1. Introdução
A lei Maria da Penha é um importante instrumento de combate à violência doméstica. No entanto, sua aplicação precisa respeitar os limites constitucionais do processo penal, sobretudo quando envolve medidas que afetam diretamente a liberdade do cidadão. Uma das situações mais delicadas é a decretação de prisão preventiva por suposto descumprimento de medidas protetivas. Ao contrário do que ocorre na fase inicial da concessão das medidas - em que basta a palavra da vítima -, a prisão preventiva exige um patamar probatório (standard) mais sólido, ainda que não equivalente ao necessário para condenação. Este ensaio tem por objetivo examinar os diferentes standards de prova na lei Maria da Penha e defender que a prisão preventiva não pode ser decretada com base exclusivamente na narrativa unilateral da suposta vítima.
1.2. Medidas protetivas e a palavra da vítima
É fato notório que as medidas protetivas podem ser concedidas com base unicamente na palavra da suposta vítima, sem necessidade de prova material. O fundamento jurídico dessa possibilidade repousa no princípio da precaução, que autoriza o Estado a agir de forma preventiva para evitar riscos à integridade da mulher. O juiz, nessa fase, atua sob um juízo de cognição sumária, bastando que haja aparência de verossimilhança nas alegações apresentadas.
1.3. Prisão preventiva: Maior gravidade, maior rigor
Ocorre que a decretação da prisão preventiva representa uma consequência jurídica de muito maior gravidade do que as próprias medidas protetivas. Ela implica cerceamento direto da liberdade - um dos direitos mais essenciais do ser humano. Portanto, é natural e necessário que o standard probatório exigido para a decretação da prisão preventiva seja mais rigoroso do que aquele utilizado para a concessão das medidas protetivas.
2.4. A prisão não pode se basear só na narrativa
Embora seja comum a narrativa da suposta vítima impulsionar pedidos de prisão preventiva por descumprimento de medidas protetivas, é imprescindível que haja um mínimo de elementos objetivos. Não se pode decretar a prisão com base apenas em afirmações verbais desacompanhadas de documentos, imagens, testemunhos ou qualquer outro elemento que forneça suporte à veracidade do alegado descumprimento.
2.5. Os três standards probatórios da lei Maria da Penha
O sistema processual penal admite graus distintos de exigência probatória, conforme a consequência pretendida:
- Primeiro: Para a concessão de medidas protetivas, exige-se apenas uma aparência de verossimilhança - um juízo de cognição sumária, baseado no princípio da precaução.
- Segundo: Para a decretação de prisão preventiva fundada em descumprimento de medidas, exige-se prova mínima da materialidade do delito e indícios suficientes de autoria.
- Terceiro: Para a condenação criminal, exige-se prova firme e robusta, capaz de superar o estado de inocência e tornar a culpabilidade altamente provável.
Essa gradação visa equilibrar o poder punitivo do Estado com as garantias fundamentais do acusado.
2.6. A crítica ao segundo standard: A prisão pode ser mais grave que a pena
Há, contudo, um paradoxo importante: embora a prisão preventiva seja considerada medida cautelar e provisória, na prática, ela pode representar uma sanção mais severa que a própria pena aplicada ao final do processo. Não são raros os casos em que o acusado permanece preso preventivamente por meses e, ao final, é condenado a pena em regime aberto ou à suspensão condicional da pena (sursis).
Esse fenômeno justifica uma crítica ao standard intermediário aplicado para prisão preventiva. Dado o impacto real e imediato da prisão, seria razoável exigir, em certos casos, um nível probatório mais próximo daquele exigido para a condenação - especialmente quando os elementos apresentados são frágeis ou contestáveis.
2.7. O risco da banalização da prisão preventiva
A prisão preventiva não pode ser banalizada ou decretada de forma automática a partir de uma nova denúncia da suposta vítima. Tal prática desvirtua os fundamentos do processo penal garantista e legitima o uso da prisão como forma de punição antecipada. Além disso, abre margem para arbitrariedades e para o uso estratégico da narrativa da vítima, especialmente quando não há risco real ou reincidência violenta por parte do acusado.
A proteção das mulheres não pode ser feita à custa da supressão total das garantias fundamentais dos acusados. A CF/88 assegura a presunção de inocência, o devido processo legal e a ampla defesa a todos os cidadãos, inclusive aos homens acusados em contexto de violência doméstica. Permitir a prisão com base apenas em declarações verbais, sem nenhum outro suporte probatório, é incompatível com esses princípios.
3. Conclusão
A decretação da prisão preventiva por descumprimento de medidas protetivas não pode ocorrer com base exclusivamente na versão da suposta vítima. Apesar de a lei Maria da Penha permitir a concessão de medidas protetivas com base em juízo sumário, a prisão exige outro patamar de análise. Exige elementos objetivos e indícios mínimos da infração, compatíveis com a gravidade da restrição à liberdade imposta. É necessário, portanto, que o Poder Judiciário respeite os standards probatórios adequados, sob pena de transformar uma medida cautelar em instrumento de punição antecipada - o que afronta frontalmente os pilares de um processo penal justo, equilibrado e garantista. Em nome da justiça, não se pode admitir que a palavra isolada da suposta vítima se torne, por si só, fundamento suficiente para encarcerar um cidadão.