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Direito e política na prestação de contas municipais

O artigo analisa a distorção entre técnica e política no julgamento das contas municipais, destacando a urgência de uma reforma para preservar a transparência e a justiça.

15/8/2025

Ao final de cada mandato, prefeitos de todo o Brasil se veem diante de um rito decisivo para sua trajetória política: o julgamento das contas anuais de governo. Prevista como um instrumento essencial de transparência e responsabilidade fiscal, essa etapa deveria refletir uma análise imparcial da gestão pública. Na prática, porém, ela frequentemente se transforma em um campo de disputa entre critérios técnicos e interesses políticos locais.

O processo funciona da seguinte forma: os Tribunais de Contas dos Estados realizam uma avaliação técnica das contas do prefeito, emitindo um parecer prévio que recomenda a aprovação ou rejeição das contas de governo. Esse parecer, contudo, não é vinculante. Cabe à Câmara Municipal, como instância final, acatar ou não a recomendação do Tribunal. E é justamente aí que começam os problemas.

Em um cenário ideal, os vereadores usariam o parecer técnico como base para uma decisão fundamentada, garantindo equilíbrio entre o controle externo e a soberania democrática local. No entanto, o que se vê em diversas regiões do país é um descolamento preocupante entre técnica e política. Muitas Câmaras Municipais desconsideram os pareceres dos Tribunais sem qualquer justificativa robusta, abrindo espaço para julgamentos arbitrários, motivados por rivalidades, disputas eleitorais ou simples acordos de bastidores.

Esse tipo de situação afeta diretamente a segurança jurídica dos prefeitos. Há casos em que gestores com pareceres pela rejeição conseguem reverter a situação politicamente, enquanto outros, com pareceres favoráveis, têm suas contas rejeitadas por motivos claramente políticos. Essa loteria institucional compromete não apenas a estabilidade das administrações municipais, mas também a credibilidade de todo o sistema de controle.

Para o prefeito, a defesa no processo de julgamento das contas passa por dois grandes obstáculos. O primeiro é técnico: ele precisa esclarecer dúvidas, apresentar documentos, justificar eventuais inconsistências e demonstrar o cumprimento das exigências legais, como os limites da lei de responsabilidade fiscal e os percentuais mínimos de aplicação em saúde e educação. O segundo obstáculo, ainda mais complexo, é o político: convencer os vereadores a respeitar o parecer técnico em um ambiente muitas vezes contaminado por interesses pessoais e disputas partidárias.

Mesmo quando o Tribunal de Contas emite um parecer favorável, não há garantias. Em diversas Câmaras, a votação ignora o conteúdo técnico e se transforma em instrumento de perseguição ou barganha política. Essa distorção revela uma fragilidade institucional séria. Ao permitir que pareceres técnicos sejam ignorados sem justificativa, o sistema atual desincentiva a boa gestão pública.

A exigência de motivação nas decisões públicas está prevista na Constituição e em princípios fundamentais do Direito Administrativo. Não é um detalhe burocrático, mas uma proteção contra o arbítrio. Quando a Câmara rejeita um parecer técnico sem apresentar motivos claros e coerentes, ela rompe com o dever de transparência, compromete o devido processo legal e fragiliza a confiança da população nas instituições.

Além disso, o duplo juízo, constituído pelo parecer do Tribunal de Contas seguido da decisão política da Câmara, deveria atuar como um sistema de freios e contrapesos. Mas, na prática, tem se mostrado um instrumento de incerteza. Em vez de garantir maior rigor na análise das contas públicas, essa duplicidade tem servido, muitas vezes, para mascarar decisões políticas com aparência de legalidade. Há inúmeros exemplos em que gestores são tornados inelegíveis por razões alheias à gestão financeira, enquanto outros escapam da responsabilização mesmo diante de falhas graves.

É evidente que a solução não está em retirar da Câmara Municipal sua prerrogativa de julgar as contas. Trata-se de uma competência constitucional e expressão da soberania popular. No entanto, é preciso impor limites ao uso político dessa prerrogativa. Repensar esse sistema é uma urgência. A prestação de contas precisa voltar a ser um instrumento de avaliação técnica e de fortalecimento da gestão pública, e não um terreno fértil para disputas partidárias. Prefeitos devem ser julgados com base em sua conduta administrativa, e não em alianças ou inimizades políticas.

Mais do que proteger gestores individuais, uma reforma nesse campo fortalece o Estado de Direito, valoriza os órgãos de controle e promove a transparência. A democracia municipal agradece, e a boa gestão também.

Eduardo Henrique de Carvalho Franklin
Professor de Direito. Especialista em Regulação da Saúde Suplementar da ANS. Mestre em Direito pela UFPE.

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