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(In)competência dos juizados especiais para julgamento de ações complexas relativas a planos de saúde

A jurisprudência pátria, reiteradamente, tem reconhecido, com acerto, a incompetência dos juizados especiais para julgar demandas complexas de planos de saúde, envolvendo reajuste de planos, reembolso de despesas, internação e medicamentos.

6/8/2025

Vários são os litígios envolvendo segurados e operadoras de planos de saúde. Muitas vezes, o titular do plano escolhe ajuizar a ação no juizado especial cível, pois sua estrutura propicia acesso mais fácil ao jurisdicionado, por ser informado pelos critérios da oralidade, simplicidade, economia processual e celeridade (art. 2º, da lei 9.099/1995).  

Entretanto, a escolha pelo juizado especial não é livre, deve respeitar as regras de competência previstas na CF/88 (art. 98, I)1.

Assim, o juizado especial é incompetente para processar e julgar causas complexas, relativas à relação entre titulares e operadora de planos de saúde, em razão da inviabilidade de se realizar, no rito próprio dos juizados, prova pericial nos moldes determinados pelo CPC. São os casos, por exemplo, de litígios ligados à condição clínica de pacientes, qualidade de atendimentos (clínicas, hospitais e laboratórios), dilemas éticos relacionados ao histórico de pacientes (prontuários médicos), questões de ordem financeira (reajustes de mensalidades, reembolso de despesas médico-hospitalares, manutenção do plano de saúde em prol dos beneficiários), suficiência de rede de prestadores, além de questões que abordam a relação médico-paciente (pertinência técnica da prescrição médica, da internação e materiais cirúrgicos).

Em casos da espécie, permitir que a ação se processe no juizado especial significa impedir a operadora de exercer amplamente o contraditório, violando, por conseguinte, seu direito fundamental à prova. Nesse contexto, as ações ajuizadas perante o juizado especial devem, necessariamente, ser remetidas à justiça comum, sob pena de cerceamento do direito de defesa da operadora. 

Da mesma forma, quando a questão levada ao Judiciário não é complexa, mas o proveito econômico pretendido pelo autor for superior a quarenta salários-mínimos – limite de valor previsto na lei para competência do juizado especial – a ação também deve ser processada perante a justiça comum. 

Destacamos alguns julgados interessantes sobre esses temas:

a) Causas em que o medicamento ou tratamento pleiteado pelo autor supera o limite legal (40 salários-mínimos):

(i) “I. O valor da causa é auferido a partir do proveito econômico que a parte demandante pretende obter. II. Conforme cediço o valor atribuído à causa deve corresponder ao conteúdo econômico que a parte autora pretende auferir com a demanda, de modo que em ações que versarem sobre obrigações de fazer que tratarem sobre a concessão de tratamento e de procedimentos médicos, ou o fornecimento de medicamentos, o valor da causa deve ser fixado em atenção à quantia a ser despendida para o cumprimento da respectiva obrigação”2 (g.n.).

(ii) “Nas ações em que se pleiteia o fornecimento de medicamento, de uso contínuo, em face do Poder Público, o valor da causa deve corresponder ao custo do tratamento anual, sendo cabível ao juiz proceder à alteração, de ofício, quando verificar que tal valor não corresponde ao proveito econômico obtido. Inteligência do art. 292, §§2º e 3º do CPC. Verificando-se que o valor da causa, após a adequação promovida de ofício, ultrapassa o montante equivalente a 60 salários mínimos, o Juizado Especial da Fazenda Pública é incompetente para o processamento e julgamento do feito de origem”3 (g.n.).

b) Causas complexas que demandam realização de perícia segundo as regras do CPC, relativas à liberação de cirurgias, internações, tratamentos, medicamentos:

(i) “Tratando-se de ação ajuizada com vistas à internação compulsória, verifica-se a necessidade de produção de prova pericial complexa, do que decorre a incompetência do Juizado Especial da Fazenda Pública”4 (g.n.).

(ii) “Trata-se da ação de obrigação de fazer ajuizada por Sebastião Pinto da Silva em face do Município de Astolfo Dutra, narrando ser portador da enfermidade CIDS e11.8 e k76.0, diabetes mellitus tipo 2 e esteatose hepática, necessitando adquirir com urgência os medicamentos STANGLIT 30 MG e TREZOR 5MG. A requerente alega que caso não consiga acessar os medicamentos está sujeito a perda irreversível de órgãos ou de funções orgânicas, bem como grave comprometimento da saúde. Não será considerada como prova de baixa complexidade as que se sujeitam pessoas, coisas, lugares, que demandem comparecimento de perito, apresentação de quesitos, entre outros. Nessa senda, a fixação da competência dos Juizados Especiais da Fazenda Pública reclama a averiguação se o objeto controvertido demanda a produção de exame técnico, mais simplificado e informal, ou de perícia nos moldes habituais do Código de Processo Civil, imbuída de maior complexidade”5 (g.n.).

c) Ações que discutem o reajuste dos planos:

“Tese de julgamento: O Juizado Especial Cível é incompetente para julgar ações que discutem reajustes de mensalidades de planos de saúde coletivos por sinistralidade, dada a complexidade da matéria e a necessidade de perícia atuarial. A análise da legalidade de reajustes de planos de saúde coletivos requer produção de prova técnica complexa, o que é incompatível com o rito célere e simplificado dos Juizados Especiais”6 (g.n.).

Em conclusão, seja pelo elevado valor da causa, seja pela complexidade da demanda que reclame exame pericial completo nos moldes do CPC, cessa a competência dos juizados especiais limitada constitucionalmente às “causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo” (CF, art. 98, I), dados esses configuradores da ideia-chave inspiradora da criação de tais juízos originariamente encarregados das pequenas causas incompatíveis com os elevados custos e exigências dos processos tramitados pela Justiça Comum. Insistir, portanto, em submeter processos complexos à tramitação singela de um juizado especial, redunda, no mais das vezes, em grave prejuízo para o contraditório e ampla defesa, sem falar na violação de uma competência especial e, por isso, improrrogável.

_____________

1 “Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau...”.

2 TJMG, 9ª Câmara Cível, Ap. 1.0133.13.000256-0/001, Rel. Des. Luiz Artur Hilário, ac. 06.07.2021, publicação da súmula 22.07.2021. 

3 TJMG, 3ª Câmara Cível. Ag. 1.0000.23.051892-0/001, Rel. Des. Maurício Soares, ac. 07.07.2026, publicação da súmula 10.07.2023.

4 TJMG, 6ª Câmara Cível, CC 1.0000.24.402982-3/000, Rel. Des. Fonseca, ac. 03.12.2024, publicação da súmula 09.1262024.

5 Voto do Relator no TJMG, 5ª Câmara Cível, CC 1.0000.24.036309-3/000, Rel. Des. Rogério Medeiros, ac. 02.05.2024, publicação da súmula 03.05.2024. 

6 TJSP, 6ª Turma Recursal Cível, Recurso Inominado Cível 1002673-02.2024.8.26.0650, Rel. Márcio Bonetti, ac. 02.12.2024, Data de Registro 02.12.2024. No mesmo sentido: TJSP, 3ª Turma Recursal Cível, Recurso Inominado Cível 1016830-88.2023.8.26.0011, Rel. Carlos Ortiz Gomes, ac. 18.06.2024, Data de Registro 18.06.2024; TJBA, 4ª Turma Recursal, Recurso nº 0144272-69.2023.8.05.0001, Rel. Martha Cavalcanti Silva de Oliveira, Data da publicação 06.02.2024.

Humberto Theodoro Júnior
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Triângulo Mineiro (Uberaba/MG). Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Desembargador Aposentado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

Helena Lanna Figueiredo
Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutoranda em Direito na UFMG e na Università Degli Studi di Verona. Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pelo IEC/PUC Minas. Advogada.

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