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Plataformas sob pressão: Até onde vai a responsabilidade da intermediação?

Anatel responsabiliza marketplaces por produtos não homologados, mas STJ distingue intermediação neutra e protege plataformas digitais.

15/8/2025

As plataformas digitais transformaram a lógica do comércio nos últimos anos, permitindo que consumidores encontrem produtos e serviços de forma simples e ágil, com intermediação tecnológica cada vez mais sofisticada. Ao mesmo tempo, esse avanço vem acompanhado de questionamentos jurídicos importantes sobre os limites da responsabilidade dessas plataformas por irregularidades praticadas por terceiros que nelas anunciam.

A recente decisão da Anatel, que responsabiliza marketplaces como Magalu, Amazon, Shopee e Mercado Livre pela comercialização de produtos não homologados, trouxe um novo ingrediente para esse debate. A proposta regulatória, que amplia o alcance da responsabilização solidária, pode representar um avanço do ponto de vista da proteção ao consumidor, mas também carrega consigo um risco: o de ignorar a natureza jurídica específica de algumas plataformas e o entendimento já consolidado pelo Poder Judiciário.

Nos últimos anos, o STJ tem reconhecido, com consistência, que há uma diferença relevante entre quem fornece um produto e quem apenas intermedeia a relação entre as partes. Quando a plataforma atua como um "classificado digital" ou apenas disponibiliza um espaço para anúncios, sem ingerência sobre a oferta, pagamento ou entrega, é possível - e recomendável - reconhecer o papel de intermediador neutro. Essa diferenciação não é meramente técnica. Ela serve para impedir que negócios legítimos sejam sufocados por uma responsabilidade que não lhes pertence.

Esse entendimento tem amparo sólido na jurisprudência do STJ, que, ao longo dos últimos cinco anos, consolidou decisões afastando a responsabilização solidária de plataformas cuja atuação se limita à intermediação neutra. Assim, sim - a contestação judicial da responsabilização, com base nesse argumento, encontra não apenas fundamento teórico, mas respaldo prático e consolidado nos tribunais superiores.

A lógica é simples: atribuir a essas plataformas o dever de fiscalizar previamente milhões de anúncios, garantindo a regularidade técnica de cada produto, é algo que se mostra não apenas impraticável do ponto de vista operacional, mas também incompatível com o que já se entende como diligência razoável no ambiente digital. A jurisprudência reconhece isso. E mais: consagra o Marco Civil da Internet como um escudo protetivo para atividades de intermediação, ao exigir, por exemplo, que só haja responsabilização em caso de descumprimento de ordem judicial específica.

Há, é claro, uma linha tênue entre facilitar e participar diretamente de uma relação de consumo. Por isso, a fronteira entre intermediação neutra e intermediação ativa continua sendo o ponto mais sensível do debate. Plataformas que oferecem garantias, processam pagamentos ou exercem controle sobre o conteúdo dos anúncios naturalmente se colocam em maior posição de risco. Mas esse não é o caso de todas. E não é razoável tratá-las da mesma forma.

A decisão da Anatel, embora bem-intencionada, parece desconsiderar esse equilíbrio. Ao atribuir responsabilidade solidária mesmo para quem apenas realiza divulgação, a norma caminha na contramão do que o Judiciário tem pacificado. Pior: pode abrir um precedente perigoso para que outros órgãos reguladores passem a impor obrigações semelhantes, sem que haja uma análise jurídica mais cuidadosa sobre os limites da atuação administrativa. Quando uma norma administrativa se sobrepõe à jurisprudência consolidada e à legislação federal, abre-se espaço para insegurança jurídica, que pode impactar não só o modelo de negócio vigente, mas a própria sustentabilidade de setores inteiros baseados na lógica da intermediação digital.

Não se trata de negar a importância da regulação. O desafio é garantir que ela seja compatível com a arquitetura legal vigente e com os modelos de negócio que fomentam inovação e competitividade. A responsabilização deve existir, sim - mas com base em critérios objetivos, respeitando a proporcionalidade e a razoabilidade.

Para as plataformas, o caminho mais seguro continua sendo o da transparência, da rastreabilidade e da adoção de boas práticas contratuais e tecnológicas. É essencial que os termos de uso delimitem a natureza da intermediação, que haja sistemas eficazes de identificação dos anunciantes e que as ordens judiciais sejam prontamente atendidas. Estruturas internas de compliance, painéis de monitoramento e canais de denúncia ativos também fortalecem a narrativa da diligência, servindo tanto como defesa em litígios quanto como escudo diante de investidas regulatórias.

E para o Estado, o desafio está em regular sem engessar. Afinal, a intermediação digital, quando feita com diligência, não é obstáculo - é motor da economia.

Mariana Motta de Ferreira Lima
Sócia do escritório Serur Advogados.

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