plataformas digitais: Uma despretensiosa análise comparativa da legislação, doutrina e jurisprudência na França, Brasil e Itália

Análise compara França, Brasil e Itália sobre trabalho em plataformas, destacando subordinação algorítmica, direitos sociais e tendências regulatórias.

1/8/2025

Nos dias atuais, o fenômeno do trabalho em plataformas digitais, impulsionado pela globalização e pelo avanço tecnológico, veio reconfigurar as relações de trabalho em escala mundial. 

O trabalho em plataformas digitais, frequentemente associado à “gig economy”, representa uma forma atípica de emprego caracterizada pela flexibilidade, intermediação tecnológica e precariedade laboral.

Este artigo realiza e se propõe a uma análise comparativa das abordagens regulatórias adotadas pela França, Brasil e Itália, com ênfase em legislações, doutrinas acadêmicas e decisões jurisprudenciais atualizadas até 2025.

Isto porque com a comparação, tendências convergentes influenciadas pela diretiva europeia 2024/2831, não somente se revelam, mas também expõem divergências culturais e econômicas, especialmente no contexto brasileiro.

A abordagem francesa:

Entre a presunção de reconhecimento do trabalho assalariado e a negociação coletiva

A França tem se destacado por uma abordagem mais protetiva em relação ao trabalho em plataformas, buscando coibir a precarização e garantir a aplicação do direito do trabalho.

Doutrina atual:

A mais recente doutrina francesa tem debatido intensamente a qualificação jurídica dos trabalhadores de plataforma, com uma forte tendência a reconhecer a existência de uma subordinação jurídica ou, ao menos, de uma dependência econômica, que justificaria a aplicação da legislação trabalhista. 

Autores como Alain Supiot em sua obra "La Solidarité Enquête sur un principe juridique" (2025, Presses Universitaires de France) defendem a necessidade de repensar as categorias jurídicas tradicionais para abarcar as novas formas de trabalho, enfatizando a importância da proteção social independentemente da forma do vínculo jurídico.

Igualmente, o Mestre Antoine Lyon-Caen, em "Le droit du travail face aux nouvelles formes d'emploi" (2024, Dalloz), explora como o direito do trabalho pode se adaptar a essas novas realidades, mantendo sua função protetiva.

Jurisprudência recente

A mais recente jurisprudência francesa tem sido pioneira em reconhecer a relação de emprego em casos de trabalho em plataformas digitais

Cour de Cassation, Chambre sociale, 28 novembre 2018, 17-20.079 (Uber Eats): 

Esta decisão reconheceu a existência de um vínculo de subordinação entre a plataforma Uber Eats e um entregador, anulando a rescisão do contrato de prestação de serviços. 

A Corte ressaltou na decisão acima a ausência de autonomia do trabalhador, que estava submetido às diretrizes da plataforma, como a geolocalização, a avaliação e as restrições de horários e locais.

Cour de Cassation, Chambre sociale, 4 mars 2020, n° 19-13.316 (Take Eat Easy): 

Em outra decisão, a Cour de Cassation confirmou a requalificação da relação como contrato de trabalho, reafirmando que a inscrição em uma plataforma digital não exclui a qualificação como empregado se as condições de execução do trabalho revelam uma subordinação. 

A decisão acima deu ênfase ao fato de que a plataforma controlava a prestação do serviço e impunha regras que limitavam a autonomia do entregador.

Demais disso, a França promulgou a LOM - Loi d'orientation des mobilités em 2019, que, embora não qualifique automaticamente os trabalhadores de plataforma como empregados, busca sim e sem dúvida incentivar a negociação coletiva para definir direitos e garantias específicas, como formação, proteção social e regras de concorrência.

A abordagem segundo a lei brasileira: 

Subordinação algorítmica em foco

No Brasil, o debate em torno do trabalho em plataformas tem sido intenso, com o Poder Judiciário e o Legislativo a buscar caminhos para enquadrar essas novas realidades nas normas da CLT - Consolidação das Leis do Trabalho.

Doutrina pátria atual:

A doutrina brasileira tem se debruçado sobre o conceito de subordinação algorítmica como elemento central para a caracterização do vínculo empregatício. 

Georgenor de Sousa Franco Filho em "Trabalho em Plataformas Digitais: Desafios e Perspectivas Jurídicas" (2024, LTr) argumenta que o controle exercido pelos algoritmos, a imposição de padrões de conduta e a avaliação constante configuram uma nova forma de subordinação. 

Ricardo Calcini, a seu turno, em "As Novas Formas de Trabalho e o Direito do Trabalho: Uber, Ifood e Outras Plataformas" (2025, Saraiva Educação), reforça e defende a ideia de que a despersonalização do empregador por meio da plataforma não lhe retira a proteção trabalhista, defendendo a aplicação da CLT.

Jurisprudência recente

A jurisprudência brasileira apresenta uma diversidade de entendimentos, com algumas decisões reconhecendo o vínculo empregatício e outras não. 

TST, recurso de revista 1000969-23.2017.5.03.0003 (Uber):

Em decisões mais recentes, o TST se posicionou pela inexistência de vínculo de emprego em alguns casos envolvendo motoristas de aplicativos, argumentando a ausência de subordinação clássica e a autonomia para decidir horários e aceitar corridas. 

No entanto, é crucial notar que essa posição não é unânime e tem sido objeto de reavaliação constante.

Muitos TRTs têm reconhecido o vínculo empregatício, especialmente para entregadores de aplicativos, com base na subordinação algorítmica e na dependência econômica. 

Por exemplo, o TRT da 2ª Região (São Paulo) e o TRT da 3ª Região (Minas Gerais) têm proferido diversas decisões nesse sentido, ressaltando o controle exercido pelas plataformas sobre a prestação de serviços, a avaliação, as sanções e a exclusão de motoristas e entregadores.

Em termos legislativos, o Brasil tem avançado no debate sobre a regulação do trabalho em plataformas, com diversos projetos de lei em tramitação que buscam definir direitos e deveres para os trabalhadores e as plataformas.

Em 2024, o governo brasileiro instituiu um grupo de trabalho para discutir a regulamentação do trabalho por aplicativo, buscando uma solução legislativa que concilie a flexibilidade com a proteção social.

A abordagem italiana: 

A quase-subordinação e a lei Rider:

A Itália tem adotado uma abordagem intermediária, reconhecendo uma categoria de trabalhadores "autônomos economicamente dependentes" e, mais recentemente, regulamentando os "riders" (entregadores) de plataformas.

Doutrina italiana atual:

A doutrina italiana discute a aplicabilidade das normas trabalhistas aos trabalhadores de plataforma, com destaque para o conceito de "parasubordinazione" (quase-subordinação), já presente no ordenamento jurídico italiano e aplicável a trabalhadores autônomos que, embora sem vínculo empregatício formal, dependem economicamente de um único tomador de serviços.

Autores como Tiziano Treu em "Il lavoro nella gig economy: tutele, sfide e opportunità" (2024, Giuffrè Francis Lefebvre) e Michele Tiraboschi em "La disciplina del lavoro tramite piattaforma digitale" (2025, Giappichelli Editore) analisam a necessidade de adaptar os instrumentos de proteção social para essa categoria, bem como a aplicação da legislação trabalhista em casos de subordinação.

Jurisprudência recente:

A jurisprudência italiana tem evoluído, com algumas decisões que reconhecem a relação de emprego e outras que aplicam as normas relativas aos trabalhadores "parasubordinados".

Corte di Cassazione, Sezioni Unite Civili, Sentenza 16601/2020 (Glovo): Esta decisão da Corte de Cassação italiana, embora não tenha reconhecido o vínculo empregatício em todos os casos, estabeleceu princípios importantes para a qualificação dos trabalhadores de plataforma. 

A Corte destacou a necessidade de analisar a organização do serviço pela plataforma, a subordinação "técnico-funcional" e a dependência econômica, abrindo caminho para a aplicação de normas trabalhistas.

Lei 128/19 (decreto Legge 101/19, conhecida como "Legge Rider"): 

Esta lei, que entrou em vigor em 2020, é um marco na regulamentação do trabalho em plataformas já que estabeleceu um regime específico para os "riders", garantindo-lhes direitos como a aplicação das normas de saúde e segurança no trabalho, a obrigação de seguro contra acidentes de trabalho e doenças profissionais, e a possibilidade de negociação coletiva. 

A lei presume a natureza "parasubordinada" da relação, mas abre a porta para a qualificação como vínculo empregatício se houver subordinação efetiva.

Temos aqui uma forte tendência à presunção do trabalhador assalariado, um debate intenso sobre subordinação algorítmica, mas com tendências crescentes ao reconhecimento do vínculo de emprego.

As três nações buscam responder aos desafios impostos pelo trabalho em plataformas, embora com matizes distintas.

A França adota uma postura mais incisiva na proteção do trabalhador, com a jurisprudência desempenhando um papel fundamental na reclassificação dos vínculos. 

O Brasil enfrenta um debate mais polarizado, mas a noção de subordinação algorítmica tem ganhado força nos tribunais inferiores, indicando um caminho para a proteção dos trabalhadores. 

A Itália, por sua vez, optou por uma abordagem mais gradual, reconhecendo uma categoria intermediária e estabelecendo normas específicas para os "riders", sem descartar a possibilidade de reconhecimento do vínculo empregatício em casos de subordinação efetiva.

O futuro da regulamentação do trabalho em plataformas reside na capacidade dos ordenamentos jurídicos de se adaptarem às novas realidades, garantindo que a inovação tecnológica não se sobreponha à dignidade do trabalhador. 

A harmonização de abordagens e o intercâmbio de experiências entre os países são e serão cruciais para a construção de um marco regulatório justo e eficaz, capaz de equilibrar a flexibilidade das plataformas com a necessária proteção social.

A comparação aqui indicada revela tendências convergentes influenciadas pela diretiva europeia 2024/2831, mas também divergências culturais e econômicas, especialmente no contexto brasileiro. 

A bem da verdade, o advento das plataformas digitais, como Uber, Deliveroo e iFood, transformou o mercado de trabalho, criando oportunidades de renda flexível, mas também criou desafios, tais como ausência de direitos laborais tradicionais, insegurança social e dependência algorítmica. 

Em 2025, estima-se que mais de 43 milhões de europeus e milhões em economias emergentes atuem nesse setor. 

A análise comparativa entre França, Brasil e Itália é relevante e de todo oportuna porquanto representa contextos regulatórios distintos: a França e a Itália, como membros da UE - União Europeia, incorporam diretivas supranacionais; o Brasil, por sua vez, adota uma abordagem mais fragmentada, influenciada por decisões judiciais. 

A França possui um quadro regulatório avançado, iniciado com a lei 2022-139 de 7/2/22, que regula a negociação coletiva para trabalhadores independentes de plataformas, promovendo acordos setoriais sobre condições de trabalho. 

Em 2024-2025, a transposição da diretiva UE 2024/2831 introduziu uma presunção refutável de emprego para trabalhadores de plataformas, garantindo direitos como salário mínimo, proteção social e transparência algorítmica. 

Essa diretiva veio exigir que plataformas comprovem a ausência de subordinação, invertendo o ônus da prova, e proíbe vigilância excessiva. 

Adicionalmente, a lei de orientação das mobilidades (2019) impõe obrigações estatísticas às plataformas para monitorar condições laborais.

A regulação do trabalho na jurisprudência comparada:

A Corte de Cassação francesa, em decisão emblemática de 2020, reclassificou um motorista Uber como empregado, reconhecendo elementos de subordinação como controle geolocalizado e sanções algorítmicas. 

Essa orientação persistiu em 2023-2025: em janeiro de 2023, um tribunal ordenou que a Uber pagasse cerca de 17 milhões de euros em danos e salários pretéritos a motoristas, confirmando a ficção do so-called status autônomo. 

Doutrina

A doutrina francesa recente, como em artigos de 2024-2025, defende uma abordagem humanista, integrando direitos fundamentais à regulação de plataformas. 

Estudos destacam o impacto da diretiva UE na presunção de emprego, criticando abusos no status autônomo e propondo canais de comunicação para trabalhadores. 

Autores como Cusumano et al. (2025) analisam plataformas como negócios digitais, enfatizando a necessidade de regulação para combater desigualdades. 

A literatura também discute inspeções trabalhistas para combater “uberização”, promovendo status empregatício.

A regulação do trabalho em plataformas no Brasil:

Legislação

No Brasil, a ausência de legislação específica persiste até 2025, embora o PL 12/24 avance na melhoria de direitos para trabalhadores de plataformas, incluindo contribuições previdenciárias e limites de jornada.

A reforma trabalhista de 2017 (lei 13.467) flexibilizou relações laborais, mas não abordou de forma explicita as chamadas plataformas. 

Em 2024, decretos regulam igualdade salarial e comunicação digital, a impactar indiretamente os ditos “gig workers”.

A regulação do trabalho em plataformas na Itália

A Itália transpôs a Diretiva UE 2024/2831 via lei 91/25, estabelecendo presunção de emprego para gig workers, com direitos a proteção social e transparência. 

Jurisprudência

Tribunais italianos classificam riders como subordinados: em setembro de 2023, o Tribunal de Milão confirmou emprego para riders Uber Eats, rejeitando autônomo. 

Em 2021-2023, multas de 733 milhões de euros foram impostas a plataformas digitais por violações. 

O Tribunal de Turim, em casos como o Foodora, evoluiu para se reconhecer o elemento subordinação.

França e Itália compartilham influências da Diretiva da UE, e adotam presunções de reconhecimento de vínculo empregatício.

O Brasil diverge, com regulação fragmentada e decisões mistas do STF, refletindo flexibilidade neoliberal e quiçá, sensação de insegurança jurídica.

Conclusão:

A comparação traz à evidência e à baila uma tendência global à proteção de trabalhadores de plataformas, impulsionada por diretivas internacionais e jurisprudência protetiva. 

Semelhanças incluem parcerias internacionais e debates sobre vigilância; diferenças residem na maturidade regulatória, com um Brasil bastante atrasado.

Gilda Figueiredo Ferraz de Andrade
Migalheira desde abril/2020. Advogada, sócia fundadora do escritório Figueiredo Ferraz Advocacia. Graduação USP, Largo de São Francisco, em 1.981. Mestrado em Direito do Trabalho - USP. Conselheira da OAB/SP. Conselheira do IASP. Diretora da AATSP.

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