1. Introdução
As medidas protetivas previstas na lei Maria da Penha têm a nobre finalidade de conferir proteção urgente e eficaz às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. São instrumentos cautelares, de natureza inominada, que visam afastar o risco imediato à integridade física e psicológica da mulher. Entretanto, na prática, observa-se um fenômeno preocupante: a prorrogação automática das medidas protetivas com base exclusiva no desejo da suposta vítima, sem qualquer análise aprofundada sobre a subsistência ou não da situação de risco. Este ensaio examina criticamente esse cenário, abordando seus impactos sobre os direitos fundamentais na pessoa submetida as medidas protetivas e a atuação independente do Poder Judiciário.
2. Finalidade das medidas protetivas
As medidas protetivas surgem como instrumentos cautelares de proteção imediata às mulheres em situação de risco. Diferente de outros institutos processuais, elas não visam proteger o processo judicial, mas sim a vida e a integridade da suposta vítima, com foco no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e na prevenção de violências mais graves.
As medidas protetivas são concedidas com base em um juízo inicial de cognição sumária. Isso significa que, no momento de sua concessão, não é necessário que a mulher comprove de forma robusta a violência sofrida. Basta a sua declaração, justamente porque a demora na obtenção de provas poderia resultar em tragédias evitáveis.
O sistema jurídico adota o princípio do in dubio, pro-proteção, que determina que, em caso de dúvida, deve-se optar por proteger a suposta vítima. Por isso, o Judiciário concede, com facilidade, as medidas protetivas, flexibilizando as exigências probatórias. Trata-se de uma escolha que privilegia a segurança da mulher frente a um risco potencial.
Apesar de compreensível na fase inicial, o problema se agrava quando, passados meses ou até anos, as medidas são prorrogadas sem qualquer fato novo ou demonstração de que o risco persiste. Muitos juízes têm adotado a prática de consultar apenas a suposta vítima, e se ela manifesta desejo de manter as medidas, as restrições são automaticamente renovadas.
Na prática, o Judiciário tem transformado o desejo da suposta vítima em verdadeira ordem judicial. Se ela quiser manter as restrições, o juiz simplesmente prorroga as medidas, sem realizar análise concreta sobre a atualidade do risco. O simples pedido de prorrogação tem, infelizmente, se sobreposto à avaliação judicial criteriosa.
O núcleo da decisão judicial deveria ser a análise da subsistência do risco. Entretanto, na maioria dos casos, a análise real é ignorada. A resposta da suposta vítima sobre desejar ou não a manutenção das medidas tem sido considerada suficiente, o que esvazia o papel técnico e constitucional do juiz.
É fundamental lembrar que as medidas protetivas restringem direitos fundamentais, como o direito de ir e vir, o direito ao lar, o direito ao convívio familiar e, em muitos casos, o direito à guarda compartilhada dos filhos. Tais restrições devem ser excepcionalíssimas e sempre motivadas com base em fatos concretos e riscos reais.
Direitos fundamentais foram conquistados ao longo de séculos e não podem ser relativizados ou suprimidos com base apenas em declarações subjetivas e vontades pessoais. O que está em jogo são garantias universais previstas na Constituição Federal, que devem ser protegidas pelo Judiciário com rigor e responsabilidade, e não flexibilizadas como, infelizmente, acontece atualmente.
Quando o juiz simplesmente atende ao desejo da suposta vítima sem qualquer verificação concreta da situação de risco, ele abdica de sua função constitucional de equilíbrio e de fiscalização das restrições. O juiz não pode ser um mero chancelador de vontades. Ele deve ser escravo da lei, não do desejo.
O Judiciário é guardião dos direitos fundamentais e deve atuar com imparcialidade e análise técnica. Ao prorrogar medidas restritivas apenas com base em pedidos desprovidos de prova, o Judiciário se afasta de sua missão constitucional, fragilizando o próprio Estado Democrático de Direito.
É necessário que o Judiciário retome a independência e atue com a coragem da análise do risco em cada caso concreto. Prorrogar medidas protetivas sem critérios objetivos é abdicar da independência judicial e contribuir para a banalização de uma importante ferramenta de proteção, o que, a longo prazo, prejudica as verdadeiras vítimas, gerando insegurança jurídica, descrédito no Estado e em suas instituições.
3. Conclusão
A prorrogação automática das medidas protetivas com base apenas no desejo da suposta vítima é uma prática que afronta o devido processo legal, os direitos fundamentais e a independência do Poder Judiciário. Medidas protetivas são, sim, essenciais para o enfrentamento da violência doméstica, mas sua manutenção exige responsabilidade e análise criteriosa sobre a existência de risco atual. O juiz deve retomar seu papel técnico, avaliando os fatos e protegendo os direitos de todos os envolvidos, sob pena de transformar o sistema de proteção em um sistema de opressão e de insegurança jurídica. É urgente resgatar o equilíbrio e a seriedade na aplicação da lei Maria da Penha.