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A responsabilidade civil em contexto de violência doméstica

O descumprimento de medida protetiva de urgência é forma de violência psicológica e gera dano moral in re ipsa, passível de indenização civil cumulada à sanção penal, sem configurar bis in idem.

13/8/2025

A dor reavivada pelo descumprimento de decisão judicial que deferiu medidas protetivas de urgência (Art.24-A da lei 11.340/06)

Tícia, servidora pública, 34 anos, viveu um relacionamento abusivo por quase uma década. Após sucessivos episódios de violência psicológica, perseguição obsessiva (stalking), humilhações e ameaças veladas, ela reúne coragem para romper o ciclo e aciona o Judiciário. A medida protetiva é deferida: proibição de contato, distanciamento mínimo de 300 metros e vedação de aproximação do local de trabalho e da residência em desfavor de Mévio. Ele é intimado pessoalmente da MPU.

Passadas três semanas, Tícia, ao sair do trabalho, percebe o carro do ex-convivente Mévio, ora requerido, estacionado diante da repartição pública onde trabalha. Ele não a aborda diretamente, apenas a observa, liga para o telefone móvel dela, mas não fala, somente respira fundo e silencia. Desliga. Repete uma, duas, três, quantas puder.

Naquele momento, Tícia sente o medo retornar com a força de um trauma antigo: mãos trêmulas, coração acelerado, suor frio, confusão mental. Ela corre para dentro do prédio e aciona a Polícia Militar, mas o agressor foge. A cena se repete duas vezes na mesma semana, em locais diferentes. A Justiça é novamente provocada. O Ministério Público denuncia o agressor com base no art. 24-A da lei Maria da Penha, por descumprimento de decisão judicial que deferiu medidas protetivas de urgência, com aplicação do art. 387, IV do CPP para critérios de reparação mínima.

Mas, afinal, o magistrado pode aplicar cumulativamente as duas sanções ao requerido sem incorrer em bis in idem?

O descumprimento como violência psicológica à vítima

O comportamento do agressor, ao violar reiteradamente a medida protetiva, mantendo vigilância e tentando contato indireto, configura de forma inequívoca o tipo penal do art. 24-A da lei 11.340/06ele descumpre a MPU, e o faz de maneira consciente e reiterada.

O descumprimento de medida protetiva de urgência, previsto no art. 24-A da lei Maria da Penha, deve ser compreendido não apenas como afronta à autoridade judicial, mas como forma renovada e sutil de violência psicológica, por ao menos três razões jurídicas:

I. É uma conduta dotada de carga simbólica opressiva, isto é, o agressor comunica à vítima, ainda que silenciosamente, que continua no controle, que a decisão judicial não tem força suficiente para afastá-lo e que a proteção institucional é frágil e insignificante.

II. Reativa o trauma anterior da violência sofrida, isto é, a mera presença física indevida, a aproximação velada, a vigilância constante ou qualquer outro gesto que implique violação mínima da intimidade da ofendida, atua como gatilho psíquico de sofrimento emocional intenso.

III. Cria novo abalo à integridade psicológica, isto é, o dano não é apenas relembrado, é revivido e agravado. A vítima deixa de viver com liberdade emocional, tornando-se refém da angústia, da insegurança e da impotência diante da persistência do agressor.

A violência psicológica tem um elemento central: a repetição do medo e da ameaça, mesmo quando não há agressão direta. O descumprimento da medida protetiva de urgência, ainda que sem contato verbal, renova o terror psicológico.

Trata-se, portanto, de uma forma autônoma de violência doméstica e familiar pela lei 11.340/06 (lei Maria da Penha), no art. 7º, II, se não vejamos: “a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação” (grifo nosso).

É uma violência imaterial, reiterativa e insidiosa, cujas marcas, embora invisíveis a olho nu, são profundas, persistentes e devastadoras. A sua materialização jurídica não depende de lesão física: a integridade psíquica é, por si só, um bem jurídico tutelado constitucional e civilmente.

Da responsabilidade civil

No plano civil, o dano moral prescinde da comprovação de sofrimento intenso ou de prova documental da dor: basta o ilícito que atinja direitos da personalidade, isto é, por ser in re ipsa é que se caracteriza na ofensa grave à dignidade da pessoa humana. A ofensa a valores como a tranquilidade, a integridade psíquica e a autoestima da mulher está presente ipso facto na violação da medida protetiva.

Assim diz o art. 186 do CC: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Ao descumprir ordem judicial que visa proteger a vítima, o agressor reafirma sua hostilidade, desafia o Estado-Juiz e renova o ciclo da violência. O simples fato dessa conduta ocorrer é bastante para configurar dano moral presumido (in re ipsa), como já reconhece vasta jurisprudência pátria.

Tese firmada nesse sentido o STJ referendou, ao dizer que, bastando pedido colacionado nos autos da aplicação dos danos morais, quer pelo Ministério Público, quer pela vítima, o juízo poderá deliberar em sentença pela aplicação deste entendimento.

À guisa de fundamentarmos, registra-se REsp 1.675.874/MS do STJ: RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. LESÃO CORPORAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. CONDENAÇÃO. FIXAÇÃO DE VALOR MÍNIMO PARA INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. PEDIDO EXPRESSO DA ACUSAÇÃO OU DA VÍTIMA. DESNECESSIDADE DE INSTRUÇÃO PROBATÓRIA ESPECÍFICA. PROVIMENTO DO RECURSO. 1. Em se tratando de lesão corporal praticada com violência à mulher, no âmbito doméstico e familiar, é possível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, independentemente de instrução específica, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida. É que, nessa hipótese, o dano moral é presumido - in re ipsa -, ou seja, exsurge da própria conduta típica, devidamente apurada na instrução penal. 2. Parecer pelo provimento do recurso especial, restabelecendose a condenação do réu ao pagamento de indenização pelos danos morais sofridos pela vítima.

Veja: em que pese o caso em comento não narre fatos que ensejam a capitulação do crime de lesão corporal, em nada obsta a aplicação dos danos morais por ser valor intrínseco ao descumprimento da medida protetiva - a violação máxima da individualidade da vítima.

Foi nesse sentido que a 9ª Câmara Criminal Especializada do TJ/MG condenou, em caso paradigma, o disposto do art. 387, inciso IV, do CPP, nas linhas da relatora da apelação autos 1.0000.23.176936-5/001, desembargadora Maria das Graças Rocha Santos: “a imposição, na sentença condenatória, de indenização a título de danos morais depende de pedido expresso do ofendido ou do Ministério Público, não se exigindo, de outro norte, instrução probatória acerca do dano psíquico”.

A indenização por dano moral em tais casos cumpre também a função simbólica e pedagógica do Direito, conforme a melhor doutrina contemporânea. A reparação do dano moral não visa apenas compensar a vítima, mas também afirmar valores da ordem jurídica lesados pela conduta. A condenação pecuniária sinaliza que a violação da medida protetiva não é um ato trivial, mas sim uma infração grave, que desperta sanções em múltiplas esferas. Trata-se de restaurar o equilíbrio ontológico da vítima e reafirmar a autoridade da jurisdição estatal.

Ademais, a responsabilidade civil independe da penal, salvo se o fato for reconhecido como inexistente ou se houver absolvição com fundamento na negativa de autoria. O reconhecimento do ilícito penal não afasta, mas antes reforça, a possibilidade de reparação civil. Assim, mesmo que a vítima opte por não representar criminalmente ou que o processo penal ainda esteja em curso, a ação de indenização por dano moral é plenamente viável e autônoma.

É como posiciona a 5ª turma do STJ, “para fixação de indenização mínima por danos morais, nos termos do art. 387, IV, do CPP, não se exige instrução probatória acerca do dano psíquico, do grau de sofrimento da vítima, bastando que conste pedido expresso na inicial acusatória, garantia suficiente ao exercício do contraditório e da ampla defesa”. (STJ. 5ª turma. AgRg no REsp 2.029.732-MS, rel. min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 22/8/2023 (Info 784).

É também entendimento da 6ª turma do STJ, “jurisprudência do STJ é firme no sentido de que a fixação de valor mínimo para reparação dos danos morais causados pela infração exige apenas pedido expresso na inicial, sendo desnecessárias a indicação de valor e a instrução probatória específica. No caso dos autos, como houve o pedido de indenização por danos morais na denúncia, não há falar em violação ao princípio do devido processo legal e do contraditório, pois a Defesa pôde se contrapor desde o início da ação penal”. (STJ. 6ª turma. AgRg no REsp 1.984.337/MS, rel. min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 6/3/2023).

Enfim, importa também consolidar que tal entendimento já encontrou guarida em âmbito de violência doméstica do Superio Tribunal: “nos casos de violência contra a mulher praticados no âmbito doméstico e familiar, é possível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida, ainda que não especificada a quantia, e independentemente de instrução probatória” (STJ. 3ª Seção. REsp 1643051-MS, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 28/2/2018 (recurso repetitivo - Tema 983) (Info 621).

Em suma, nos termos do art. 387, inciso IV, do CPP, é possível ao juiz, por ocasião da sentença penal condenatória, fixar valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração penal. Tal valor tem natureza indenizatória mínima e visa dar efetividade ao direito da vítima à reparação, sem prejuízo da possibilidade de sua complementação na via cível.

A fixação dessa quantia, contudo, pressupõe requerimento formal e expresso, seja por parte do Ministério Público ou do ofendido (ou seu representante), sendo indispensável a observância ao contraditório e à ampla defesa, especialmente quando se tratar de elemento novo inserido nos autos com fins reparatórios. Trata-se de entendimento pacífico na jurisprudência do STJ:

“Para que o magistrado fixe valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração penal, é necessário que haja pedido expresso e formal, formulado pelo parquet ou pelo ofendido, de modo a oportunizar ao réu o contraditório e a ampla defesa.”

(STJ. 6ª turma. AgRg no AREsp 389.234/DF, rel. min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 08/10/2013).

No que se refere aos danos morais, a jurisprudência brasileira reconhece a possibilidade de sua configuração in re ipsa, ou seja, presumida pela própria ocorrência do fato danoso, quando este é notoriamente apto a gerar abalo à esfera íntima da vítima. Nesses casos, não se exige a produção de prova específica acerca do sofrimento experimentado, bastando a demonstração do fato violador.

“A aferição do dano moral, na maior parte das situações, não ensejará nenhum alargamento da instrução criminal, porquanto tal modalidade de dano, de modo geral, dispensa a produção de prova específica acerca da sua existência, encontrando-se in re ipsa. Isto é, não há necessidade de produção de prova específica para apuração do grau de sofrimento, de dor e de constrangimento suportados pelo ofendido; o que se deve provar é uma situação de fato de que seja possível extrair, a partir de um juízo baseado na experiência comum, a ofensa à esfera anímica do indivíduo”. (STJ. 6ª turma. AgRg no REsp 1.626.962/MS, rel. min. Sebastião Reis Júnior, DJe 16/12/2016).

Assim, situações como o descumprimento de medida protetiva de urgência, que exponham a vítima à revitimização, à sensação de insegurança ou ao medo real e concreto, presumem o dano moral sofrido, sendo suficiente, para sua indenização, a demonstração da conduta ilícita e do nexo com a esfera psíquica lesada.

Por fim, cumpre salientar que, fixado o valor mínimo na sentença penal condenatória, este poderá ser executado de imediato pela vítima, nos próprios autos criminais, conforme previsão do art. 63 do CPP, sem prejuízo do ajuizamento de ação cível própria para eventual complementação do quantum indenizatório, caso os prejuízos ultrapassem o montante estabelecido. Nesse caso, a apuração do valor excedente poderá se dar, conforme o caso, por meio de liquidação por artigo (art. 509, II, do CPC), desde que demonstrada a extensão concreta do dano.

Considerações finais e tese bis in idem

A tese defensiva mais recorrente contra a cumulação da responsabilização penal pelo art. 24-A da lei Maria da Penha com a condenação por dano moral fundamentada no art. 387, IV, do CPP, é a suposta ocorrência de bis in idem. Ou seja: o réu estaria sendo punido duas vezes pelo mesmo fato - uma na esfera penal (sanção criminal) e outra na esfera cível (indenização).

Esse raciocínio, embora sedutor à primeira vista, não se sustenta à luz de uma análise sistemática e constitucional do ordenamento jurídico brasileiro.

A primeira refutação decorre da compreensão da natureza jurídica da indenização civil. Esta não constitui pena, mas sim reparação a direito subjetivo violado, conforme o art. 5º, incisos V e X, da Constituição Federal. Assim, as esferas penal e civil possuem fundamentos, finalidades e sujeitos diversos.

A responsabilização penal não exclui a responsabilidade civil. Aliás, o próprio CPP, no art. 387, IV, determina que o juiz, ao proferir sentença condenatória, fixe valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração:

Art. 387. in omissis: IV - fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido.

Trata-se, portanto, de natureza jurídica com efeito extrapenal genérico da condenação.

Curiosamente, o raciocínio do bis in idem pode ser invertido: negar à vítima a indenização civil sob o argumento de já haver sanção penal é criar uma duplicidade de proteção para o agressor, e não para a vítima. É premiar a violência com a impunidade civil.

A cumulação da responsabilização penal pelo art. 24-A da lei 11.340/06 e a fixação de indenização por dano moral na forma do art. 387, IV, do CPP não configura bis in idem, pois SE tratam de esferas distintas de responsabilização (penal e civil), possuem fundamentos diferentes (repressão versus reparação), atendem a finalidades jurídicas e sociais diversas e se destinam a sujeitos distintos (sociedade e vítima).

Portanto, a invocação do princípio do ne bis in idem (ou non bis in idem, ou somente bis in idem) não encontra sustentação dogmática, sendo rechaçada tanto pela doutrina majoritária quanto pela jurisprudência consolidada. O que haveria, se negada a indenização, seria uma verdadeira fratura institucional na proteção integral da mulher, desrespeitando o mandado constitucional de tutela contra a violência de gênero.

Negar o dano moral nesses casos seria exigir da vítima prova de sofrimento íntimo, o que é por vezes inviável, degradante e violador da autonomia subjetiva, desconsiderar a gravidade do descumprimento da proteção judicial, fragilizar a eficácia da lei Maria da Penha, reduzindo-a à retórica simbólica. A violência doméstica é fenômeno complexo que exige respostas múltiplas e integradas. O dano moral in re ipsa se insere justamente nesse espectro: é uma resposta constitucional e civilizatória à dor que não pode mais ser silenciada.

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Referências

BONNA, A. P.; SOUZA, L. T.; LEAL, P. S. T. Reflexões sobre o dano moral em casos de violência doméstica cometida contra a mulher a partir do Recurso Especial Repetitivo n. 1.675.874/MS. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 1–28, 2019. DOI: 10.37963/iberc.v1i1.13. Disponível em: https://revista.iberc.org.br/iberc/article/view/13. Acesso em: 1 ago. 2025.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal.

BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário Oficial da União, Brasília, 8 ago. 2006.

Dizer o Direito: A fixação de valor mínimo (art. 387, IV, do CPP) para reparação dos danos morais causados pela infração exige apenas pedido expresso na inicial, sendo desnecessárias a indicação de valor e a instrução probatória específica. Disponível em: https://www.dizerodireito.com.br/2023/10/a-fixacao-de-valor-minimo-art-387-iv-do.html. Acesso em: 6 de ago. 2025.

Lucas Velasques da Costa Pinto
Bacharel em Direito (UCDB/MS), Residente Judicial no TJMS, especialista pós-graduado e autor com atuação crítica e interdisciplinar voltada à efetividade dos direitos humanos e à justiça.

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