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Alienação fiduciária e locação de imóveis

Entenda como funciona a alienação fiduciária e o impacto nos contratos de locação de imóveis. Saiba os direitos do locatário e do credor fiduciário.

11/8/2025

A alienação fiduciária e o direito de locação

As modalidade mais comuns de aquisição de bens imóveis no Brasil é o financiamento imobiliário, contrato firmado através da alienação fiduciária em garantia.

O art. 22 da lei 9.514/97 define que a alienação fiduciária “(…) é o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.”.

O parágrafo único do art. 23 da lei 9.514/97 expõe o momento de constituição da propriedade fiduciária: “Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título. (…) § 1º Parágrafo único. Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel.

Nesta modalidade de negócio jurídico o devedor (fiduciante) possui a posse direta do bem imóvel enquanto o credor (fiduciário) adquire a posse indireta. Assim como, a propriedade fiduciária é constituída com o registro da alienação fiduciária no Registro de Imóveis competente, visto que, é um direito real de garantia, conforme art. 17, IV e § 1º, lei 9.514/97.

Vejamos um exemplo prático:

Senhor Mévio quer adquirir um imóvel. Busca uma instituição bancária e assina um contrato de financiamento no valor de R$ 300.000,00. Senhor Mévio entra no imóvel e começa a residir no local. Senhor Mévio é o devedor fiduciante e tem a posse direta do bem. A instituição bancária é a credora fiduciária e possui a posse indireta. Caso o senhor Mévio não pague as prestações acordadas, o imóvel é a garantia para a instituição bancária que poderá consolidar o bem para a feitura de leilão.

Por fim, o imóvel que o senhor Mévio reside é a chamada propriedade fiduciária, sendo esta uma propriedade resolúvel (há uma condição resolutiva que subordina o título de aquisição do imóvel, conforme art. 22 da lei 9.514/97) de coisa móvel infungível onde o devedor transferirá para o credor como garantia em caso de descumprimento contratual.

Neste diapasão é importante indicar que o senhor Mévio, devedor fiduciante, possui o direito de alugar o imóvel para terceiro, visto que, o inciso V do art. 24 da lei 9.514/97 possui o termo “livre utilização” em seu bojo: art. 24. (…) V - a cláusula que assegure ao fiduciante a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária, exceto a hipótese de inadimplência;”.

Ou seja, senhor Mévio tem o direito de alugar o imóvel, propriedade fiduciária, que reside para terceiro, com base no inciso V do art. 24 c/c art. 37-B da lei 9.514/97.

Das situações práticas nas relações locatícias diante da alienação fiduciária

No primeiro caso concreto, senhora Mérvia celebrou contrato de locação com terceiro antes da constituição da propriedade fiduciária. Neste momento há o prévio conhecimento do credor fiduciário sobre a existência da relação locatícia.

No cenário supraindicado, o contrato de locação já vigente, firmado pela senhora Mérvia e o locatário, não impedirá a alienação fiduciária. Todavia, se a prorrogação do período locatício ultrapassar 12 meses, deverá ocorrer a concordância do credor fiduciário ou de seus sucessores (como o arrematante). Sem a sua concordância, o contrato torna-se ineficaz, cabendo o §7º do art. 27 e art. 37-B, ambos da lei 9.514/97.

Como exceção, deve ser verificado se o contrato de locação foi levado ao crivo do registro de imóveis, garantindo o direito de vigência e de preferência, conforme item 3 do inciso I e item 16 do inciso II ambos do art. 167 da lei 6.015/73. Neste cenário, todos serão obrigados a respeitar o contrato de locação e o locatário.

No segundo caso concreto, há a feitura do contrato de locação entre senhora Mérvia e terceiro após a constituição da propriedade fiduciária. Neste caso, poderá ser aplicado o §7º do art. 27 e art. 37-B, ambos da lei 9.514/97.

Estes dispositivos legais foram criados para a proteção do credor fiduciário diante da consolidação da propriedade. De acordo com o §7º do art. 27 da lei 9.514/97:

Art. 27. Consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário promoverá leilão público para a alienação do imóvel, no prazo de 60 (sessenta) dias, contado da data do registro de que trata o § 7º do art. 26 desta Lei

(…)

§ 7º Se o imóvel estiver locado, a locação poderá ser denunciada com o prazo de trinta dias para desocupação, salvo se tiver havido aquiescência por escrito do fiduciário, devendo a denúncia ser realizada no prazo de noventa dias a contar da data da consolidação da propriedade no fiduciário, devendo essa condição constar expressamente em cláusula contratual específica, destacando-se das demais por sua apresentação gráfica.

O dispositivo legal acima exposto indica que na consolidação do imóvel, caso haja locatário no bem-alvo do leilão, o credor fiduciário poderá denunciar o contrato de locação no prazo de 90 dias a partir da consolidação da propriedade e o locatário deverá desocupar o imóvel no prazo de 30 dias.

Por sua vez, vale indicar que o direito de preferência em contratos de locação firmados após a constituição da propriedade fiduciária, elencado no item 16 do inciso II do art. 167 da lei 6.015/73, não gera efeitos a partir de 1/10/01. Vejamos o texto do parágrafo único do art. 32 da lei 8.245/91:

Art. 32. O direito de preferência não alcança os casos de perda da propriedade ou venda por decisão judicial, permuta, doação, integralização de capital, cisão, fusão e incorporação.

Parágrafo único. Nos contratos firmados a partir de 1o de outubro de 2001, o direito de preferência de que trata este artigo não alcançará também os casos de constituição da propriedade fiduciária e de perda da propriedade ou venda por quaisquer formas de realização de garantia, inclusive mediante leilão extrajudicial, devendo essa condição constar expressamente em cláusula contratual específica, destacando-se das demais por sua apresentação gráfica. 

Portanto, no segundo caso exposto, o credor fiduciário poderá denunciar o contrato de locação diante da inadimplência do devedor fiduciante, mesmo se houver locatário no imóvel.

Todavia, há uma exceção: o locatário poderá se manter no imóvel se o credor fiduciário concordar, por escrito, com a manutenção da locação. Caso contrário o locatário deverá retirar-se do imóvel em até 30 dias, conforme §7º do art. 27 c/c art. 37-B ambos da lei 9.514/97.

Neste diapasão, vale indicar que o locatário que permanecer no imóvel durante a consolidação, feita pelo credor fiduciário, não deverá pagar qualquer taxa de ocupação, conforme art. 37-A da lei 9.514/97 e decisão da 4ª turma do STJ perante REsp 1.966.030.

Conclusão

Conclui-se que a alienação fiduciária não impede, por si só, a celebração de contratos de locação pelo devedor fiduciante, desde que respeitados os limites legais e contratuais. A "livre utilização" do imóvel permite a locação por conta e risco do fiduciante, mas o exercício desse direito encontra restrições importantes nos casos de inadimplemento contratual e consolidação da propriedade pelo credor fiduciário.

A análise dos casos concretos demonstra que a validade e a eficácia do contrato de locação dependem do momento da sua celebração, da existência ou não de registro no Cartório de Imóveis e da eventual anuência do credor fiduciário. Por fim, o locatário, embora protegido em alguns cenários, poderá ser compelido a desocupar o imóvel, reforçando a importância de cláusulas claras e da consulta jurídica prévia antes da formalização de tais contratos.

Wallace Bonfim Santa Cecilia
Advogado atuante na área imobiliária, cível, sucessões.

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