Tem sido alvo de intensas discussões acadêmicas, jurídicas e sociais a obrigatoriedade do regime de separação de bens ao casamento celebrado por pessoa maior de setenta anos, nos termos do art. 1641, II, do CC.
Pois bem. Não foi encontrado, até agora, uma resposta adequada à Constituição, gerando instabilidade desde a vigência do CC/02.
Por falar nisso, vamos para um quarto de século. Nada mudou. Um museu de grandes novidades.
A propósito, uma resposta adequada ao Direito, segundo Renato Ferraz, tem que ter o DNA da Constituição1.
Sempre com toda cordialidade e respeito, o STF perdeu uma boa oportunidade para acabar de vez com um dos entulhos de atraso do ordenamento jurídico brasileiro.
Vale dizer, declarando a inconstitucionalidade do art. 1.641, inc. II, do CC/02, no agravo em RE 1.309.642/SP, sendo relator o ministro Luís Roberto Barroso.
Ou seja, a norma continua vigente. Além disso, pela decisão do STF, há exigência de escritura pública para escolha do regime de bens, criando, por óbvio, barreiras burocráticas e financeiras.
Isso tudo, é evidente, de que dificulta o exercício da autonomia privada por parte da população pobre e idosa.
O fato é que ausência de declaração de inconstitucionalidade mantém a insegurança jurídica.
A norma segue existindo como regra!
Aliás, a Constituição garante: a autonomia da vontade, igualdade, não discriminação por idade e dignidade humana.
Desrespeito ao direito de autodeterminação das pessoas idosas
Apesar dos ministros do STF entenderam que, essa velha regra da separação obrigatória de bens, desrespeitaria o direito de autodeterminação das pessoas idosas; não enfrentaram o ponto crucial relativo à inconstitucionalidade do art.1641, II, do CC.
A questão está aberta. A norma, sim, continua inconstitucional.
Não existe meia inconstitucionalidade. Ou é ou não é. Não há meio termo. Não existe jeitinho jurídico. Uma coisa não pode, ao mesmo tempo, ser e não ser.
É preciso ter logo claro, entretanto, que tal restrição atenta contra a liberdade individual e fere a autonomia.
É, sim, um ataque à dignidade dos cidadãos!
Etarismo e preconceito ao idoso: Idade não é requisito, por si só, decisivo de incapacidade
Como se sabe, a plena capacidade vem com a maioridade (art. 5º CC). Só pode ser afastada em situações extremas. Tem que ter o triste processo judicial de interdição.
É como se as pessoas idosas fossem moribundas, nas palavras de Paulo Lins e Silva2. É uma ofensa a pessoa não poder dispor de seus bens.
É irracional e injusto. A vontade das pessoas idosas é aviltada. Rebaixada. Diminuída. Menosprezada.
O argumento popular do “golpe do baú” é carregado de preconceito. O amor entre pessoas de diferentes idades é visto sempre como interesse e suspeito.
Há um tensionamento entre a suposta proteção legal ao idoso maior de 70 anos e o respeito à autonomia individual, especialmente, no contexto de envelhecimento.
Essa regra, por certo, carrega um viés ligado ao etarismo.
É evidente de que a proteção ao idoso não pode atropelar direitos fundamentais, certo?
A norma, parte, equivocadamente, da presunção absoluta de vulnerabilidade e incapacidade patrimonial, apenas com base na idade.
Ora, a idade avançada, isoladamente, não é causa de incapacidade. A capacidade, também, não é sinônimo de juventude.
Tudo isso é uma forma de tutela do Estado que infantiliza o idoso.
É uma afronta à dignidade humana e a liberdade de escolha. Nega à velhice o sagrado direito à autonomia, de afeto e de amar e ser amada.
É como o Estado dissesse: agora você é idoso. Por isso, não pode escolher e decidir o que fazer da sua vida...
Aliás, vale lembrar de que a Constituição veda qualquer forma de discriminação por idade. (art. 3º IV). No mesmo sentido, o Estatuto do Idoso.
Por que a tutela do Estado?
Não teriam os idosos capacidade de discernir o certo ou errado? É para que não caiam no “golpe do baú”?
Pessoa mais velha não pode ser amada e desejada por alguém mais jovem?
Por que o preconceito quanto às pessoas idosas?
Cabe então a pergunta: haveria uma presunção absoluta de incapacidade em face serem pessoas maiores de 70 anos?
Fica aqui outra pergunta: seriam “incapazes” na contramão do CC que não estabelece esse tipo de incapacidade?
E vamos e venhamos. E o princípio fundamental da República que é a dignidade da pessoa humana?
E o respeito à autonomia, igualdade e a vedação à discriminação do idoso?
Ora, o Estado não pode jamais tutelar afetos e nem meter a colher nas escolhas patrimoniais.
A inconstitucionalidade do art. 1641, II, do CC
A lei, nesse sentido, é irrefutavelmente inconstitucional, já que não leva em consideração a capacidade e a autonomia do idoso para gerir seu próprio patrimônio.
É um absurdo o idoso não poder dispor de sua vida. Não há dúvidas: Viola, sim, a dignidade da pessoa humana!
Incrível. Mas eu e você, leitor, e as pedras da rua sabemos da escancarada inconstitucionalidade. E os tribunais?
Nesse sentido, o mestre de todos nós, Flavio Tartuce3, membro da Comissão de Juristas, para reforma do CC, aponta a incompatibilidade do referido artigo com a CF:
“A norma que torna obrigatório o regime o regime da separação absoluta de bens em razão da idade dos nubentes (qualquer que seja ela) é manifestamente inconstitucional, malferindo o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República, inscrito no pórtico político da Carta Magna (art. 1, inc. III, da CF).
A justificativa de proteção patrimonial dos herdeiros também não é plausível.
Ora, se esses querem juntar um bom patrimônio, que o façam diante do seu trabalho, pois herdeiro não é profissão”.
E, mais: o festejado Flavio Tartuce defende na Comissão de Juristas da reforma do CC que4:
“retirada da separação obrigatória do sistema, em todas as hipóteses, fazendo com que as questões relativas a fraudes sejam resolvidas pelos institutos da Teoria Geral do Direito Civil, e de acordo com as peculiaridades do caso concreto, sem sacrificar a vontade de todas as pessoas com idade superior a setenta anos".
Diversos juristas como, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald5 e a desembargadora Maria Berenice Dias6, também defendem a inconstitucionalidade do art. 1641, II, CC/02
A doutrina
Pois bem. O papel da doutrina e doutrinar. Sempre com o olhar atento à transformação do Direito.
Doutrinar é narrar o presente. É semear o futuro. É criar pontes para um Justiça Justa, garantindo o Direito material.
É fazer com que as pessoas enxerguem cada vez mais longe. A doutrina sugere caminhos. Tensiona estruturas e propõe rupturas.
Neste mundo dominado pelo achismo jurídico e pragmatismo, opiniões sem reflexão e conexão com a Constituição, a doutrina desempenha papel fundamental.
Ela tem que estar sempre à frente do tempo. É um espaço do pensamento crítico e criativo. Ela expõe o problema.
Doutrinar não é repetir as jurisprudências dos tribunais. Não, mesmo. Isso é copiar e colar.
A doutrina jamais pode ficar subalterna ao Poder Judiciário!
A doutrina é resistência. Por sinal, pensar fora da caixa, ou seja, das decisões dos tribunais incomoda muita gente.
Hoje, infelizmente, assistimos o abandono da doutrina e a favor da jurisprudência defensiva. Triste. Muito triste!
Quando os tribunais fogem do debate doutrinário o Direito fica engessado ignorando as transformações sociais.
Vamos lá. Com seu brilhantismo Rodrigo da Cunha Pereira7 ensina que:
“O fundamento e "espírito" desta proibição é evitar os chamados popularmente de "golpes-do-baú". " Golpes-do-baú" sempre existiram e continuarão, independentemente do regime de bens do casamento.
Para essas exceções a receita é a de sempre, ou seja, em se constatando a enganação ou o engodo, o contrato de casamento pode ser desfeito ou anulado através dos instrumentos jurídicos próprios”.
Caso concreto: Articulação entre teoria e prática
Após uma longa espera de quatorze anos depois da distribuição da ação, foi gerando precatório em favor de Manuel, em 2021.
Verdade seja dita, é evidente de que tudo isso viola o direito fundamental a duração razoável do processo. (ar.5º, inciso LXXVIII).
Ocorre que, em 2022, Manuel foi para o céu. o sonho acabou! Adeus precatório!
Em consequência, Maria, viúva de Manuel, requereu sua habilitação nos autos como herdeira, para receber a parte que lhe cabia no precatório deixado pelo finado esposo.
O juízo de Direito, deferiu a habilitação da herdeira no seguinte teor:
“Defiro a habilitação da herdeira .... Tendo em vista que a certidão de óbito indica que o autor falecido... deixou 9 filhos maiores e a cônjuge, a herdeira ... receberá a parte que lhe compete como herdeira e o restante ficará aguardando para os herdeiros descendentes constantes na certidão de óbito".
Uma coisa: o finado Manuel não deixou bens. Era servidor público do “andar de baixo” da Administração.
Como diz Ferreira Gullar, no poema “Não há vagas”:
“O funcionário público não cabe no poema com seu salário de fome sua vida fechada em arquivos”.
Não obstante, a juíza em exercício, em 6/7/25, revogou a habilitação da herdeira Maria, com o fundamento de que “regime de bens do casamento do casal foi o de separação total obrigatória”.
Misericórdia! E, agora, Manuel, que está no céu? Apela para Nossa Senhora...
Logo, não se pode, maldosamente, presumir de que a Maria queria dar o golpe-do-baú em Manuel, pois ele não tinha bens.
Era pobre como a maioria do povo brasileiro...
Os filhos de Manuel, pelo edital publicado pelo juízo, estão em local incerto e ignorado. Contudo, concorrem com a herança.
Porém, vejam, a aberração jurídica: O cônjuge sobrevivente que concorre com descendentes pelo art. 1.829, CC, apesar de anteriormente habilitada, ficará excluída do recebimento do precatório deixado pelo seu esposo Manuel, com a revogação da habilitação, em face a gritante inconstitucionalidade do art. 1.641, II, do CC.
Pode isso, excelências?
Pois então. Incrível. Chocante. Ofensivo ao prestígio da Justiça. Injusto. Desprestigio ao cidadão e direitos fundamentais.
O drama vivido por Maria
Revela uma colisão entre normas constitucionais e os princípios fundamentais da Constituição.
Isso gera grave injustiça epistêmica, especialmente quando o cônjuge sobrevivente, Maria, não se beneficiou de bens e o falecido não deixou patrimônio.
Há o paradoxo da exclusão de Maria que foi inicialmente habilitada e depois excluída com base no regime de bens.
Os filhos estão em local incerto e ignorado, e o precatório, fruto de uma vida de trabalho, não encontra destinatário justo.
A exclusão de Maria não respeita o princípio da razoabilidade, nem a função social da herança.
É um caso que clama por justiça e sensibilidade constitucional!
Há necessidade de interpretar o Direito Sucessório à luz da Constituição, especialmente quando se trata de pessoas vulneráveis.
Como se vê, facilmente, o concreto lustra a imensa injustiça gerada pela atual legislação.
Conclusão
O Direito jamais poderá ser levando ao absurdo! Tem que refletir o interesse do povo. Aliás, todo poder não emana do povo? Ademais, temos que levar o Direito a sério, não é?
Existe, sim, uma resposta correta no Direito! Aliás, a resposta correta em Direito é aquela que, hermeneuticamente, estiver adequada à Constituição.
Afinal, qual o processo que queremos? Vamos continuar semeando injustiças?
Seremos a sociedade dos juristas mortos nas palavras de Lenio Streck?
É preciso, então, buscar uma solução justa para essa questão, através do incidente de arguição de inconstitucionalidade (art. 948, CPC), em controle difuso, para ser declarada a inconstitucionalidade do art. 1641, II, CC, pelo Órgão Especial.
Interpretar o Direito à luz da Constituição é o que nos afasta da sociedade dos “juristas mortos”.
É o que nos aproxima de um Direito vivo, comprometido com uma justiça justa e não com o positivismo jurídico rígido e o formalismo frio dos processos.
A solução do problema é a declaração de inconstitucionalidade do art. 1.641, II, do CC. Já passou da hora...
Que o Direito tome juízo!
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1 FERRAZ, Renato , https://www.migalhas.com.br/depeso/419290/arbitrio-judicial-primeiro-decido-depois-fundamento
2 LINS E SILVA, Paulo , O casamento como contrato de adesão e o regime legal. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Família e cidadania. O novo CCB e a Vacatio Legis. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 359)
3TARTUCE, Flavio e outros. Código Civil Comentado-Doutrina e Jurisprudência. Forense, 4ª ed., 2022, p.1426
4TARTUCE, Flavio, https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/402474/decisao-do-stf-sobre-o-regime-da-separacao-obrigatoria-de-bens
5 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. : famílias. 10. ed. rev. e atual. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 311
6 DIAS, Maria Berenice, https://berenicedias.com.br/art-1-641-do-cc-inconstitucionais-limitacoes-ao-direito-de-amar/,
7 PEREIRA, Rodrigo da Cunha Pereira,
https://www.jusbrasil.com.br/noticias/artigo-restricoes-ao-direito-de-amar-por-rodrigo-da-cunha-pereira/2517837