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Entre concorrência e regulação: A autoridade concorrencial decide sobre divulgação e uso de tabelas de preços no setor de saúde suplementar

Decisão do CADE sobre tabelas de preços na saúde suplementar marca nova era regulatória e alerta para riscos concorrenciais em práticas antes comuns.

15/8/2025

Julgamento traz lições para hospitais, operadoras e fornecedores e pode desencadear novas investigações e mudanças regulatórias

I. Mais que uma disputa: Um marco para o setor de saúde suplementar

“O cerne das condutas analisadas no presente Processo Administrativo se atrela ao contexto de pactuação de preços de medicamentos e materiais hospitalares utilizados no atendimento a pacientes internados, entre hospitais e operadoras de planos de saúde ("OPS"), em sede de reembolsos” Anexo ao Voto Relator, § 85

1. O Tribunal Administrativo do CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econômica julgou, em 6/8/25, o processo administrativo 08700.001180/2015-56, que investigava a orientação por entidades setoriais para que hospitais adotassem tabelas de preços publicadas em revistas especializadas, acrescidas de margens fixas previamente definidas, como referência em suas negociações com operadoras de planos de saúde. A conduta das entidades setoriais foi considerada um ilícito concorrencial por objeto, com presunção relativa de ilicitude, em razão de seu potencial de uniformizar comportamentos comerciais.

2. A decisão do Tribunal não apenas impôs sanções, mas também determinou o envio de ofícios à Anvisa - Agência Nacional de Vigilância Sanitária, ao MPF - Ministério Público Federal, e à SEAE - Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, para apurações adicionais. 

3. Assim, a decisão projeta impactos que vão muito além das partes diretamente envolvidas. O julgamento oferece uma leitura atualizada da legislação antitruste aplicada ao setor de saúde, o que pode sinalizar maior atenção das autoridades concorrenciais e regulatórias a práticas até então comuns no setor.

4. O voto também estimula o avanço de uma regulação específica sobre o uso de tabelas de preços nas negociações entre prestadores e operadoras, tema já presente na agenda regulatória da ANS.

5. Como tratado no final deste artigo, há importantes lições para os diferentes stakeholders do setor de saúde suplementar e pontos de atenção, que exigem um olhar atento daqueles atuantes na garantia do compliance concorrencial.

II. A decisão do CADE no caso concreto

6. O processo administrativo teve início a partir de uma representação do MPF, com base em indícios de que hospitais privados vinham utilizando, de maneira sistemática, tabelas de preços publicadas por revistas especializadas, aplicando sobre elas margens pré-definidas nas tratativas com operadoras de planos de saúde.

7. A análise da SG, apoiada por parecer econômico do DEE - Departamento de Estudos Econômicos, revelou que mais de 80% dos contratos examinados utilizavam essas tabelas como referência direta para fins de reembolso e precificação. Além disso, verificou-se que a maior parte dos itens listados não era objeto de regulação de preços pela CMED - Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos, o que ampliava o espaço para variação e possível distorção nos valores praticados.

8. O Tribunal distinguiu claramente duas condutas investigadas:

A. Eficiências alegadas versus impactos no mercado

9. As entidades investigadas alegaram que o uso coordenado de tabelas com margens fixas traria previsibilidade às negociações, reduziria litígios e diminuiria custos de transação. Em tese, conforme reconhecido na decisão, tais ganhos podem ocorrer, sobretudo em mercados complexos. No entanto, o voto concluiu que não houve comprovação robusta dos benefícios no caso concreto, tampouco demonstração de que tais ganhos não poderiam ser obtidos por meios menos restritivos à concorrência. O conselheiro-relator pontuou:

“Isso posto, voltando ao caso concreto, verifica-se que, no âmbito das defesas apresentadas pelas entidades de classe Representadas sustenta-se a existência de abuso econômico praticado pelas OPS, decorrente, diretamente, da dependência que os próprios hospitais possuem em relação à demanda gerada pelos beneficiários de planos de saúde. Tal dependência, alega-se, conferiria às OPS significativo poder de mercado. (...) Contudo, não obstante a defesa se apoie em embasamento teórico construído sobre fundamentos de reconhecida relevância, não se verifica a apresentação de provas materiais - correios eletrônicos, cláusulas contratuais desproporcionais, tentativas materializadas de negociações etc. - capazes de atestar, de forma efetiva, a alegada assimetria de poder entre as partes.” Anexo ao Voto Relator, §§ 202 e 207

10. Assim, a conduta foi enquadrada como uma forma de influência de conduta uniforme que, embora não tenha gerado evidência direta de aumento de preços ou eliminação de concorrentes, teria afetado estruturalmente a liberdade negocial entre as partes privadas envolvidas e, portanto, presumidamente anticompetitiva.

B. A base jurídica e a lógica concorrencial

11. A decisão do CADE aplica a teoria do dano por objeto, com presunção relativa de ilicitude, em que o potencial anticompetitivo decorre da própria natureza da prática, independentemente da comprovação de efeitos mensuráveis no mercado. Segundo o conselheiro-relator:

“Nesse contexto, a veiculação de orientações quanto à adoção de determinadas tabelas de preços - como o Guia Farmacêutico Brasíndice e a Tabela Simpro - pode ser interpretada como indução à conduta comercial uniforme. (...) Isso posto, enquanto um ilícito por objeto com presunção relativa de ilicitude, e diante do contexto da conduta, cabe avaliar a existência da aplicação da tese do poder compensatório no presente caso concreto.” Anexo ao Voto Relator, §§ 188 e 192

12. Essa lógica desloca o foco da análise do efeito empírico para a natureza da conduta: o ônus recai sobre os representados para provar que a uniformização não compromete a dinâmica concorrencial. 

13. Em outras palavras, o julgamento não exige demonstração de dano concreto, mas estabelece que práticas com alto risco estrutural de restringir a liberdade negocial e a autonomia de preços entre agentes econômicos podem, por si, configurar infração à ordem econômica, salvo se for possível comprovar, de modo robusto, ganhos de eficiência que superem esses riscos.

14. No caso concreto, o CADE reconheceu que não ficou comprovada a alegada tese do poder compensatório em relação às operadoras de planos de saúde por ausência de provas robustas, mantendo a presunção de ilicitude da conduta.

III. O pano de fundo regulatório: Tabelas CMED e nota técnica 7/19

15. O caso examinado pelo CADE destacou a zona de interseção entre o direito da concorrência e a regulação setorial da saúde. A decisão afirmou que: 

“Assim, a opacidade na formação e adoção desses preços gera efeitos concorrenciais de complexa mensuração, mas de indiscutível nocividade. Para sanar essa deficiência, é fundamental promover a transparência e a abertura dos mecanismos de precificação. Isso requer um esforço coordenado de política pública, envolvendo não apenas a regulação setorial, mas também a defesa da concorrência. A utilização de ferramentas como o cruzamento de dados de notas fiscais de compra pelos hospitais com os valores reembolsados pelas operadoras, por exemplo, permitiria a averiguação da variação dos preços e a identificação de abusos.” Anexo ao Voto Relator, § 184

16. Assim, a decisão do CADE atua como ponto de convergência entre o enforcement concorrencial e o aprimoramento regulatório, sugerindo a necessidade de respostas integradas frente a práticas com potencial de restringir a autonomia negocial e a rivalidade econômica.

17. CMED. A conduta analisada no processo administrativo envolvia o uso de tabelas de preços publicadas por revistas especializadas como base para negociações privadas. Parte desses preços deriva de informações fornecidas pelos próprios fabricantes de medicamentos e materiais hospitalares, muitos dos quais são regulados pela CMED - Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos.

18. A CMED é um órgão interministerial responsável pela definição de regras para a formação e ajuste de preços de medicamentos no Brasil, nos termos da lei 10.742/03 e da resolução CMED 2/04. As publicações autorizadas devem se limitar a divulgar os preços máximos autorizados (PMVG - Preço Máximo ao Governo e PMC - Preço Máximo ao Consumidor), com base em dados remetidos pelas empresas produtoras.

19. O voto reforçou que a simples divulgação, nos termos regulatórios, é lícita. No entanto, o conselheiro-relator alertou que, quando essas publicações são reapropriadas com acréscimos padronizados e orientações para uso contratual uniforme, podem, sob determinadas circunstâncias, deslocar sua função regulatória e assumir o papel de instrumento de coordenação anticoncorrencial.

20. É relevante destacar que grande parte dos itens listados nas tabelas analisadas não estava sujeita a teto regulatório da CMED, o que reforçou a preocupação do CADE com o potencial de uso indevido desses instrumentos como referência automática de preços no setor de saúde suplementar.

21. A nota técnica 7/19 da ANS. Paralelamente à atuação da CMED, a regulação setorial da saúde suplementar pela ANS também trata de aspectos relevantes para a formação de preços e negociações contratuais, tema abordado na nota técnica 7/19.

22. A nota técnica 7/19/GASNT/DIRAD-DIDES/DIDES, elaborada pela Diretoria de Desenvolvimento Setorial da ANS, foi mencionada expressamente no voto como referência regulatória. O documento orienta o aprimoramento dos instrumentos de contratualização entre operadoras e prestadores, destacando:

23. A nota técnica reforça que o uso de tabelas como referência não é vedado, mas pode, sob certas condições, suscitar preocupações concorrenciais. O CADE ecoa essa posição ao recomendar que a ANS avance em diretrizes normativas mais claras.

IV. Lições práticas para o setor de saúde

24. A decisão traz importantes lições para os diversos agentes da cadeia de saúde suplementar:

25. O julgamento aponta para uma mudança de paradigma: práticas anteriormente tratadas como comuns podem, sob a ótica do direito da concorrência, ser passíveis de condenação.

26. Este julgamento reforça a importância de práticas comerciais transparentes e da integração entre a fiscalização concorrencial e a regulação setorial, além de orientar os agentes do setor a evitarem condutas que possam restringir a liberdade negocial e a autonomia de preços.

27. Além das condutas efetivamente julgadas, foram identificadas outras possíveis questões concorrenciais relevantes que, embora não tenham sido objeto de decisão final, permaneceram em aberto, incluindo a possibilidade de, em investigações futuras, apurar eventual cobrança de preços abusivos ou outras formas de coordenação entre agentes da cadeia.

28. Portanto, a decisão também representa uma sinalização preventiva poderosa: o setor deve se antecipar às investigações e repensar instrumentos contratuais, tabelas referenciais e orientações de classe sob a perspectiva concorrencial. O enforcement está mais atento, e a regulação, mais integrada.

Alessandro Pezzolo Giacaglia
Tenho atuação nos principais casos de direito concorrencial dos últimos 15 anos, em fusões, investigações e ações judiciais, no Brasil e internacionalmente.

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