Cada FIDC no seu quadrado
Você está andando pela cidade e vê duas placas: “Clínica São Lucas”. Uma fica na Rua das Acácias, 01. A outra, na Avenida dos Jacarandás, 02. Endereços diferentes, bairros distintos, nem o CEP combina.
Curioso, você entra em uma delas. Descobre que é uma clínica de dermatologia. A outra, mais tarde, descobre que é oftalmológica. Um CNPJ cuida da pele, o outro cuida dos olhos.
O nome é o mesmo? Sim. O dono? Não. Os funcionários? Nem pensar. O imóvel? Cada um no seu canto da cidade. A única coisa que têm em comum é o “São Lucas” na fachada, talvez por devoção, talvez por coincidência.
Agora imagine alguém exigindo que a clínica dermatológica pague por um erro médico ocorrido na clínica oftalmológica. O argumento? “Ora, têm o mesmo nome, é tudo a mesma coisa”. Absurdo, não é mesmo?
Porém, é mais ou menos isso que acontece quando, no meio jurídico, alguém tenta responsabilizar um fundo de investimento por obrigações assumidas por outro, apenas porque ambos têm em sua denominação a sigla “FIDC”, que, diga-se, é uma exigência normativa da CVM para identificar um tipo de carteira de investimento.
Não compartilham sede, não dividem cotistas relevantes, não têm o mesmo administrador, não firmaram qualquer contrato entre si. Mas, como carregam a mesma “placa regulatória”, alguns julgadores presumem que há um grupo por trás, mesmo sem qualquer vínculo jurídico, patrimonial ou societário.
É essa lógica, perigosa e superficial, que este artigo se propõe a desconstruir. Porque no Direito, felizmente, aparência não é prova. E responsabilidade solidária exige mais do que nomes parecidos.
A premissa incorreta: Generalização pela sigla “FIDC”
Em caso recente, observou-se o afastamento da alegação de ilegitimidade passiva de um FIDC - Fundo de Investimento em Direitos Creditórios, sob o argumento de que este integraria um mesmo grupo econômico com outro fundo que também utiliza a sigla “FIDC” em sua denominação. O raciocínio, contudo, parte de uma premissa profundamente equivocada: a de que a coincidência na sigla representaria algum tipo de vinculação jurídica, societária ou patrimonial entre os fundos.
Essa interpretação desconsidera um aspecto essencial: a sigla “FIDC” não é uma marca, nem uma escolha voluntária, tampouco um indicativo de associação entre entidades. Trata-se de uma designação técnica e obrigatória, imposta pela CVM - Comissão de Valores Mobiliários, nos termos da resolução CVM 175/22. O objetivo é claro: padronizar a nomenclatura dos fundos, facilitando a identificação de sua natureza jurídica e carteira de ativos - no caso, direitos creditórios.
Assim, todos os fundos dessa natureza, ainda que completamente distintos entre si em termos de gestão, objeto, cotistas, administradores e localização, carregarão obrigatoriamente a mesma sigla: FIDC. E isso, evidentemente, não implica qualquer vínculo estrutural entre eles.
Trata-se, portanto, de uma generalização indevida, que confunde classificação regulatória com organização empresarial. A simples presença da sigla comum não é capaz de suportar a presunção de grupo econômico, conceito jurídico que, como se sabe, exige a demonstração de elementos concretos, como direção unificada, confusão patrimonial, ou coordenação administrativa entre os entes envolvidos.
Requisitos jurídicos para o reconhecimento de grupo econômico
O reconhecimento de grupo econômico na esfera cível e consumerista deve se basear em critérios objetivos, que demonstrem a existência de vínculos efetivos entre os entes envolvidos. A mera semelhança nominal, ou o fato de pessoas jurídicas atuarem em setores semelhantes, não é suficiente para ensejar a responsabilização solidária, especialmente quando se trata de fundos de investimento.
O reconhecimento desse tipo de vínculo está condicionado à demonstração concreta de:
- Coordenação administrativa ou financeira;
- Controle comum;
- Confusão patrimonial ou de gestão;
- Participação societária relevante que indique subordinação.
Tais elementos devem ser apurados a partir de prova documental ou contábil robusta, não se admitindo presunções genéricas, sob pena de violação ao devido processo legal e à autonomia das pessoas jurídicas.
O entendimento do STJ como freio às generalizações sobre grupo econômico
A jurisprudência consolidada pelo STJ é clara ao afastar a configuração de grupo econômico sempre que ausentes vínculos efetivos entre as entidades, independentemente de eventual afinidade mercadológica ou coincidência de ramo de atuação. Em casos em que os fundamentos foram impugnados, o STJ confirmou que a mera similitude de objetivos comerciais ou a atuação no mesmo setor não preenche os requisitos legais para estender responsabilidades de um fundo a outro.
Na ausência desses elementos, a responsabilização de um fundo por obrigações de outro fere frontalmente princípios basilares do Direito Civil e Empresarial:
- Legalidade: Não se pode impor sanções ou obrigações sem respaldo em norma ou prova, sob pena de criar obrigações arbitrárias.
- Segurança jurídica: A previsibilidade dos efeitos legais depende da manutenção das personalidades jurídicas separadas, garantindo que cada agente saiba a extensão de suas responsabilidades.
- Autonomia patrimonial: Corolário do princípio da separação de bens, assegura que cada pessoa jurídica responda apenas pelos seus próprios compromissos, sem arcar por passivos alheios.
Dessa forma, basear decisões em meras presunções nominais ou em generalizações simplistas compromete não apenas a coerência do sistema de responsabilidade solidária, mas também a confiança dos investidores e operadores no regime de proteção patrimonial estabelecido pela CVM e pelo ordenamento jurídico pátrio.
Além da sigla, a realidade jurídica
Como dito, a utilização da sigla “FIDC” por diferentes fundos de investimento não autoriza, por si só, a conclusão de que integrem um mesmo grupo econômico. A classificação é resultado de exigência regulatória e representa apenas a natureza do fundo e não sua estrutura societária ou a eventual existência de vínculos com outros entes.
Decisões que atribuem responsabilidade solidária entre fundos distintos com base em tais premissas incorrem em vício de fundamentação e comprometem a previsibilidade das relações jurídicas no mercado de capitais. O respeito à autonomia e à individualidade patrimonial dos fundos deve ser preservado, especialmente quando inexistem provas de interdependência societária ou confusão patrimonial.
O debate sobre a responsabilização de fundos de investimento exige, portanto, o equilíbrio entre a proteção de direitos dos jurisdicionados e o respeito à natureza jurídica dos veículos regulados, sob pena de fragilização das garantias que sustentam o mercado de capitais e o próprio sistema de justiça.