1. Introdução
O sharenting - prática que une sharing (compartilhar) e parenting (paternidade/maternidade) - consiste na divulgação, por pais ou responsáveis, de imagens, vídeos e informações sobre crianças nas redes sociais. Embora muitas vezes motivada por orgulho ou intenção de registrar momentos, essa conduta tem sido objeto de preocupação crescente entre especialistas em direito, psicologia e segurança digital.
Estudos recentes revelam que 81% das crianças com menos de dois anos já possuem uma “pegada digital” criada por familiares, em países como Brasil, EUA, Reino Unido e França (scielo.br). No Brasil, dados da pesquisa TIC Kids Online 2023 mostram que 93% dos jovens entre 9 e 17 anos estão conectados, somando 22,3 milhões de usuários nessa faixa etária (ibdfam.org.br).
O fenômeno não é apenas estatístico, mas jurídico: em apelação cível 1006405-59.2019.8.26.0100 (TJ/SP), reconheceu-se o direito de indenização por danos morais a menor exposto de forma vexatória por familiar em rede social, com base nos arts. 17 e 18 do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente e no art. 5º, X, da CF/88, que garantem a inviolabilidade da honra, imagem e vida privada.
Além disso, pesquisa internacional sobre o TikTok revelou que, em quase 5.900 vídeos com crianças, 21% dos comentários se referiam à aparência e 19,6% mostravam menores com roupas reveladoras - conteúdos que receberam maior engajamento e, portanto, potencialmente mais visibilidade para usuários mal-intencionados (arxiv.org).
Diante desse cenário, é imperioso analisar o sharenting sob a ótica do princípio do melhor interesse da criança (art. 227 da CF/88 e art. 4º do ECA), avaliando a responsabilidade dos pais quando o compartilhamento ultrapassa os limites da proteção integral e expõe o menor a riscos concretos de ordem física, psíquica ou moral.
2. Riscos do sharenting
Diversos estudos e relatórios de segurança digital apontam que o sharenting:
- Facilita roubo de identidade infantil por meio de dados e imagens postadas.
- Fornece material para predadores online, incluindo uso em pornografia infantil e deepfakes.
- Cria uma pegada digital permanente, dificultando o controle posterior sobre as informações.
- Pode expor a criança a cyberbullying e constrangimentos, afetando autoestima e relações sociais.
- Permite que criminosos identifiquem rotinas, locais e hábitos, ampliando riscos de aliciamento e outros crimes.
3. Fundamentos legais para responsabilização dos pais
3.1. ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente
Art. 17 e 18 - Garantia do direito ao respeito, integridade física, psíquica e moral.
Art. 232 - Submeter criança a vexame ou constrangimento.
Arts. 241-A e 241-B - Produzir, oferecer, divulgar ou armazenar material pornográfico envolvendo criança ou adolescente.
Art. 149 - Proibição de participação em eventos, exibições ou publicações inadequadas à faixa etária.
3.2. Código Penal
Crimes contra a honra (arts. 138 a 140) - Difamação ou injúria contra o próprio filho.
Art. 133 - Abandono de incapaz, se a exposição implicar risco à integridade física ou psíquica.
Art. 13, §2º - Omissão imprópria, quando os pais deixam de impedir ou remover conteúdo que os exponha a perigo.
3.3. Código Civil
Art. 186 e 187 - Ato ilícito e abuso de direito.
Art. 932, I - Responsabilidade dos pais por atos ilícitos praticados por filhos menores.
Possibilidade de indenização por danos morais e materiais em favor da própria criança.
3.4. LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/18)
Art. 14 - Tratamento de dados pessoais de crianças deve ser realizado com consentimento específico de pelo menos um dos pais, e sempre no melhor interesse do menor.
Responsabilização administrativa e civil pelo tratamento irregular de dados.
4. Sharenting como ferramenta para predadores
O risco se intensifica quando os pais não apenas publicam conteúdos isolados, mas criam perfis inteiros dedicados aos filhos, muitas vezes desde o nascimento. Nessas contas, a sequência cronológica de postagens expõe datas de aniversários, rotinas, hobbies, eventos escolares e viagens, oferecendo um verdadeiro dossiê para predadores identificarem padrões e locais frequentados.
Pesquisa do University of Michigan C.S. Mott Children’s Hospital (2022) aponta que 75% dos pais publicam fotos ou vídeos de seus filhos pelo menos uma vez por mês e 27% compartilham informações que permitem identificar a localização da criança. No Brasil, relatórios da SaferNet confirmam que imagens retiradas de perfis públicos de crianças já foram encontradas em fóruns de exploração sexual infantil.
Os termos de uso do Instagram proíbem contas próprias para menores de 13 anos, permitindo apenas perfis geridos por pais ou responsáveis, desde que respeitem as diretrizes de comunidade, que vedam a exposição de dados pessoais identificáveis e conteúdos que possam colocar a criança em risco. No entanto, na prática, muitos perfis administrados por pais violam essas regras inadvertidamente.
Do ponto de vista jurídico, mesmo com supervisão, a criação de perfis que expõem dados e imagens da criança pode configurar:
- Violação ao princípio do melhor interesse da criança (art. 227 da CF e art. 4º do ECA).
- Exposição a vexame ou constrangimento (art. 232 do ECA).
- Tratamento irregular de dados pessoais de crianças (art. 14 da LGPD), quando informações são tornadas públicas ou suscetíveis de coleta por terceiros.
5. Responsabilidade e prevenção
A responsabilidade parental nesses casos não se limita ao momento da criação do perfil, mas se estende à gestão contínua e criteriosa do conteúdo publicado. Os arts. 17 e 18 do ECA impõem aos pais o dever de proteger a imagem e integridade moral da criança; o CC (art. 932, I) estabelece responsabilidade objetiva por danos decorrentes de atos ilícitos que envolvam menores; e a LGPD exige que o tratamento de dados pessoais de crianças seja realizado sempre no melhor interesse do menor.
Além das obrigações legais, os termos de uso de Instagram, TikTok e YouTube reforçam que:
- É proibida a divulgação de informações que permitam a localização física de menores.
- Conteúdos com crianças devem respeitar políticas de proteção infantil.
- Violações podem levar à remoção de postagens, suspensão de contas e encaminhamento às autoridades competentes.
Medidas preventivas específicas para perfis de crianças:
- Configurar o perfil como privado e aprovar manualmente seguidores.
- Evitar menções a escola, bairro ou locais frequentados.
- Moderar ou desativar comentários.
- Revisar periodicamente o acervo, removendo conteúdos antigos que possam expor a criança em contextos vulneráveis.
- Utilizar recursos de anonimização, como ocultar o rosto ou suprimir metadados das imagens.
Assim, a supervisão parental não elimina a responsabilidade jurídica, que se fundamenta não apenas no consentimento dado pelos pais, mas na avaliação objetiva de riscos e no cumprimento do dever legal de proteção integral.
6. Conclusão
O sharenting, especialmente quando materializado em perfis inteiramente dedicados a crianças, exige atenção redobrada. A conduta, ainda que bem-intencionada, pode gerar riscos graves e duradouros à segurança e privacidade do menor, além de consequências jurídicas aos pais. O ordenamento brasileiro, por meio do ECA, do CC, do CP e da LGPD, oferece instrumentos para responsabilizar condutas que violem direitos fundamentais, reforçando que a proteção integral da criança é dever prioritário.
A conscientização e a aplicação efetiva das normas, aliadas à observância dos termos de uso das plataformas digitais, são essenciais para equilibrar o desejo de compartilhar com a necessidade de preservar.