O termo "alienação parental" deixou os corredores dos fóruns e invadiu o debate público, mas sua popularização veio acompanhada de uma perigosa distorção. O que a lei define como uma campanha deliberada para destruir o vínculo de uma criança com um de seus pais virou uma arma retórica, usada de forma indiscriminada em quase toda disputa familiar litigiosa, acirrando conflitos em vez de proteger os filhos.
As estatísticas mostram a dimensão do problema. Em Goiás, por exemplo, a média chegou a um novo processo por dia no primeiro semestre de 2025, enquanto os números nacionais saltaram de 4,3 mil em 2020 para 7,1 mil em 2024, consolidando uma tendência de crescimento alarmante e a banalização do instituto1. Diante desse cenário, a solução não é revogar a lei, mas sim aplicá-la com o rigor técnico que ela mesma exige, e a chave para isso está explícita em sua própria redação, nas locuções conjuntivas "para que" e “ou que” do caput do art. 2º.
A lei 12.318/10 define a alienação parental como a interferência na formação psicológica da criança para que repudie o outro genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este. Essa expressão não é um mero detalhe gramatical; ela cumpre uma função finalística, ou seja, exige que a conduta do agente seja praticada com um propósito específico e deliberado: o de fazer a criança repudiar o outro genitor e prejudicar ativamente o vínculo entre eles.
Esse propósito deliberado é o que o Direito define, tecnicamente, como "dolo específico" ou "fim especial de agir": um elemento subjetivo que integra a própria estrutura da tipicidade do ato. Essa exigência de uma finalidade especial é um conceito consolidado em outras áreas do Direito, como o Direito Penal, onde expressões como "com o fim de" ou "com o intuito de" são cruciais para definir a tipicidade de diversos crimes, como o de furto (subtrair "para si ou para outrem") ou o assédio sexual (constranger "com o intuito de" obter vantagem sexual). A doutrina jurídica majoritária reconhece que essa finalidade especial não é um acessório, mas um elemento estrutural do tipo legal; sem ela, a conduta pode ser inadequada ou impulsiva, mas não se enquadra na descrição da lei.
A exigência do dolo específico permite diferenciar atitudes motivadas por raiva passageira ou insegurança parental daqueles comportamentos efetivamente orientados a destruir o vínculo da criança com o outro genitor. Numa separação conflituosa, é comum que as emoções transbordem, mas isso não significa, por si só, que um dos pais esteja tentando manipular os filhos contra o outro.
A dificuldade prática, então, é distinguir entre a campanha dolosa e os conflitos naturais de um divórcio. A tipologia dos alienadores, desenvolvida pelo psicólogo forense Douglas Darnall, oferece um referencial valioso para essa distinção. Ele descreve o alienador ingênuo, que comete atos isolados sem intenção séria de prejudicar; o alienador ativo, que age por impulso e raiva em momentos de descontrole, mas se arrepende depois; e o alienador obcecado, que tem como missão de vida destruir a relação do filho com o outro genitor, agindo de forma estratégica e persistente, perseguindo na justiça um "troféu" das suas convicções pessoais.
Enquanto os dois primeiros tipos não demonstram, de início, o dolo específico exigido pela lei, o terceiro representa o arquétipo da alienação parental. Para os dois primeiros casos em que a intenção não é clara, a intervenção judicial mais adequada não é a punição imediata, mas a advertência formal.
Ao advertir o genitor sobre a impropriedade de seus atos, o juiz cumpre uma função pedagógica e, principalmente, estabelece um marco probatório. Se, mesmo após a ciência inequívoca da ilicitude de sua conduta, o genitor persiste na campanha de desqualificação, seu dolo específico torna-se manifesto, pois ele passa a agir com a intenção consciente de prejudicar o vínculo, ou seja, o animus alienandi, legitimando a aplicação das medidas não tão brandas da lei.
Felizmente, a jurisprudência brasileira começa a amadurecer nesse sentido. O acórdão do TJ/DF, proferido pela 7ª turma cível na apelação cível 0705448-59.2019.8.07.0006, de forma notável reconheceu a falsa imputação e negou um pedido de reconhecimento de alienação parental feito por um pai contra a mãe que relutava em permitir pernoites do filho, devido a processos criminais que o genitor enfrentava. A corte investigou a intenção por trás da conduta e concluiu que a mãe não agia com o "específico fim de destruir a figura paterna", mas sim com a finalidade de "proteção do filho". O julgado sabiamente distinguiu a "alta litigiosidade recíproca entre os genitores" de uma campanha de alienação.
De forma semelhante, o TJ/MG afastou uma alegação de alienação ao constatar que o afastamento afetivo entre pai e filha decorria de um "verdadeiro abandono paterno" e da postura conflituosa do próprio genitor, que havia contribuído efetivamente para o resultado2.
Ambos julgados mostram que os tribunais estão atentos ao risco de banalização da lei e começam a aplicar com mais critério os requisitos legais para o reconhecimento do ato de alienação parental.
Essa interpretação criteriosa da lei oferece, ainda, uma solução para um de seus usos mais perversos: a falsa acusação de alienação parental. Quando um genitor mobiliza o sistema de justiça, sentindo-se frustrado ou buscando reverter a guarda, por exemplo, e age com o propósito deliberado de macular a imagem do outro e de lhe atribuir injustamente a culpa pelo enfraquecimento dos laços, ele está, na verdade, executando sua própria "campanha de desqualificação". Esse ato, movido por um claro animus alienandi, preenche todos os requisitos do dolo específico e configura, em si, alienação parental, permitindo que a lei seja usada para proteger o genitor guardião injustamente acusado.
Portanto, a exigência do dolo específico não é um formalismo excessivo, mas o filtro que restaura a racionalidade da norma. A advertência judicial formal deve ser um passo obrigatório antes de qualquer medida sancionatória, pois ela é o que permite comprovar, de maneira concreta, a intencionalidade da conduta.
Além disso, é preciso estar atento às falsas acusações, que também configuram alienação parental quando praticadas com o objetivo de difamar o outro genitor e de afastar a criança por meios manipulativos.
O reconhecimento de todos os elementos legais da figura típica dos atos de alienação parental protege genitores que agem por preocupação legítima, coíbe o uso da lei como arma de vingança, oferece um caminho para provar a intenção por meio da advertência judicial e garante que a intervenção do Estado ocorra apenas nos casos em que a integridade psicológica da criança está, de fato, sob o ataque deliberado e intencional de um de seus pais.
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1 CARNEIRO, Mariana. Goiás tem um processo de alienação parental por dia: Já foram registrados 181 novos ajuizamentos do tipo em 2025. Número tem subido a cada ano, mas especialistas apontam que medidas conciliadoras ainda são o melhor caminho. O Popular, Goiânia, 18 jul. 2025. Disponível em: https://opopular.com.br/cidades/goias-tem-um-processo-de-alienac-o-parental-por-dia-1.3290012. Acesso em: 02 de agosto de 2025.
2 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça (TJ-MG). Acórdão na Apelação Cível n. 1.0000.23.090282-7/001 (AC: 50049800220198130518). Relatora: Des.(a) Ivone Campos Guilarducci Cerqueira (JD Convocado). Julgado em 13 nov. 2023. Publicado em 14 nov. 2023. Belo Horizonte, Câmara Justiça 4.0 - Especializada Cível-8.
3 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral. v. 1. 11. ed. revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2007
4 DARNALL, Douglas. Divorce Casualties. Lanham; New York; Oxford: Taylor Trade Publishing, 1998.
5 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: Parte Geral. v. 1. 23. ed. revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 1999
6 MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal: Parte Geral: Arts. 1º a 120 do CP. 24. ed. revista e atualizada. São Paulo: Atlas, 2007
7 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Volume 1 – Parte Geral: Arts. 1º a 120. 4. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.