Quando o Banco Central anunciou o Drex, em 2023, vendeu a ideia de que o Brasil estava prestes a lançar a “moeda digital mais inovadora do mundo”. Seria a versão nacional das CBDCs - Central Bank Digital Currencies, com uso de blockchain permissionada, contratos inteligentes, tokenização e um ecossistema interoperável que aproximaria a tecnologia financeira de última geração do dia a dia do cidadão.
A linha do tempo do projeto, porém, mostra outra história. Em pouco mais de dois anos, o Drex sofreu tantas mudanças de narrativa que, hoje, é difícil identificar o que ele de fato é - ou pretende ser. Passou de promessa de CBDC popular para “infraestrutura de bastidor” que o brasileiro comum jamais verá ou usará diretamente.
O discurso inicial era ambicioso: em agosto de 2023, ao revelar o nome “Drex”, o BC falava em inclusão financeira, investimentos fracionados e até pagamento de benefícios sociais via real digital. Mas, ainda naquele ano, o código publicado no GitHub revelou funções administrativas capazes de congelar contas e alterar saldos, levantando preocupações legítimas sobre controle estatal. Ao invés de esclarecer de forma definitiva, o BC minimizou dizendo que era “o mesmo poder de hoje, sob ordem judicial” - um argumento que, corretamente, não acalmou críticos.
A última guinada foi confirmada pelo próprio presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, durante palestra no evento Blockchain Rio, quando admitiu que a primeira versão do Drex não utilizará tecnologia blockchain. A justificativa foi a existência de desafios técnicos e preocupação com privacidade, mas o resultado prático é mais um recuo em um projeto que já vinha sendo esvaziado e adiado, agora previsto para algo em 2026, limitado a funções burocráticas como reconciliação de gravames.
O que chama atenção não é apenas o recuo tecnológico, mas a incoerência institucional. Em fevereiro de 2025, poucos meses após assumir o comando do BC, Galípolo declarou publicamente que o Drex “não é uma moeda digital, e sim uma infraestrutura de tokenização” - negando, de forma explícita, a própria classificação de CBDC usada pelo BC desde o início e presente até hoje no site oficial. A comunicação muda ao sabor da conveniência, sem assumir de frente o que está sendo feito - ou abandonado.
Esse improviso é ainda mais grave quando lembramos que o Drex nunca foi objeto de uma discussão democrática. Não houve plebiscito, consulta pública popular ou debate parlamentar robusto sobre se a população quer, precisa ou aceita uma CBDC com potencial de controle absoluto sobre transações.
É nesse vácuo que surge a PEC proposta pela deputada Júlia Zanatta, que condiciona a criação, emissão e circulação do Drex à aprovação do Congresso Nacional. A medida, além de colocar um freio institucional necessário, reconhece o óbvio: projetos dessa magnitude, com implicações diretas sobre privacidade e liberdade econômica, não podem ser impostos por um órgão técnico sem mandato popular.
Mais grave é perceber que o Drex se tornou um exercício de retórica tecnológica: abundam as palavras bonitas, as promessas de eficiência e a embalagem de “inovação”, mas o objetivo prático é atacar um problema que ninguém identificou e que o mercado jamais pediu para resolver. A ironia é que, enquanto o Banco Central insiste em gastar energia com um projeto que já nasceu em crise de identidade, problemas reais e urgentes seguem sem solução.
As chamadas VASPs - Virtual Asset Service Providers, ou Prestadoras de Serviços de Ativos Virtuais - categoria que engloba corretoras, custodiantes, plataformas de intermediação e demais empresas que operam com ativos virtuais - seguem funcionando em uma zona cinzenta regulatória. Apesar da lei 14.478/22 prever seu licenciamento junto ao BC, o processo sequer foi implementado. Questões fundamentais como a efetiva aplicação da travel rule e a segregação patrimonial - indispensáveis para proteger clientes e mitigar riscos sistêmicos - também permanecem sem regulamentação clara.
O resultado é que, enquanto o ecossistema de ativos virtuais do Brasil carece de segurança jurídica, o BC prefere investir tempo em um Drex mutilado, que nem cumpre a promessa inicial nem resolve os problemas concretos do presente. O Drex já não é a CBDC revolucionária que prometeram. Virou um experimento burocrático, esvaziado de propósito, sem clareza técnica e sem respaldo popular. Pior: serve de distração para temas urgentes que afetam diretamente o sistema financeiro e o mercado de ativos virtuais.
O Brasil não precisa de uma CBDC ou de um Drex 2.0. Precisa, sim, de uma regulação efetiva para o setor de ativos virtuais, capaz de oferecer segurança jurídica, proteger consumidores e criar um ambiente propício à inovação. É urgente adotar marcos alinhados às jurisdições mais evoluídas, em vez de desperdiçar tempo e recursos com propostas que se vendem como futuristas, mas caminham na direção oposta das melhores práticas globais.