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Eugenia silenciosa: A aplicação restritiva dos Temas 1.234 e 6 do STF

Temas 6 e 1.234 do STF vêm gerando decisões que tratam os pareceres da CONITEC como definitivos, ignorando relatórios médicos, urgências e ausência de terapias substitutas.

15/8/2025

Desde o julgamento dos Temas 6 e 1.234 pelo STF, em setembro de 2024, com a fixação das súmulas vinculantes 60 e 61, tem-se verificado um preocupante deslocamento da atuação judicial no campo da saúde: decisões judiciais têm sido fundamentadas exclusivamente em pareceres da CONITEC, como se estes encerrassem, por si sós, a controvérsia jurídica sobre o direito ao fornecimento de medicamentos e tratamentos não incorporados ao SUS.

A prática revela um preocupante distanciamento do controle judicial genuíno sobre atos administrativos e, pior, contribui para o agravamento das desigualdades no acesso à saúde no Brasil, sobretudo para pacientes com doenças graves, raras ou em situação clínica extrema.

Embora se preserve, ao menos formalmente, a possibilidade de fornecimento judicial em casos excepcionais, o que se observa é uma aplicação reducionista e automática do entendimento, com base unicamente no conteúdo (ou ausência) de manifestação técnica da CONITEC. Em muitos casos, sequer há análise das provas dos autos, como relatórios médicos, protocolos clínicos personalizados, estudos científicos ou elementos que demonstrem o risco de morte, agravamento funcional irreversível ou inexistência de alternativa terapêutica.

O parecer administrativo passa a operar como um verdadeiro filtro de legalidade, como se a Administração Pública fosse quem detivesse a palavra final sobre a concretização de um direito fundamental - invertendo a lógica constitucional.

A CONITEC, embora seja um órgão técnico relevante, possui natureza consultiva e administrativa. Seus pareceres não são dotados de força vinculante para o Poder Judiciário. Ainda assim, magistrados em todo o país vêm utilizando tais manifestações como barreiras absolutas para o deferimento de medidas liminares e tutela de urgência, ignorando que o ato administrativo, mesmo discricionário, está sujeito aos princípios da legalidade, razoabilidade, proporcionalidade e, sobretudo, ao controle jurisdicional, especialmente quando em jogo está o direito à vida.

A aplicação irrestrita e não problematizada da chamada “deferência ao mérito administrativo” incorre em grave equívoco jurídico, pois transforma o Poder Judiciário em mero reprodutor das decisões (ou omissões) da Administração. Esquece-se que, nos termos da teoria dos motivos determinantes, os fundamentos utilizados pela Administração para negar uma conduta se tornam integrantes da validade do próprio ato. Isso significa que, se a negativa da CONITEC se baseia, por exemplo, em razões exclusivamente orçamentárias, e há nos autos comprovação técnica da imprescindibilidade da medicação ao paciente, o Judiciário não apenas pode, mas deve, exercer seu controle, sob pena de omissão inconstitucional por renúncia ao dever de jurisdicionar.

A consequência prática desse modelo de atuação jurisdicional, calcado unicamente no que diz ou deixa de dizer a CONITEC, tem sido a promoção de uma eugenia silenciosa e institucionalizada. Pacientes com doenças raras, que frequentemente demandam terapias de alto custo e medicamentos ainda não incorporados às listas do SUS, estão sendo sistematicamente deixados à margem do sistema judicial de proteção. Muitas dessas doenças sequer possuem tratamento disponível nas diretrizes oficiais - são quadros clínicos para os quais não há qualquer opção terapêutica fornecida pelo SUS. Ainda assim, a CONITEC, muitas vezes baseando-se em argumentos genéricos de custo-efetividade ou limitação orçamentária, nega a incorporação de fármacos que, comprovadamente, podem oferecer sobrevida ou dignidade a esses pacientes.

Esse comportamento administrativo, quando aceito sem contestação pelo Judiciário, configura uma seleção estatal de quem merece ou não o acesso à vida, a depender da raridade ou do custo do seu sofrimento. Não se trata apenas de desigualdade, mas de uma negação sistemática de direitos a grupos vulneráveis - verdadeira política de invisibilização, que opera sob a lógica da economicidade e da estatística, e não da humanidade e da equidade.

É juridicamente inadmissível que o magistrado se limite a reproduzir, de forma mecânica, a negativa da CONITEC como se esta encerrasse o debate judicial. O princípio do livre convencimento motivado impõe ao juiz o dever de formar seu convencimento com base nas provas constantes dos autos, e não com base exclusiva em pareceres administrativos. O julgador deve identificar a excepcionalidade do caso concreto, especialmente diante de relatórios médicos que atestem risco iminente de morte, agravamento funcional irreversível ou ausência de alternativa terapêutica. Reduzir a atuação judicial ao que diz a CONITEC é abdicar da jurisdição.

Se o Judiciário se limita a carimbar pareceres administrativos, qual a razão de sua existência como instância protetiva de direitos fundamentais? A justiça não pode ser terceirizada. O juiz não pode delegar sua função à Administração sob o pretexto de deferência institucional.

A aplicação restritiva e automática da tese dos Temas 6 e 1.234 descaracteriza a função jurisdicional e esvazia a proteção judicial dos direitos fundamentais em saúde. A CONITEC deve ser considerada como fonte técnica relevante, mas jamais como instância final de deliberação sobre o destino de vidas humanas. O controle judicial, ainda que subsidiado por pareceres administrativos, deve sempre partir do caso concreto, considerando a singularidade da enfermidade, os riscos clínicos e a urgência da terapêutica pleiteada.

A jurisdição não pode se omitir diante da dor. E o Judiciário, ao se esconder atrás do parecer administrativo, trai seu papel constitucional de garantidor da dignidade humana e do acesso à justiça e à saúde.

Ludmila Freitas Ferraz
Advogada especialista em Saúde que luta pelos direitos do pacientes contra as abusividades dos Planos e do SUS. Secretária Geral da Comissão Estadual de Direito da Saúde e Direito Médico da OAB/MT.

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